sexta-feira, 25 de outubro de 2024

O Tesouro

O Tesouro

(conto)




Ela está diante das duas caixas de papelão que trouxe do sótão. Pelas marcas externas vê que estão completamente deterioradas pelo tempo, a umidade,  a imobilidade. Ela se comove pensando no estado da substância preciosa que elas contêm: as coleções de selos de seu pai. Pensa no quanto eles eram belos e mágicos na sua infância e como devem estar agora arruinados. Diante da caixa, ela tenta entender. Por que se esqueceu deles? Por que os deixou onde foram confinados, sem nunca abrir, olhar, manusear, usar? Poderia tê-los trocado na época em que os selos tinham valor; poderia ter ganho um bom dinheiro com eles. Nem isso lhe ocorreu. Contentou-se sempre em saber que eles estavam ali, que eram a sua herança preciosa. Não tomara posse deles, afinal.

Ela se prepara para rasgar a fita adesiva com uma faca na mão,  mas a mão hesita. Onde estiveram as caixas todo esse tempo? Fazia no mínimo quarenta anos que seu pai se fora, na flor de seus anos. Deixara a ela a missão de concretizar suas conquistas cortadas pela raiz, deixara a ela seus pertences valiosos, para que ela fizesse bom uso deles...

Ela rasga a fita no comprimento da caixa. Não foi difícil, porque até a fita perdera a goma. Assim como ela, pensou. A poucos meses de se aposentar da carreira de professora, que goma ainda restava ao seu espírito? Onde estava aquela verve herdada de seu pai, o projeto de fazer grandes coisas, escrever importantes livros? Perdera sua juventude e a seiva estava quase seca. Por isso se lembrara repentinamente das coleções de selos do sótão? Uma curiosidade meio mórbida a levara a desenterrar as caixas no meio de outros entulhos de família. Trastes que significaram alguma coisa na época em que seus avós e tios tinham vivido como imigrantes,  lutando para sobreviver numa terra sempre estranha, sempre conquistada à unha. Ela nem olhou para todos aqueles trastes, simplesmente os arrastou para um lado como se descarta a terra ao cavar um poço. A água preciosa do poço estava ali naquelas duas caixas. E ela haveria de ter coragem de abri-las e conferir a realidade da sua ruína e dela própria. Era verdade que elas estiveram inacessíveis durante os anos de sua adolescência e juventude. A tia severa as havia ocultado dela e de sua mãe,  por rancor descabido. Acaso tiveram culpa pelo acidente que o levara? Era o que sua tia encasquetara, negando-lhes qualquer herança material dele. Somente muito depois, quando ela havia dobrado a curva dos verdes anos e estava sozinha no mundo, casada apenas com seu trabalho de professora de língua portuguesa, é que o acaso a levou a morar na casa que fora dos avós e onde seu pai vivera até se casar. Ali estava o sótão com todas as tralhas sem identidade para ela, e ali estavam as duas caixas, o tesouro que seu pai lhe destinara.

Que significavam, afinal, os selos? Quanto à funcionalidade já não valiam nada, desde que as cartas perderam seu lugar no mundo digital. Os selos carregavam a magia de algo que chega de outro lugar, de um país distante e exótico que dificilmente se conheceria nesta vida. Agora que o conhecimento de todos os países, suas línguas, suas guerras e suas culturas pertencem ao domínio público, os selos perderam todo o antigo charme. Mas não era só isso - ela descobria, ao franquear as abas de papelão e expor uma massa de papel desbotado e grudado, que levantou uma nuvem de pó. Não eram só selos; a coleção de seu pai para ela eram sonhos. Eram livros coloridos, quadros, saberes; eram uma biblioteca inteira! Agarrou uma folha com a ponta dos dedos. Viu-se a si mesma debruçada sobre o livro ao lado do pai, no tapete da sala. Ele deixava que ela colasse um selo azul com a imagem de um pássaro. "Este veio da Dinamarca", explicou sorrindo e recomendando que ela o encaixasse num dos quadriculados da folha. E ela se sentira possuidora daquele pássaro, como de uma quimera. 

Ficara refém dessa quimera pelos anos que se seguiram, pois o pai nunca voltou para mandar que ela fechasse o livro, que era hora de fazer outra coisa. Paralisada em sua resignada missão de passar lições,  dar aulas mais ou menos inspiradas de vez em quando, rabiscar textos literários jamais concluídos. Esperando...o quê? Nos últimos tempos, aliás, a inspiração diminuía. Lembrou-se de uma gafe recente, quando, falando à classe, confundira dois dos romances de Tolstói e fora lembrada por uma aluna. É claro - entendia, cheia de horror e asco ao ver uma barata escapar-se da caixa e correr, furtiva - que eu vivi à sombra desta herança. E agora? Não ousou admitir a presença de uma esperança impossível, de que houvesse alguma outra coisa para ela. A vida não podia ser só isso.

Espantou o gato em cima da segunda caixa e a puxou para si, mas mantendo o corpo um pouco distante, preparada para a nuvem de pó e insetos que iriam saltar. Tantos anos, tantos sonhos. Crescera com mágoa da tia e da avó por culparem sua mãe e, por isso, as manterem longe de tudo o que fora do pai. Nunca tinham aceito o relacionamento dele, um moço culto, refinado, com a moça simples que ele conhecera na fábrica. Depois de sua morte prematura, não acolheram as duas como sendo da família. A ela sim, ainda criança,  se dispuseram a pagar os estudos. A tia, levando-a pela mão e a deixando no pátio da escola: "Trate de se esforçar, mocinha, que é o que seu pai esperava de você". Mas ela atendera a tremenda expectativa vinda de além-túmulo? Olhou desconsolada para a segunda caixa, a faca na mão... Uma pífia carreira de professora do fundamental, que em breve se encerraria com uma carta de agradecimento da instituição de ensino, como uma vela que se apaga. Será que o pai a perdoava? Por ter esperado tanto tempo para ser ela mesma, tentando remendar o imenso buraco no pano de suas vidas? Será que a perdoava por dormir sobre os louros das conquistas dele de jovem, em vez de dar crédito à sua própria caminhada de quase meio século de vida? 

A mão rasgou com firmeza a fita frouxa, que caiu para o lado. O gato deu um miado. Nuvens de poeira densa - a poeira do Saber, a poeira da Magia, a poeira do Sucesso se evolaram no ar. A poeira do Bem-querer, quiçá? Ela não se preocupou em secar duas gotas que lhe deslizaram pela face. Há tanto tempo aquela secura em sua vida que suas lágrimas tardias nem chegariam a umedecer. Esperou que saíssem os insetos repugnantes, mas não saiu nenhum. Então puxou o pacote para si e olhou dentro. 

FIM

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

RECRIAÇÃO

. Recriação 



No meio da dor, os olhos, as mãos encontraram o papel. Agarraram-se à tesoura como boia de salvação. Empurrada pela esperança, a tesoura foi circulando o papel. A circunferência não ficou perfeita,  mas sabia que até a Terra era achatada nos polos. Os olhos, com sua inteligência, saberiam abstrair no que não tinha sido, aquilo que deveria ser. O tamanho parecia menor que o do outro, mas também não dava mais para conferir. Só cacos tinham restado, mostrando pedaços do desenho que tão bonito fora. Com lápis coloridos, desenhou na circunferência um miolo amarelo e pétalas cor-de-rosa; depois, outro miolo e pétalas azuis. Os patinhos não sabia desenhar, no lugar deles fez crescer outra flor. E com a dor assim apaziguada, a menina pegou com todo o cuidado seu novo prato e o colocou na prateleira no mesmo lugar em que existira o outro, por sobre os cacos.

FIM

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

BURACOS DE MINHOCA

 



 

Nós, os velhos, descobrimos há muito tempo o que a ciência, a moderna física ainda peleja para comprovar. Existem mesmo os chamados 'buracos de minhoca' no tecido do espaço-tempo. Nós viajamos sempre através desses buracos que ninguém além de nós vê. Se não fosse por isso, como poderíamos sobreviver? O tempo comum se aperta cada vez mais em volta do nosso pescoço a ponto de nos sufocar. Não temos espaço também para viver. Todos os lugares que ocupávamos nos foram proibidos. Os velhos atrapalham, com sua lentidão para acompanhar o assunto das conversas, sua mania de repetir o já dito e sabido, sua tendência às queixas constantes. Por isso nos relegaram a espaços minúsculos, onde ninguém precisa quase nos ver. E como protestar? O que alegar em nosso favor? Ah, a sabedoria da velhice... Essas que foram pulverizadas pelos saberes tecnológicos e as comunicações e já se tornaram obsoletas? Ah, a gratidão pelo que eles outrora fizeram por vocês... Essa gratidão que já não é natural, depois que para todo e qualquer comportamento existe uma explicação dos especialistas e tudo é visto como resultado de transtornos, complexos e neuroses? Como ser grato a quem fez o que fez pelos mais jovens levado por algum determinismo das circunstâncias e da personalidade? Por isso já não há gratidão pelos velhos, nem aprendizado. Nada sobrou para nós, depois que não precisamos mais vender nossa alma para ganhar a vida. O tempo se apertava cada vez mais, as paredes foram se fechando.

Foi então que, procurando desesperadamente uma saída, descobrimos os buracos de minhoca que se pensava que existissem só na ficção científica. É claro que foi uma mulher, uma velha a primeira e embarcar num deles e voltar para ensinar aos outros. Ela não tinha mesmo nada para fazer e foi fazer o impossível. No que consistem esses fabulosos túneis e onde se encontram?

Nada mais fácil de responder: eles estão por toda a parte, ao alcance de qualquer um. Através deles podemos viajar no tempo. E viajando no nosso tempo, aquele que nos pertence por direito, podemos recuperar aquele instante da vida que foi desperdiçado como um vinho rico esquecido no fundo da taça...!

Por exemplo: se vejo uma criança encantadora empurrando um carrinho de bebê com seu urso de pelúcia, basta fechar os olhos e mergulhar fundo no espaço infinito que existe no coração. Em pouco tempo estou aterrissando no planeta no instante exato da minha visagem. Lá ainda sou a mamãe de dois bebês lindos, diante dos quais me derreto completamente como sorvete em água morna... É assim que os velhos aprenderam a viajar. Vamos para esse tempo-espaço intangível entrando num desses buracos de minhoca. E estamos mesmo lá.

Isso me lembra um conto de Jack London que li há muito tempo, de cujo nome já não me lembro, no qual o protagonista é um prisioneiro condenado à morte, em uma solitária. Ele descobriu como escapar. Todas as noites, ao cair no sono, viajava para outras vidas e as vivia com tal intensidade que ao despertar custava a se lembrar quem era no presente, onde estava e quando. Pois é assim mesmo que acontece conosco, nós velhos condenados ao esquecimento e despojados de tudo o que já foi importante para nós: o carinho, o interesse pela nossa conversa, os convites e, claro, a convivência, ou seja, tempo. Em lugar disso nos querem deixar como consolo o tal respeito pelos cabelos brancos, a manutenção de cuidados e outras bobagens que só quem não tem mais vida pode receber com gosto. Aos poucos fomos sendo higienizados e dobrados como embalagens descartáveis.

A solução que encontramos é mágica! Viajar pelos buracos de minhoca do espaço-tempo. Eles estão aí disponíveis o dia inteiro, em cada encontro, cada sorriso, um trabalho bem-feito, um gatinho, uma comida gostosa, uma paisagem da janela... Rotina é uma palavra que perdeu o sentido para nós. Outro dia, no café da manhã, eu me transportei a todos os 'cafés de sábado' da minha vida, maravilhosos, com sua qualidade perfeita para aquelas conversas intermináveis, com as manas, com as filhas, com o marido; as trocas, as filosofias - eu acho isso, e você?, coisas aprendidas, histórias que não tinham fim e que iam construindo um fio que nos ligava a todos. Cada momento do dia se torna infinito quando damos esse mergulho. Dizem que os velhos vivem de recordações, que vivem no passado morto e se desinteressam pelo presente vivo. Nada mais equivocado. Para nós, o presente é que é morto, vazio e plastificado como uma duração. Em compensação, as nossas viagens no tempo... Ulalá! É onde reencontramos nossa beleza no espelho, nossa força para remover montanhas se elas interferissem no bem-estar da nossa família, nossa fé na vida, nossa alegria... Oh Deus! Os caminhos estão novamente abertos, graças aos buracos de minhoca do nosso coração. Agora somos de fato eternos.

 FIM

Imagem: The Starry Night, Van Gogh

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segunda-feira, 29 de julho de 2024

HIPERFOCO, o gerenciamento da atenção

 

Baseado no livro Hiperfoco, de Chris Bailey[i].

 


Para começar a falar sobre o livro, noto que o subtítulo não faz jus ao conteúdo: "Como trabalhar menos e render mais". Parece um manual para executivos focados em produtividade. Na verdade, é muito mais do que isso. Há um comentário na contracapa que bem poderia ser o subtítulo e que eu gostaria de tomar como núcleo para esta resenha:

"Tornar-se mais produtivo não tem a ver com gerenciamento do tempo, mas sim com gerenciamento da atenção” (Adam Grant).

Quem estudou algo sobre o Quarto Caminho, um ensinamento milenar traduzido para a mente ocidental por G.I.Gurdjieff e P.Ouspenski na primeira metade do século XX, entende que uma evolução real do ser humano só é possível através do trabalho interior, e que esse trabalho conjuga basicamente um esforço de autoconhecimento e o desenvolvimento de uma vontade real, que nada tem a ver com desejos. Ora, seguir um trabalho interior só é possível por meio de um gerenciamento eficiente da atenção. E, surpresa! Atenção é o artigo mais em falta nesta época cheia de estímulos em que vivemos. Como, então, trabalhar interiormente no sentido de tornar-se o Eu Real e cumprir nossos desígnios, ao invés de passar a vida adormecidos?

A atenção é o nosso instrumento primordial, é o nosso polegar opositor, o que verdadeiramente nos distingue dos animais. Nesse sentido, o livro de Chris Bailey não é apenas um manual para gerenciar melhor as tarefas da empresa e ser mais produtivo. Ele abrange muito mais que a esfera meramente profissional. Saber gerenciar o foco da nossa atenção é indispensável para desenvolver nossos potenciais e metas de vida, e assim crescer como indivíduos.

É nessa direção que me propus a dar uma pequena amostra do que trata o livro, dentro do meu aproveitamento pessoal. Espero que ele possa atingir muitas pessoas com a luz que trouxe para meu próprio modo de pensar.

***

Nossa vida é constituída por aquilo em que pomos nossa atenção. E o que nos impede de colocar nossa atenção naquilo que é bom para nós, para o nosso trabalho, nossa saúde, nossos relacionamentos? Enfim, para nossas metas na vida? A verdade é que nossa atenção tem a qualidade de uma borboleta, que vai para onde quer, sem foco nem constância. Certamente existe um propósito para a borboleta pousar de flor em flor para obter todo o néctar que puder: esse é o seu foco mais eficiente. Mas para nós, humanos, saltar de uma tarefa a outra, de uma distração a outra nos deixa com uma sensação de frustração por não conseguirmos concluir nada. Sentimos que nosso potencial está sendo desperdiçado e, como a vida é uma só, nossa vida está sendo desperdiçada.

O mais dramático dessa situação é que hoje em dia ela é a base comum em que todos nos movemos, não importa qual seja nossa ocupação. Nossos smartphones, as plataformas de multimídias, as ofertas de diversão tão valorizadas para nossa inserção nos grupos sociais - tudo isso sequestra nossa atenção o tempo todo. Quando nos lembramos do que queríamos ou pretendíamos fazer, dizemos que "não temos tempo".

O livro de Bailey vem nos mostrar algo muito simples, mas fundamental como o ovo de Colombo.

Pensemos quantas vezes, quando estamos nos divertindo ou simplesmente relaxando, nos cobramos por não estar fazendo algo útil? E quantas vezes, na mão contrária, lamentamos o tempo que temos de trabalhar ao invés de tirarmos umas boas férias, fazer algo agradável ou ficar no ócio? Somos assim mesmo, nunca estamos plenos naquilo que fazemos. Mas isso é pelo fato de não entendermos em qual modo nossa atenção está. O autor de Hiperfoco afirma que temos dois tipos principais de foco: o Hiperfoco, que é como ele chama a concentração num dado assunto, trabalho, situação, etc., e o Foco Disperso, que é o modo de atenção vaga, ou distribuída, digamos, por aquilo que acontece à nossa volta ou no nosso interior, sem um alvo definido. Assim, trabalhar é estar no hiperfoco; divagar é estar no foco disperso.

É fácil exemplificar. Enquanto escrevo esta resenha estou em Hiperfoco, concentrada nas ideias que absorvi e que poderão traduzir o essencial do livro para quem não o tiver lido. Daqui a pouco vou me sentar para almoçar na companhia de alguém, certamente vamos apreciar a comida, o ambiente, conversar sem objetivo, ouvir música. Eu então estarei no modo que o autor chamou de Foco Disperso. Parece óbvio, mas antes de poder gerenciar é preciso reconhecer claramente o modo de funcionamento da nossa mente. Isso significa estar presente, viver no presente, que é, em última instância, o único significado de estar vivo. Só nos lembramos daqueles momentos em que estivemos presentes, conscientes de nós.

Grande parte do livro é dedicado a conselhos e dicas para ficar em Hiperfoco, driblando as distrações. Num estilo popular, Bailey vai desfiando estratégias, como deixar o telefone celular fora da sala de trabalho, ou no modo avião, para não ser interrompido por mensagens, e-mails e publicidade; permitir-se pausas para recarregar as energias mentais e outras. Nada de muito novo, a não ser algo fundamental: precisamos nos planejar. Nosso cérebro tem uma capacidade enorme de desempenho se o mandamos fazer algo. Uma mente ociosa vai naturalmente vagar ou andar em círculos, como, perdoem a comparação, um cachorro sem dono. Determinar para nós mesmos o que vamos fazer, e em que horário vamos fazer, é o começo de uma nova vida, menos frustrante e mais satisfatória.

Mas é sobre o  desprestigiado Foco Disperso que recebemos uma grande notícia. Somente quando não for intencional é que ele será nocivo ou pura perda de tempo. Lembram-se dos antigos aconselhamentos de ter “pensamento positivo”? Penso que era isso o que se estava intuindo, mas ainda sem entender que o pensamento positivo ou negativo se referia ao Foco Disperso. Bailey faz essa distinção, mostrando que nem toda divagação é inútil. Pelo contrário, ele mostra o quanto necessitamos desses momentos de foco disperso. Às vezes é nesse foco que enxergamos num relance a solução de problemas que parecíamos não ver quando estávamos debruçados sobre eles. É no Foco Disperso também que as ideias isoladas se conectam em nossa mente, solidificam nosso conhecimento e formam as bases para a criatividade. Nunca mais o tal diabinho em nosso ombro direito vai nos criticar por obedecer ao do ombro esquerdo e sair para dar uma longa caminhada na natureza, sem motivo ou razão aparente, simplesmente por... nada. Aliás, já repararam como, agora que temos uma câmera fotográfica disponível no celular, não resistimos à tentação de fotografar tudo o que vemos durante nossas atividades no modo Foco Disperso? Não será um meio subconsciente para tentar justificar nosso ócio, dizendo a nós mesmos que temos, sim, uma finalidade? No nosso mundo distorcido, tudo parece só ter sentido se produzir algo, como uma foto para postar. Perdemos nossa capacidade de simplesmente sentir as coisas. Ao dar um passeio com a intenção de relaxar, por exemplo, ou de conhecer o lugar, ou de movimentar o corpo, estarei no modo Foco Disperso, mas motivado.  Dessa forma despreocupada, posso me manter intencionalmente conectada com as impressões que estiver recebendo do ambiente ou com meus próprios pensamentos, sentimentos e sensações. É quase uma forma de meditação.

O Foco Disperso pode, e deve, portanto, ser buscado intencionalmente. Ele é também uma poderosa fonte de recarga das nossas energias mentais. Há muitas coisas geralmente prazerosas que fazemos nesse foco: passeios, todo tipo de lazer, música, conversas, um hobby, uma leitura, e assim por diante. Tudo isso que é fundamental para nossa saúde mental, também vai determinar, na outra ponta, a boa qualidade do nosso trabalho em Hiperfoco. Como se os dois tipos de focos correspondessem à respiração. No Foco Disperso você recebe impressões e energia – é a inspiração. No Hiperfoco você expressa o resultado das conexões feitas em sua mente na forma de um trabalho – é a expiração.

Outra noção interessante do livro é a de “espaço atencional”. O que é isso? É tudo o que habita nossa mente num determinado momento, quer sejam impressões recentes ou informações já cristalizadas na forma de conhecimento. Nesse sentido, fazer muitas coisas em Foco Disperso tende a aumentar muito a abrangência do nosso espaço atencional, o qual estará muito mais recheado de coisas úteis que vamos necessitar na hora de fazer nosso trabalho em Hiperfoco. Percebeu a importância de ler, estudar, viajar? Tudo vai estar lá no seu espaço atencional quando precisar. Por outro lado, Bailey diz uma frase que grifei com lápis em meu livro: gente bem-sucedida cuida muito bem do que deixar ou não deixar entrar em seu espaço atencional. Se não queremos ter lixo em nossa casa, vamos deixar que entre lixo em nossa mente?

Por fim, recomendo a leitura para um aproveitamento mais didático das ideias de Bailey. Quantas horas e em que período vou me dedicar hoje a meu trabalho em Hiperfoco? Quais períodos dedicarei a atividades em Foco Disperso? Planejar o nosso dia ou nossa semana levando em conta em qual modo de foco estaremos nesta ou naquela tarefa é o princípio de um trabalho de organização interna. Sem ela, corremos o risco de chegar ao final da vida sentindo que carregamos um balde furado e não conseguimos transportar nada. O balde é a nossa atenção.

 

FIM

 Crédito da imagem: Edgardo K.


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[i] Bailey, Chris - Hiperfoco, editora Benvirá


sexta-feira, 19 de julho de 2024

A HORTA

 A HORTA 

(crônica ficcional)


Vida da gente é igual à horta da comunidade. Numa época tinha uma fartura, era todo o tipo de ervas de tempero: alecrim, manjericão, sálvia, cominho, salsa, manjerona e não sei o que mais. E tinha os canteiros de lavanda, e os de tomatinhos, além das ervas de chá: poejo,  macela, boldo, hortelã... Ainda vejo que beleza de horta a gente tinha lá. Mas as plantas foram minguando, acabando por elas mesmas e ninguém repunha. Uma senhora japonesa foi que plantou, e toda manhã ia lá cuidar. Ela ensinava a mulherada, comprava as sementes,  ensinava a plantar. Todo o mundo colhia, e quanto mais a gente tirava as folhas, mais os canteiros se enchiam. Mas a japonesa foi embora pro interior morar com o filho. A horta foi pouco a pouco rareando. Como a vida da gente...! Antigamente eu tinha um montão de verduras diferentes, coisas que eu fazia, lugares, pessoas... Minha vida era cheia do que colher, de diverso sabor. Pois foi tudo rareando devagar, agora o que tem é só o que resistiu e endureceu, fincou raiz no chão e ocupou a terra esvaziada pelas outras coisas que morreram. Que nem o manjericão na horta: cresceu e aumentou, está uma touceira! Pudera! Não tem mais nada do lado. Manjericão na minha vida é a atividade na igreja como voluntária; foi o que me ficou dos tantos afazeres que eu tinha. Pensar que já fui cantora na minha mocidade! Cantava em dupla com a Martina, nas festas da igreja da minha cidade. Ela tocava violão e nós tínhamos as vozes que se completavam no tom. O pessoal aplaudia muito, até nos convidaram pra gravar um disco. A Martina estava me ensinando a tocar violão,  mas aí ela morreu de pneumonia e eu nunca mais quis saber de música... Tive a época também de família grande. Quando meu Moacir era vivo nossa casa era movimentada; ele arrumava umas rodas e vinha muita gente. Os netos eram pequenos,  gostavam de passar férias na comunidade, estavam sempre aqui em casa. Agora eles estão crescidos e vêm me ver só antes do Natal. Trazem alguma lembrança, uma louça, um vidro de perfume. Depois não os vejo mais o ano todo. Canteiro que quase secou. Também tive meu sucesso na igreja com as crianças, ensinando costura, crochê, bordado, essas coisas. As crianças naquela época se esforçavam, elas faziam trabalhos muito bons. No fim do semestre fazíamos exposição.  Era um orgulho pros pais, pra elas e pra mim que era uma espécie de professora de quem todos gostavam. Agora... Olha a terra secando, as plantações murchando. De vez em quando eu ainda encontrava algum tomate vermelhinho: era quando tinha excursão da igreja com a turma pra alguma cidade bonita, em dias de festa. Outro dia fui ver, tomateiro não tem mais. Passeios meus não tem mais. Às vezes eu acordo cedo, ainda está escuro, então fico sonhando acordada, pensando que bom seria uma chuvarada incomum, que fizesse a minha horta reflorescer toda. Isso seria como entrar numa fonte da juventude. O que nasceria outra vez? Um namorado! Eu o vejo chegando viril e bem ajeitado e com cheiro de loção após barba. E eu que estou no banho, grito: "Entra!" e chego na sala faceira, com a toalha enrolada no cabelo e outra no corpo... Porque a minha vaidade de mulher renasce com aquela chuva mágica. E eu via o modo como ele me olhava... Ai! eu via de novo aquele olhar todo derretido de desejo que me dava outra vez o calor e um quase desfalecimento... Ah, mas os canteiros duma horta crescem sozinhos só até um certo ponto, contando com sol e chuva e terra... Eles também têm seu tempo de vida útil,  depois do quê, se ninguém os colher eles vão secando, secando... Precisaria vir a japonesa, plantar novas sementes,  revirar esta terra dura, botar alguma vitamina no solo... E se eu replantasse as ervas da minha vida? Seria possível? Com esforço, quem sabe, levantando cedo e trabalhando duro, e pedindo umas mudas aqui e ali, e aprendendo e... Hoje o dia está tão quente, não parece ter sinal de chuva. Não parece muito provável que a horta comece de novo... Ah! Vou ficar sentada bem aqui, quentando o sol.

FIM

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domingo, 14 de julho de 2024

ANA E A ONÇA

 



ANA E A ONÇA

(conto)

 

- Ana, vem com a gente! 

O velho jipe cheio de lama se afastava com a turma.

Ela não tirava os olhos dele, sem compreender aquela repentina expressão de enfado. Como se ficar com ela já não fosse o supremo interesse de sua vida.

- Vamos ficar, Matias! – Ele, só olhando a grama. – Você não quer? A gente volta amanhã cedo.

Ele se sentou na beira da estrada, mãos cruzadas sobre os joelhos. Ana deu alguns passos a esmo. Que droga! Faz uma década que tínhamos combinado passar a noite na cabana, só a gente e o luar e as estrelas... e os grilos e os bichos da noite. E agora ele dá para trás? Coisa que não suportava num homem era frouxidão.

- Qual é seu problema? Tá arrependido?

O vento do entardecer jogou seus cabelos, ela nem se incomodou em afastá-los. Continuou falando assim oculta pela cortina castanha.

- Se tá arrependido de não ter voltado com eles, ainda dá tempo de correr!

- Ana, escuta...

A voz dele ficara mais áspera do que as touceiras roçando suas pernas na trilha.

- Escute pelo menos uma vez na vida: eu não estou a fim. Dá pra entender? Não é nada com você, Ana! É este lugar... Parece o fim do mundo!

Apontou as montanhas para além do descampado.

- Está vendo aquelas nuvens? Vai cair um aguaceiro. A gente vai se cagar de frio. E pra quê, santo Deus? Pra quê?

- Não estou vendo nada disso! – ela disse. – Essa mata é perfeita, tá entendendo? A cachoeira logo ali, o riozinho, as árvores... Você nunca esteve num lugar como este... você é um frouxo!

Pronto! Ela sabia que não ia aguentar sem acabar falando. A fúria começara a se acumular em sua garganta desde o carro, de manhãzinha. Matias dormira a viagem inteira. Depois, no acampamento, se recusou a provar a cachaça de Minas com aquela história de que um parente seu virara alcoólatra. Ele sempre fora careta daquele jeito? Bom... Agora ela havia estragado tudo de vez. Ele se afastava rápido, mochila nas costas; cortando caminho pelo campo, com sorte pensava alcançar o carro da turma. 

Ana ficou só. Olhou as nuvens chumbo despontando por cima da montanha e tingindo caprichosamente o céu. Enrolou-se na manta e acendeu um cigarro. De costas para a mata, na imensidão, sentiu uma estranha exaltação ao despontarem as primeiras estrelinhas. O ar era inebriante de tão vivo, carregado da seiva das plantas e do cocô dos bichos! Respirou fundo. Um verdadeiro remédio para seus dias cinzentos na repartição, fazendo tarefas sem sentido no computador.

Aquilo sim, era vida! O verde variegado da mata começou a assumir um tom uniforme de oliva cada vez mais escuro até se transformar em contornos de sombra entre terra e céu. As árvores haviam ficado silenciosas depois que o vento parou. Um cricrilar cada vez mais alto substituiu o murmúrio das folhas. Começava o período dos insetos; os vegetais, longe do sol, iam dormir. Ana caminhava lentamente, mata a dentro, apontando a lanterna. Uma memória de infância: viu-se pela mão do pai entrando num bosque de pinheiros.  Ela erguera a cabeça sem conseguir enxergar o topo e sentira uma tontura.

- Como são grandes! - E depois, tendo um vislumbre: - Eu sou tão pequena!

O pai sorriu.

- As árvores são grandes por fora; você é grande por dentro.

E vendo a perplexidade da menininha:

- Sim, filha! Toda mulher é grande por dentro.

Ai, que falta lhe fez o pai! O velho se sentiria bem naquele lugar. Não tardou a encontrar a clareira. Lá estava a barraca que eles haviam montado pela manhã, os restos da fogueira; perto das cinzas, duas ou três garrafas vazias; e o galho quebrado onde Matias havia pendurado uma corda para fazer um balanço.

Seus amigos, que decepção. Haviam combinado acampar no bosque, mas o cair da noite os fez mudar de ideia. Ela devia ter imaginado. No começo, quando ainda não tinha sido adestrada pelas regras, conversavam sobre assuntos diversos e Ana argumentava em favor do bom senso: abrir estradas acaso era mais importante do que deixar as árvores lá? Construir prédios era mais lógico do que proteger os exíguos espaços verdes? Não eram justamente esses terrenos vazios, ou ocupados por simpáticas casas de outra época, o bem mais precioso da cidade? Quê progresso o quê! Muito cedo ela havia aprendido a calar essas ideias ‘subversivas’. Não que a levassem muito a sério – isso era o pior! – a ponto de a ameaçarem com alguma punição. Eles somente riam, riam, como se ela fosse demente. Dementes estavam todos!

 A jornada deixou-a acalorada. Ana jogou fora a manta e começou a pular, excitada pela própria ousadia. Sozinha na mata! Sozinha na mata!

- Eeeeeeiiii! Eeeeeeiiiii!

Seu grito iria se entranhando e penetrando nos galhos, nas tocas, nos ninhos que talvez houvesse por ali. Que a floresta soubesse que ela existia e estava viva! E mais: que era feita da mesma matéria que toda a natureza, não era estranha por ser humana; não, não era perigosa, era amiga de tudo e se sentia abraçada por tudo!

- Olê oláááááá...!

Riu da própria infantilidade, dançou e correu em volta da fogueira extinta, até que se cansou. Bebeu café que havia sobrado na garrafa térmica, acendeu um cigarro. A lua estava no alto agora, cheia como uma lâmpada de poste de rua, redonda como costumava desenhá-la na infância, passando o lápis em torno de uma moeda. Que lindo! Que lindo!

Há pouco havia esquecido Matias e a decepção. Agora, no silêncio, isso voltava, e uma sombra passou na frente da lua. Lembrava-se do dia em que se conheceram. Foi na grande enchente no litoral. Matias, que estava numa temporada de surfe, também tinha ido ajudar os moradores. Ele a viu entrar na correnteza e trazer um cãozinho ilhado para um casal de velhos que gritavam por ele, aflitos. Os cabelos de Ana pingavam lama, Matias ofereceu-lhe uma toalha, rindo:

- Com certeza você não é como essas Barbies que andam por aí! É de carne e osso, pelo visto. Parabéns!

E os dois foram tomar chocolate quente. Como ele tinha mudado tanto? Era igual aos Kens, agora.

Seu destino seria ficar sempre sozinha? Por que as pessoas não compreendiam? Por que eram tão covardes? Ou ela seria louca? Anos atrás, sua mãe queria que ela disputasse o concurso de miss. “Você leva tanto jeito, Ana!” Ela ria, subia na moto e saía chispando. A mãe ficava no portão murmurando: “Ah não, isso não é muito feminino”. Sua mãe sofria, tinha expectativas. Afinal, todas as mães deste mundo não sofrem com a individualidade dos filhos? Não é isso justamente que faz a humanidade evoluir?

- O que me importa?

Sentia o coração contente, como se a companhia do mato o fizesse pulsar melhor. As picuinhas da vida, ali, pareciam tão insignificantes. Estou em casa, em casa...! Chegava até ela o som abafado da cascata jorrando... De vez em quando o barulho ritmado da água caindo era cortado por uma espécie de ronco curto e grave. A floresta é uma verdadeira orquestra tocando seus mil instrumentos. Ana sentiu os olhos pesados. Apagou o cigarro e se enfiou no saco de dormir. Logo embarcou em um sono cheio de sonhos. Uma hora estava com Matias deslizando em altas ondas; logo estava correndo por uma estrada imensa, para em seguida, sem saber como, ver-se no cume de um penhasco e pensando, intrigada, como faria para descer de lá. Foi despertada por um daqueles roncos graves, já não tão curtos nem tão longínquos. Parecia ser um felino rondando as proximidades. Mas que bobagem! Que felino vivia tão perto da estrada? Vieram-lhe à mente as brincadeiras dos colegas quando ela avisou que ia passar a noite na clareira. “Ei, gente! A Ana quer virar comida de onça!”. Que besteira, pensou. Mas o sono tinha ido embora de vez. Com a manta nos ombros, Ana saiu da barraca. A garrafa vazia, nada de café. Ficou bem quieta, ouvindo. Outro rugido mais forte fez seu coração saltar. Meu Deus! Deve ser onça mesmo!

Seus olhos estavam fixos na galharia escura de onde parecia vir o rugido. Teve um rompante de iniciativa e começou a juntar galhos e pequenos troncos numa espécie de barricada. Ficou suada e agitada com o esforço. Sentou-se e esperou, trêmula. Nenhum som se ouviu por muito tempo. Ana reacendeu o toco de cigarro. Seu próprio coração no peito parecia uma locomotiva desgovernada. Ora, dona onça, quer vir? Venha! Venha que eu não tenho medo da senhora...

A noite se fechara em seu capote preto. Nem estrelas, nem lua, nem brilhinhos de orvalho... Pois sim. Uma mulher não pode fazer mesmo nada... Nunca estar sozinha consigo mesma... Sempre obedecer às regrinhas ridículas... A cabeça de Ana pendeu sobre os braços. Agora ela estava no centro de uma roda de mulheres jovens e velhas, que cantavam e giravam. Alguns rostos lhe pareciam familiares, outros nunca vira antes. Dentro do círculo, Ana não sabia o que devia fazer... Súbito levantou a cabeça, despertando. Sentiu a presença do animal. Era uma onça e estava bem ali! Em cima da barricada, a pouco mais de um metro de distância, a onça, imóvel, a encarava. Oh Deus, ela está ME olhando! O que estará pensando? Em seus olhos amendoados, o risco preto que os cortava crescia e diminuía, como se acompanhasse os pensamentos do animal, refletindo. Ah não...! Eu devo ainda estar sonhando. Foram aquelas mulheres da roda que... Não, isto é real! A onça não se mexia. Seu olhar era focado, intenso. Olhar de predador para imobilizar a caça? O rosto da onça era tão expressivo. Dir-se-ia uma mulher triste, triste... Não, não. Uma mulher que sabe que tudo é irremediavelmente triste, e mesmo assim vai à luta. As faces da fera estavam pendidas, o olhar miúdo e líquido... Minha avó me olhava assim! Será que ela também estava se lembrando? Teria memórias de instinto ancestrais? Ana pensou ver lágrimas brilhando no canto de seus olhos amarelos; teve vontade de se aproximar, falar com ela. Quis dizer que a entende, sim; que sendo fêmea, sabe a tristeza e a fome e a alegria que a vida é... De súbito, a onça arreganhou as faces, mostrando os dentes poderosos e soltou um rugido que ecoou na mata. Ana protegeu a cabeça com os braços ao sentir que ela ia pular. E a onça pulou... 

Ao levantar a cabeça, Ana pôde ver o animal se afastando e sumindo entre as árvores do fundo. O pedaço de carne de churrasco que estava na grelha havia sumido.

O dia amanheceu azul e ensolarado. No celular Ana viu uma mensagem de Matias: “Te pego na estrada ao meio-dia?” Ela se enfiou debaixo da cortina de água da cachoeira. Brrrr! Todas as células do seu corpo acordaram e pularam de gozo e alarme. Perigo e prazer, sonho e comida, o ontem e o sempre... Nossa! Aquela onça sabia de tudo. Enxugou-se com toda a calma, divertindo-se com a algazarra dos pássaros. Conseguiu fotografar um enorme tucano para mostrar à mãe.  Depois juntou seus pertences, dobrou a barraca e deixou um pacote de biscoitos para o caso de a onça voltar. É como um bilhete meu para ela, pensou. E só então respondeu a mensagem do namorado: OK.

 FIM


Imagem: pintura de Marisa C. Barros

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terça-feira, 25 de junho de 2024

MICROCONTOS

 Contos condensados: basta acrescentar uma gota de imaginação e o drama surgirá inteiro.




LIBERDADE DE ESCOLHA

Acordou em sua cama morta. Pensou em chamar o marido. O folgado nem notaria para tomar as providências. Aí se lembrou do sonho: ela ia se casar, mas era o noivo. Ser homem autocentrado, amado era tão mais fácil. Incorpórea, agora era livre. Chutou a roupa no chão e saiu a aproveitar sua eternidade.


DIGNO 

O farol demora. Em pé na calçada o homem tira o avental, o boné e os enfia na mochila junto com o cartaz de vendedor. Descalça os tênis, as meias e os troca por havaianas. O trânsito zune. Tira a camiseta, enxuga com ela o suor, veste outra listrada. Pega a mochila e sai gingando. Um novo homem.


O ALGORITMO 

Ficou vendo as mercadorias caindo enquanto o carrinho se enchia. Ele só precisou mostrar a cara para o Algoritmo saber do que precisava. Na rua parou diante de um telão: alguém discursa sobre o futuro da nação. Dizem: é o novo presidente que o Algoritmo escolheu para nós. Ele vai para casa pensativo.


CONVERGÊNCIA 

No caminho da escola havia uma certa casa. O menino espiava aquele pátio onde as criaturas tomavam sol: deficientes de nascença. Uma menina da sua idade, apoiada num bastão, auxiliava os demais. Um dia a surpresa: a menina usando óculos escuros estava na sua classe. Foi falar com ela e viu o mais lindo sorriso que já vira.


O AGREGADO

No passa-anel notou pela primeira vez que as mãos do seu irmão eram brancas. Por que pergunta? - disse o Padrinho - Acaso não é bem tratado aqui? Daquele dia em diante não teve graça a brincadeira, sabendo que um dia o irmão seria o patrão.


ENCONTRO DE FAMÍLIA 

Soou a campainha, ela tirou o avental. -Mamãe,  este é o pai do Zuza. Meu Deus! É ele mesmo? Os olhos que se cruzaram viram-se na adolescência perdida. -O assado parece delicioso - disse a mãe de Zuza.  Mas ela pensava se ele também não abandonaria sua filha sem uma palavra... O jantar foi estranho.


SANSÃO 

Entreabriu os olhos pesados. Verdes e marrons se mesclavam sob o azul. Não via mais o pátio conhecido, mas podia ver longe na mente, até a praia. As patas já não o levavam ao pote, a fome já não doía. Mas faltava ainda uma coisa. Então ouviu o som da voz do menino e cerrou para sempre os olhos.


RAPTOS

-Mamãe está suspeitando da empregada...

-Gente idosa é desconfiada.

-Disse que as coisas somem da despensa como se houvesse ratos.

-E ela pensa que a ratazana é a Dita...

Fizeram a prova e apareceu mesmo um rato na ratoeira.

-Desconfio da empregada - repetiu a velha.

-Mas, mamãe, você não viu o rato?

-Não vi nada, não. A Dita deve ter roubado.


-o-0-o-


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domingo, 26 de maio de 2024

ADICTOS CONVICTOS

 Crônica



A vida é uma droga e todos precisam de uma para viver. Eu explico. Não foi sempre assim. Ao nível do animal não havia complicação. Mas o macaco desceu da árvore e o homem se viu diante da encrenca. Nada é totalmente certo, nada totalmente errado. A razão lhe mostra o certo a fazer, mas os instintos o levam a fazer o torto. Sem mencionar a sina terrível de o homem ser o lobo do homem. O veadinho aceita sem drama que o leão é seu predador natural. Mas o homem não pode se resignar que seu vizinho, seu patrão, os políticos que o governam sejam seus predadores; já é pedir demais ao pobre bípede. E sem mencionar, ainda, a cobrança. A invisível e esmagadora cobrança que pesa sobre ele desde que nasce. É tudo aquilo que esperam que ele faça, que aguente, que seja. A cobrança divide o berço com ele e não o largará no caixão final.

Como esperar que o homem sobreviva sem uma droga, uma ilusão qualquer? Quando tudo começa a ficar insuportável, para alguns o cigarrinho traz de volta a magia. Para outros é a bebida que age contra a gravidade,  retira o peso da vida. Mas não são só as de ação fisiológica; há as drogas psicológicas. Há os que se refugiam nas artes, querendo crer na beleza; os que projetam suas misérias na vida de personagens de ficção; os que rezam e esperam ser salvos quando o resto da humanidade perecer... Incontáveis são os truques que os homens inventam para suportar a sua vida. Droga, jogos, literatura,  religião,  artes, guerra, política e poder... Sem esquecer a droga "tio Patinhas", viver para ganhar dinheiro, cujos adeptos só aumentam. Quantos podem jurar que vivem de cara limpa, que aceitam a natureza e o destino?

Conheci um homem dependente do ódio. Qualquer outra forma de sentimento lhe parecia ser covarde e indigna; odiando, sentia-se superior a todos. Conheci outro cuja adição era a esperteza. Sentia-se vivo enganando os outros, uma vez que, para ele, era a única forma de não ser enganado. Assim, almoçava estelionato e jantava trapaça. Um dia conheceu uma moça, enganou-a e fez um filho nela. O menino cresceu e o enganador afeiçoou-se tanto a ele que não suportava a ideia de que seu relacionamento com o filho não fosse verdadeiro. Daí em diante sua droga não funcionou mais.

Sérgio era um ativista político ferrenho. Sentia que sua vida se justificativa lutando contra as injustiças e os maus políticos. De protesto em protesto, finalmente ele viu seus heróis eleitos assumirem o poder... e cometerem os mesmos erros que seus antecessores. Sérgio teve que procurar outra droga e descobriu que podia ser um bom pastor de igreja.

Ana nasceu para o auto sacrifício. Sua mãe era doentinha e queria a filha sempre junto de si. Ana cresceu, não se casou e abraçou o voluntariado, cuidando de velhinhos, doentes e órfãos. Até que um dia olhou-se no espelho e viu que a juventude havia passado. Então nunca conheceria o amor de um homem? A ternura de filhinhos? As pequenas aventuras e diversões? Ana derramou lágrimas, sentindo muita pena de sua vida sacrificada. E assim reforçou a sua droga.

Mas basta de exemplos... São tantas as estradas desta vida que não teriam fim. E quanto a você,  qual é a sua droga?




sexta-feira, 24 de maio de 2024

A Chegada dos Setenta

Crônica

"Hoje eu me sinto

Como se ter ido fosse necessário para voltar"

Gil




A sensação ao olhar a paisagem aqui do alto é de perplexidade. Como cheguei até aqui? Como não me dei conta de todos os anos, meses, horas que se passaram? Dizem que os momentos vividos com nossa presença, nosso Eu real, ficam gravados na memória; o resto se desvanece como neve num vulcão, o tempo devora. Na verdade, se tivéssemos que reter nossas vivências completas, isso seria uma tortura. Não teríamos espaço em nossa mente para o novo. Não acho ruim que minhas lembranças sejam só as de momentos seletos, tanto de prazer quanto de dor. A natureza é sábia, nos preenche com o que cabe e não transborda. 

Sete é conta de mentiroso. Por volta dos sete anos entramos na escola e somos encharcados com educação e aí começam as mentiras. É quando todo o mundo se dedica a nos preencher com a cultura, isto é, com as mentiras da sociedade e nos ensinam a fabricar nossas próprias mentiras, sobre nós e os outros. Mas aos setenta já somos crescidinhos para nos enganar voluntariamente. Queremos tudo a limpo, nada de conversa fiada. Ainda acalentamos algumas ilusões agradáveis sobre nós mesmos. Em alguns aspectos houve amadurecimento; em outros, continuamos verdes. Mas desejamos, mais do que tudo, a verdade. Já não damos tanto valor ao que pensam de nós; queremos saber o que nós pensamos de nós. Sou realmente capaz de fazer o que digo? Sou uma pessoa confiável? Minha capacidade está aumentando ou diminuindo? E o mais importante: faço realmente o que quero e preciso? Por que deixo de fazer? O que espero? Do que tenho medo?

Aos setenta anos as perguntas são difíceis. São tantas as demandas não atendidas, os projetos que ficaram na caixinha dos pendentes. É hora de fazer uma boa limpeza nela. Descobrimos com satisfação, por exemplo, que a maior parte dessas pendências já não têm nenhum sentido: lixo com elas. Não passavam de ilusões, coisas que queríamos fazer para agradar aos outros, ou simplesmente já as realizamos por outras formas. Feita a peneira, as pendências que ficaram na caixinha... Ah! Vão ser a nossa lei daqui para frente.

Nesta fase da vida pensamos em nossos filhos e netos que sobreviverão a nós. Eles nos conheceram realmente? Que imagem terão de nós quando tivermos morrido? Quando minha mãe morreu e li o que ela havia deixado tive a certeza de que nunca a tinha conhecido de verdade. Nos seus escritos ela não era apenas mãe, era ela mesma, com todo o feixe de complexidades e contradições e milagres que constitui uma pessoa. E depois de ler aqueles cadernos eu a amei mais.

Quando tentamos falar da nossa própria trajetória – e vemos isso nas entrevistas de pessoas famosas - sempre queremos fazer um enredo, contar uma história com começo, meio e fim, e com nexo. Eu sou alguém que pensa a vida como um drama - comédia ou tragédia, mas sempre dentro de uma história possível. Se pelo menos o diretor invisível de nossa vida fosse coerente com as teorias que definem uma boa história, isso seria válido para a vida real. Mas não é. A vida não tem o nexo das narrativas ou qualquer outro nexo humano; ela tem seu próprio grande Nexo, que desconhecemos. Isso não impede que os dramaturgos e roteiristas tentem contar as biografias das pessoas notáveis como se fossem enredos. E nós as apreciamos, mesmo sabendo que um filme muito fiel à vida de qualquer pessoa seria tremendamente chato.

A vida tem sua própria simetria e beleza. O nexo é sempre uma invenção - uma mentirinha artística, para tornar atraente a história. Encontrar as correspondências entre diferentes elementos da vida, por exemplo. Ou as contradições, os paradoxos. Quando tento contar minha vida para mim mesma, o grande dilema é: qual foi o sentido? Tudo depende de quem conta. Posso tentar contar minha vida como uma epopeia: as peripécias e reviravoltas de alguém numa grande batalha e a conquista final; inimigos e parceiros, ajuda sobrenatural, o Bem contra o Mal. Como poderia? Se existe algo que conquistamos ao chegar aos setenta é a humildade de aceitar aquilo que não sabemos. O desenho da nossa vida deixa de ser o de uma pista de corrida para ser o de um fractal. Qualquer pedacinho passa a ter o mesmo valor e sentido do todo. Cada hora é igual às sete décadas, cada minuto é igual a uma hora.

O desafio, então, é fazer valer o dia em que tivemos a sorte de ter despertado mais uma vez. Cuidar de cada amizade como se fosse a coisa mais preciosa do mundo, porque já entendemos que cada pessoa é um milagre. Dar atenção ao que queremos fazer e dedicar nosso tempo a esse trabalho que nos faz bem e nos preenche. Não ter preguiça de aprender coisas novas, desde que façam sentido, sem que precisem ser úteis. Não ter preguiça de fazer faxina nas ideias que ficaram velhas, nas mágoas e tristezas que ficaram gastas, nos hábitos que só nos atrapalham. Fora com eles, porque nós precisamos de espaço no nosso ser. E, claro, o desafio inclui também certa coragem de deixar coisas para trás, de aceitar como naturais as perdas, as transformações por que passam as situações e as pessoas. É como voltar à puberdade: existe o medo, mas é muito maior a excitação ante a aventura de viver.

 

-x-

 

 



terça-feira, 7 de maio de 2024

CARRIE, O PODER DAS BRUXAS

 



Comentários sobre o best-seller de Stephen King

 

Por favor, não comece dizendo que não curte histórias de terror. Não sem antes conhecer a obra prima de Stephen King: Carrie, primeiro romance do autor, publicado em 1974. Carrie logo se tornou um best-seller e um clássico no gênero, sendo transformado no filme Carrie, a Estranha, em 2013 e servindo de inspiração para muitos autores e cineastas.   

Em primeiro lugar, por que um clássico? Carrie é daqueles romances exemplares que nenhum estudioso ou candidato a escritor deveria deixar de ler. A história da adolescente tímida criada por uma mãe fanática, sofrendo constante bullying até revelar poderes paranormais e arrasar uma cidade é contada, em sua maior parte, por meio de recortes, notícias, entrevistas e depoimentos. A grande tragédia final vai sendo sugerida pouco a pouco nas entrelinhas, ao mesmo tempo em que um narrador onisciente acompanha a protagonista de perto em seus momentos de maior aflição, até o desenlace. O suspense resultante é infalível. Uma vez começado, é difícil largar o livro. Queremos saber o que acontecerá (ou aconteceu, segundo os depoimentos e recortes), como e por quê.

Vamos falar dos subgêneros do terror. Terror, horror ou trash – os teóricos são unânimes em colocar o último como o de menor nível dos três: trash é o gênero mais apelativo, que mostra de forma explícita cadáveres, zumbis, monstros e coisas do tipo. Nosso exemplar brasileiro do gênero nos filmes seria o José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Porém, quanto à predominância entre o terror ou o horror, há divergência. Alguns caracterizam o horror como o nível mais elevado: é aquele que consegue levar o leitor ao medo mais intenso, porém, sem explicitar nada ou quase nada da coisa temida. Gosto de citar como exemplo o conto A Mão do Macaco, de William Jacobs, que virou até minissérie da Globo. É totalmente assustador, mas nunca vemos aquilo que nos aterroriza, a não ser em nossa própria mente.

Segundo explicações do próprio Stephen King, o gênero que ele escreve se compõe de todos esses tratamentos. O terror – as expectativas criadas que geram medo no leitor, que o deixam “aterrorizado”; o horror – a concretização daquilo que foi anunciado e preparado, deixando o leitor “horrorizado”, e a repulsa. Em suas próprias palavras:

“Reconheço o terror como a melhor emoção e por isso tentarei aterrorizar o leitor. Mas se eu achar que não posso aterrorizar, tentarei horrorizar, e se descobrir que não posso horrorizar, irei para o nojento” (King, Stephen, em Dança Macabra).

 Atualmente, com tantos filmes e séries de terror, os subgêneros cresceram e há uma extensa categorização deles. Carrie poderia ser classificado como terror psicológico ou terror teen.

De acordo com a classificação de King, ele estaria entre o terror e o horror porque, embora haja a descrição de cenas trágicas, o que nos aterroriza não é a destruição propriamente dita das pessoas e da cidade, mas a causa daqueles fatos, o poder paranormal de Carrie. O autor consegue apresentar essa causa como uma hipótese científica, a telecinese. Segundo notas que vão sendo enxertadas na narrativa, se trataria de uma doença genética, da qual somente a mulher manifestaria os sintomas (“a capacidade de mover objetos ou provocar mudanças em objetos pela força da mente”) e o homem seria apenas portador. O fenômeno se manifestaria apenas quando a mãe e o pai do sujeito fossem portadores daquela particular natureza eletroquímica da mente, por isso seria raro. Independentemente de especulações cientificas, a existência dessa explicação no romance transforma a capacidade de Carrie em algo verossímil, embora sinistro, porque fora de qualquer controle. O romance é conduzido como se um estudioso estivesse tentando entender o que aconteceu de um ponto de vista objetivo, e esse narrador oculto é que nos conduz na mesma ânsia de compreender, e que nos mantém, ora distantes de fazer julgamentos, ora sentindo na pele com os personagens, com seus medos, suas crenças e preconceitos. Essa alternância entre distanciamento e envolvimento na trama torna a leitura eletrizante.

A história em si é daquelas que nos agarram pelas tripas e pela emoção, carregadas de simbolismo, onde os ingredientes são os grandes conflitos que habitam as profundezas do humano. A personagem Carrie traz em sua composição vários mitos relacionados à mulher. Ela é a Eva pecadora, é a Cinderela desprezada, é a maga, é a santa e é a bruxa que se esconde no íntimo de todas elas. King consegue contar-nos essa história monstruosa da adolescente rejeitada que resolve se vingar dos que lhe fizeram mal com a arma invencível do poder de sua mente, sem deixar de revelar também a sua face sensível, inteligente, habilidosa, romântica – ou seja, a face de uma mulher como outra qualquer, ansiosa por amar e ser amada.

Nesse sentido, a história de Carrie é a de uma Cinderela às avessas. Enquanto no conto de fadas a natureza preciosa da Gata Borralheira é percebida e revelada quando o Príncipe a promove a Princesa casando-se com ela, Carrie está quase chegando ao seu final feliz, mas tudo acaba mal para ela. Também no seu caso existe um Homem que vai se encantar com sua natureza feminina no dia do baile fatídico na escola; alguém que tem para ela outros olhos, como se a menina desprezada tivesse se revelado como Cinderela para ele. Mas a trama se completa com o horror que vem sendo anunciado desde o início, e a quase princesa torna-se a feiticeira malvada da sua vingança.

Notícias como essa têm sido comuns em nossos tempos, conferindo atualidade ao romance de Stephen King. Adolescentes frustrados, com problemas de desajuste social e quase sempre vítimas de bullying, que resolvem se vingar matando pessoas inocentes, na escola, na igreja, no shopping ou na rua. Curiosamente, a maioria desses crimes são cometidos por adolescentes do sexo masculino. Aqui nós temos uma criminosa. Qual o peso disso na história? Em Carrie há uma conotação direta entre o sangue menstrual, o poder e o mal. A menina, segundo as hipóteses científicas apresentadas, nasceu portadora da tal doença de telecinese, mas isso havia ficado esquecido. Somente ao ter sua primeira menstruação com grande atraso, aos dezesseis anos de idade (soma igual a sete, o número místico) é que o poder mental aflorou nela com toda a força. Na situação de estresse máximo em que se encontrava, sem encontrar alívio em parte alguma, Carrie valeu-se desse dom insuspeitado para usá-lo como arma invencível de destruição. Não é exatamente a motivação das memoráveis bruxas? Lembremo-nos de Maléfica de A Bela Adormecida, que era uma fada como as outras, mas ao não ser convidada para o batizado de Aurora, lança sua maldição sobre ela. As colegas de Carrie também a haviam maltratado durante um episódio de manifestação da sua menarca. Assim, a relevância do sangue menstrual na história traz os preconceitos milenares e o temor dos homens que viam no sangramento ritual das mulheres um signo de poder e de bruxaria. Em Carrie torna-se real esse temor.

Os momentos em que a protagonista utiliza seus poderes paranormais – que para ela são normais – são descritos com grande detalhamento das sensações físicas e alterações em sua fisiologia e em sua psique, o que irá conferir maior realismo aos fatos terríveis que se seguirão.

Mas por que a menina não conta com a ajuda da mãe em suas aflições? Atenção, carinho, compreensão por parte da mãe não teriam evitado que ela chegasse ao limite extremo? A questão é outro vórtice de terror da história, pois a maternidade é virada de ponta cabeça, da mesma forma que a feminilidade. A fanática mãe de Carrie vê pecado e castigo em tudo. O deus em que crê é um deus implacável e sedento de sacrifícios. Para ela, a própria filha é um mal que deve ser extirpado do mundo. Pobre Carrie! Vítima de uma doença que a predestinava a ser marginalizada e de uma mãe que é a pura “madrasta” dos contos de fada ao projetar sua psicose no que ela considerava ser a única religião verdadeira; ao interpretar literalmente toda afirmação sangrenta da Bíblia e possuída por uma necessidade insaciável de punir e castigar a todos como um Anjo Vingador. A crueldade dessa “madrasta” excede qualquer imaginação e as cenas finais do romance são de puro terror, no enfrentamento entre mãe e filha.

 Carrie também apelará, em seu maior desespero, para esse deus que lhe foi impingido desde pequena por sua mãe e do qual tem medo. Mas ela não é ouvida. No entanto, ela poderia ter sido salva do colapso - talvez não por Deus, que em sua religião deformada lhe é inacessível, mas pelo amor de um Homem. Nos poucos instantes do baile em que se sentiu reconhecida e desejada pelo garoto, ela esteve às portas do paraíso. O mito de Cinderela é tão didático quanto uma boa sessão de psicanálise. O que nos diz o mito? Que o amor do homem é capaz de salvar a mulher de seu próprio abismo. Dependeria somente dele a mulher tornar-se Eva ou Lilith, fada ou feiticeira. É claro que nos referimos à Mulher e ao Homem no sentido arquetípico, simbólico, não de suas representações sociais que podem variar, inclusive, quanto ao gênero.

Por último, gostaríamos de mencionar uma curiosa semelhança. O autor, descrevendo as sensações físicas de Carrie ao fazer os objetos se moverem, diz que é como se seu cérebro se flexionasse de um jeito diferente do normal, e daí as coisas extraordinárias aconteciam. Essa descrição parece também muito apropriada a outro fenômeno: o da criação literária. Também no ato de criar – usando nossa imaginação, intelecto, memória e emoções - podemos dizer que a mente sai do seu estado corriqueiro, operacional; é como se ela se flexionasse sobre si mesma, e daí, a criação acontece. O mestre Stephen King sabia bem disso.

 

FIM

 

Edição que recomendo:   

* King, Stephen - Carrie – editora Schwarcz, tradução de Regiane Winarski

       

 

 

  

        

  

 

 



[1] King, Stephen, Dança Macabra

quarta-feira, 17 de abril de 2024

O JARDIM DAS EMOÇÕES de Vovó Masha

 

O JARDIM DAS EMOÇÕES DE VOVÓ MASHA

Um conto infantil para qualquer idade

 


 

Os netos da vovó Masha – Laura, Henrique e Dudu – quando vão visitá-la correm para brincar no jardim, que eles adoram. Nos fundos da casa, o jardim começa ao se atravessar um portãozinho pintado de branco, sobre o qual pende uma placa onde se lê: “Jardim das Emoções”.

As crianças atravessaram o portão com a vovó. O jardim estava ainda mais bonito do que eles se lembravam. Flores variadas nos canteiros, bosques, caminhos marcados com pedras. Voando aqui e ali, seres do reino animal: passarinhos, borboletas, joaninhas e outros insetos. Dudu foi logo brincar no balanço e vovó sentou-se com os dois maiores no banco de pedra, sob a sombra de um Ipê amarelo.

- Como eu gosto deste jardim, vovó! – disse Laura.

Vovó Masha deu uma risada bondosa.

- Eu também, querida! Mas ele não foi sempre assim...

As crianças eram doidas por histórias e pediram que a vovó contasse mais.

- Não? Como ele era antes?

- Ah... – disse a vovó, se recordando. – Na minha festa de dezoito anos...

- Dezoito? – Henrique abriu a boca de espanto.

- Sim, eu ia fazer dezoito anos e vim ao jardim buscar algumas rosas para colocar num vaso. Quando cheguei, encontrei meu jardim completamente arrasado. O mato havia crescido tanto que os arbustos espinhentos sufocaram as flores. Não havia uma única roseira... Sentei-me aqui neste banco e chorei. Estava tão desanimada! Foi então que um Pica-pau, ali naquele tronco, me falou...

- Passarinhos não falam, só cantam! – interrompeu Laura.

- Pois é, normalmente não falam – disse a vovó. – Mas aquele falou. Falou bem assim, me olhando de lado:

- Por que está chorando, Masha? Pra tudo tem remédio, tem sim!

Pensei que estava ficando louca. “Ele está falando comigo”. Mas respondi:

- Ah, Passarinho... Olhe este jardim! Passei toda minha vida cultivando estas flores, mas eu sou um desastre. Nada cresce, e o que cresce acaba morrendo.

- Escute – disse o Pica-pau. – Já ouviu falar da Maga Jardineira? Ela faz milagres com qualquer jardim, faz sim!

- Quem é essa maga? Onde ela mora? – perguntei.

- Seu nome é Magobel – disse o Pica-pau - Eu soube que ela está morando no Vale das Águas Curativas.

- Eu não o levei muito a sério – continuou a vovó. – Mas não tinha muita escolha. Corri para a estação de trem. O pássaro me acompanhou, voando por sobre minha cabeça. Tomei o trem e desci na pequena Águas Curativas. Era uma cidade diferente de todas que eu conhecia. Seus habitantes pareciam sempre felizes, sorridentes e amáveis. Tomei coragem e perguntei a um velho muito velho:

- O senhor deve morar aqui há muito tempo. Será que conhece a senhora Magobel?

- Ah! A Maga Jardineira? – disse o homem. – Claro que sim. Todos a conhecem por aqui.

 O simpático velhinho me deu um mapa meio amarrotado. Eu me pus a caminho, de olho no mapa. No local marcado com um “X” me vi diante de uma casa alegre, com um vasto jardim florido. No meio da folhagem, uma mulher agachada, usando um chapéu com fitas coloridas, cuidava das plantas.

- Com licença... A senhora é a Magobel?

- Sim. Entre, entre! Em que posso ajudar?

Pouco depois, tomando uma xícara de chá em sua sala acolhedora, contei-lhe meus problemas com o jardim dos meus sonhos. Então notei que Magobel usava um vestido azul com asinhas de borboleta ou de fada. Seria ela uma fada?

- Venha! – disse ela - Vou lhe mostrar uma coisa.

Ela me levou ao jardim e mostrou os canteiros. Havia flores de diferentes tipos, cores, formatos, tamanhos. Mas me chamou a atenção os nomes escritos nas plaquinhas dos canteiros. Havia Serenidade, Alegria, Generosidade, Criatividade, Lucidez e assim por diante.     

- Que tipo de flores eram aquelas? – quis saber Henrique.

- Foi o que eu perguntei à Maga Jardineira – disse vovó Masha – E ela me respondeu:

- Você pode ver que as flores que cultivo são de um tipo especial: são flores de emoções. Na verdade, todas as pessoas possuem um jardim como o meu e como o seu também. São as nossas emoções mais habituais. E são elas que dão a atmosfera da nossa vida!

- Eu nunca havia pensado nisso! – eu lhe disse. Na verdade, eu estava pensando no meu próprio jardim, abandonado à própria sorte. Até aquele momento, eu só tinha tido reclamações para ele! Eram as minhas emoções que estavam secando e definhando...

- Agora venha, vou lhe mostrar outra coisa. – disse a Maga.

A Maga Jardineira me levou a um depósito onde vi prateleiras cheias de vidros com tampas. Em uma das prateleiras, um gato preto dormia. Fui lendo os rótulos daqueles vidros: Desânimo, Desconfiança, Medo, Raiva, Ingratidão e muitos outros.

- Ui! – eu disse – Para que servem essas aqui?

- Essas são as pragas que tiro do meu jardim – disse a Maga Magobel. – São as chamadas emoções negativas. Se deixar que esses bichinhos cresçam à vontade, eles devoram e acabam com minhas belas flores. – E ela deu uma boa gargalhada.

Fiquei confusa, porque naquele momento a Maga Jardineira não parecia mais uma fada: ela vestia um manto negro e na cabeça tinha um chapéu pontudo da mesma cor.

- E o que você fez, vovó? – quis saber Laura.

- Magobel – eu lhe disse, vencendo meu medo – você pode me ajudar?

A Maga Jardineira me mandou esperar um instante. Quando ela voltou, estava outra vez vestida de azul-celeste, com suas asinhas de fada. Levou-me a um canto do jardim, onde um gato amarelo dormia...

- E depois, vovó? – perguntou Henrique.

- Bem, eu não entendi o que ela fez. Lembro-me que segurou minha mão direita e me mandou desenhar o formato do meu jardim, com uma caneta mágica. Fiz o desenho na palma da minha mão e o interior do desenho logo ficou preenchido com um mato denso.

- Hum... Está confuso aqui! – disse a Maga Jardineira. – Onde mais ou menos ficam as flores?

Eu apontei para os locais no desenho onde deveriam estar as rosas, as dálias, as margaridas... Ou seja, as belas emoções da minha vida.

Magobel fechou os olhos, sempre segurando minha mão e começou a dizer palavras incompreensíveis.

- O que a senhora disse? – eu perguntei.

- Oh! – disse ela – não é nada complicado. Eu simplesmente tirei as ervas daninhas que estavam matando as flores e em seu lugar plantei mudas que você já havia plantado, mas estavam sem força. Arrancando e plantando, arrancando e plantando. Simples assim.

A Maga tornou a fechar os olhos e murmurou mais palavras encantadas. Quando terminou, ela me disse, fechando minha mão:

- Cuide bem das suas novas mudas, querida! Elas são lindas! Não há razão para que não floresçam. Ah, e não se esqueça de arrancar as ervas daninhas e afastar as pragas! Não se iluda, porque elas vão sempre voltar e tentar acabar com a lindeza de tudo... Por isso é que se chamam pragas! Ha! Ha! Ha!

Estava na hora de ir. Nós nos despedimos com um abraço. Eu estava emocionada: com sua bondade, a Maga havia feito meu desânimo desaparecer, e eu não via a hora de voltar e cuidar do meu jardim. Afinal, minhas queridas plantas mereciam viver, assim como eu! Mas eu tinha uma dúvida...

- Obrigada mesmo, Magobel! Mas... A senhora fez uma transformação no jardim da minha mão... Como é que vou fazer isso no meu jardim de verdade?

- Não se preocupe! – ela disse – O que está na sua mão, está no seu coração, e o que está no seu coração vai florescer na sua vida!

Quando olhei para trás, ela acenava para mim no portão. Estava de novo com seu chapéu preto de bruxa, mas com o vestido azul de fada. Engraçado como ela convivia bem com esses dois tipos de vestuário, assim como com os diferentes tipos de emoções!

- E deu certo, vovó? – perguntou Laura, ansiosa.

- Bem... Logo de cara, não. Saí de Águas Curativas me sentindo bem mais leve do que quando chegara, o que me fez pensar que provavelmente as emoções negativas pesavam mais. Então, quando cheguei em casa...

 - Olha! Ela voltou, voltou sim!

Era o Pica-pau me esperando no portão enferrujado do meu jardim.

- Sim, Pica-pau, voltei! – eu disse – Encontrei a Maga Jardineira e foi maravilhoso! Agora vou arrumar toda essa bagunça e...

- Ops! É melhor você não entrar aí... – disse o pássaro.

Ele me contou que o jardim perdera bastante do mato, porém, havia sido invadido por uma multidão de lagartas pretas e vermelhas. No início os pássaros tentaram comê-las, mas seu gosto era horrível até para eles.

- Elas são nojentas, são sim! – disse o Pica-pau. – As pretas são gordas e rastejam; as vermelhas são rápidas e queimam como ácido.

Assim, antes de entrar no jardim, eu tive de consultar o livro que a Maga Jardineira me dera. No livro pude identificar aquelas pragas: as lagartas pretas representavam a emoção da tristeza; as vermelhas, a emoção da raiva...

 Vovó Masha notou que o pequeno Dudu havia deixado o balanço e agora também ouvia atentamente o fim da história.

- E aí? – perguntaram as três crianças.

- O livro mágico da Magobel dizia que o antídoto para ambas as pragas, - continuou a vovó - tanto as lagartas pretas quanto as vermelhas, era uma árvore chamada Manacá. Essa árvore, muito comum na mata atlântica, dava flores de duas cores: branca e rosa. As flores brancas continham emoção de alegria, que fazia espantar a tristeza. Já as flores cor-de-rosa espantavam rapidamente a raiva porque continham generosidade.

- Nossa! – Laura bateu palmas. – Eu queria ter um livro assim.

- A primeira coisa que fiz – disse vovó Masha – foi buscar as tais sementes de Manacá-da-Serra e plantá-las por todo o jardim. No começo eu usava botas e luvas de borracha para me defender das lagartas. As sementes germinaram, as árvores foram crescendo, crescendo... Antes mesmo que ficassem adultas, já foram espantando as lagartas para longe.

Quanto às outras plantas, eu nem podia acreditar! Surgiram flores de que eu nem me lembrava e pensei que estavam mortas! Outras que eu havia plantado há algum tempo, mas que regava e regava e teimavam em pender dos caules, fracas e indefesas, e agora... Que vitalidade! Exalavam a luz do sol que elas absorviam, e a devolviam ao mundo em forma de beleza. Olhem para elas!

Nesse momento, um Pica-pau de topete vermelho apareceu bicando o tronco.

- Será o mesmo pássaro dos seus dezoito anos? – perguntou Henrique.

- Oh, creio que esse deve ser um de seus netos! – disse vovó Masha, sorrindo. – Meu amigo Pica-pau me aconselhou a procurar a Maga Jardineira, e no fim, ele também ganhou um jardim muito agradável para viver e criar sua família.

- E você não procurou mais a Jardineira mágica? – disse Laura.

- Oh, sim! Nós nos tornamos grandes amigas – disse a vovó. – Mas eu já tinha me tornado Jardineira de mim mesma.

Ela olhou seu reloginho de pulso.

- Crianças, hora de almoçar!

Foram saindo, mas, a certa altura, Vovó Masha notou que Dudu havia ficado para trás. Voltaram ao jardim e o chamaram. Lá estava o garoto, muito à vontade, conversando com o Pica-pau.

 

FIM

sábado, 2 de março de 2024

A HORA E A VEZ DE JOÃO FERNANDES III

 


A HORA E A VEZ DE JOÃO FERNANDES III

Conto

 

 

- João Fernandes, o que você tá fazendo agachado aí na horta? - gritou Bibiana da porta da cozinha.

O marido não a ouviu. Ela tornou:

- O sol tá quente, homem! Vai te fazer mal.

João Fernandes se voltou:

- Então me traz o chapéu!

Bibiana se aproximou com o chapéu de palha.

- O que é isso que você tá fazendo?

Ele largou o martelo e as tábuas, enfiou o chapéu na cabeça e secou o bigode com as costas da mão.

- É uma armadilha pra pegar esse gavião filho da mãe.  Quero só ver ele roubar nossos pintos de novo! 

Bibiana abriu a boca.

- Mas como...?

- É simples. Olha... Aqui vai ficar o pinto. O bichão vem pra caçar ele, pousa aqui. Na hora em que puxar o barbante, derruba isso aqui... e bum! Fica preso.

João Fernandes ficaria muito mais tempo explicando seu plano, mas a mulher já tinha ido ver suas panelas no fogo. Se fosse dar ouvidos a todas as invenções do marido...

Não fazia muito que eles haviam ido morar no campo. João Fernandes conseguira se aposentar cedo por causa de um ferimento no braço, trabalhando na metalúrgica. Aproveitou a deixa do destino para realizar um sonho.

- Vamos nos mudar pro interior, Bibi!  Nosso filho já está adulto, tem sua família... Vamos curtir a nossa velhice.

Ele não explicou, na época, seu plano de também escrever versos. Era outro desejo oculto, que nunca saíra da imaginação para o papel. João Fernandes acreditava que longe da cidade, mergulhado na natureza e sob o céu estrelado do interior, a inspiração não lhe faltaria.  

Os primeiros tempos na cidadezinha foram bastante duros. João Fernandes havia comprado uma chácara com uma casinha razoável, e logo começou a plantar. Árvores frutíferas, milho, feijão, uma horta de verduras e um jardim para Bibiana. De sol a sol, ele trabalhava feliz, rejuvenescido. Sentindo que a coisa prosperava, ousou mais: construiu um galinheiro, e as aves passaram a ser sua menina dos olhos, bem cuidadas e até mimadas. Ele gostava sobretudo de ver Bibiana indo com a cesta ao galinheiro e trazendo os ovos bonitos, rosados, com peninhas grudadas. Nesses momentos, compunha mentalmente um verso assim: “Lá vai ela muito faceira/colher seus ovos na manhã...” Não achava a rima, porém, e o verso não progredia.

Na hora de comer a omelete, sempre repetia:

- E pensar que a gente nem precisou comprar eles no mercado!

Mas o casal começou a dar pela falta de alguns franguinhos novos. Foi o vizinho de cerca quem comentou sobre o gavião que andava rondando os galinheiros. Foi ele também que deu a ideia de uma armadilha, que o espírito empreendedor de João Fernandes logo resolveu pôr em prática.

No dia seguinte, saiu bem cedo para a avícola e dessa vez voltou com um só pinto.

- Ai, João Fernandes... - estranhou a mulher.  - Esse pinto tá tão raquítico. Não tinha outro melhor?

Mas para o que se destinava, aquele estava bom demais. João levou-o para o quintal e amarrou-o pela perna sob a arapuca recém-construída. Entrou em casa esfregando as mãos:

- Ahá! Agora é só esperar. Quero ver se aquele safardana do gavião vai se livrar dessa. Vou pegá-lo pelo pescoço e lhe dar o mesmo fim que ele deu pros frangotes.

A mulher sentiu-se um pouco afetada pelos modos rudes do marido, mas achou melhor não contrariar. Aquele, quando punha uma ideia na cabeça...

Na primeira noite não aconteceu nada.  Na segunda noite eles foram despertados por gritos e guinchos. João Fernandes vestiu as calças, trêmulo de excitação. Chegou à horta levando as cordas que tinha preparadas, mas soltou um murmúrio de decepção.

- Filho da mãe...!

A arapuca fora desarmada, mas o gavião conseguiu se safar, deixando algumas penas para trás. A mulher chegou logo depois.

- O que foi, meu Deus?!

João levantou as tábuas. O pinto continuava piando. Estava ferido, mas se salvara do gavião.

- Coitadinho! - Bibiana levou as mãos à cabeça. - Está com a patinha destroçada.

 

A mulher embrulhou a avezinha na ponta do roupão e levou-a para dentro. Tratou da ferida na pata, que era mais grave do que parecia. Aos poucos o franguinho foi se recuperando, já comia farelo às bicadas, bebia a água do prato... Um belo dia saltou da cama e saiu pulando pelo quarto como um saci. Bibiana ficou enternecida:

- Benza Deus! Não era a hora e a vez dele.

João Fernandes olhava cético:

- Só falta você querer dar um nome pra ele.

- E por que não? - disse Bibiana.  - Você é João; nosso filho é João... Pois ele vai ser o João Fernandes III. - E bateu palmas da própria traquinagem.

Os dias foram passando.

O pinto virou um frango e não saía de perto de Bibiana, pulando daqui para lá com sua única pata. João Fernandes, o Primeiro, foi se habituando a vê-lo comendo ao lado deles, na mesa, no pratinho que a mulher lhe fazia especialmente.

- Credo! - disse, rindo, o filho ao visitá-los - Esse aí que é o meu irmão?

- Não deboche dele, Júnior - disse a mãe. - Seu pai queria matar o pobrezinho, e olhe como ele é inteligente.

Para provar o que dizia, Bibiana fingiu vestir a camisola de dormir e apagou a luz. João Fernandes III pulou da cadeira e foi imediatamente se encorujar ao lado da geladeira, na caixa onde dormia.

Todos riram e a luz foi novamente acesa.

- Não falei? - disse Bibiana, triunfante. - Ninguém mexe com o meu bebê.

João Fernandes, o Primeiro, não gostou muito da predileção da esposa pelo franguinho, mas ia se acostumando. Ao entrar em casa à tardinha, cansado e louco pra tomar um banho, já encontrava o Terceiro empoleirado na borda da banheira à sua espera.

- Quem diria que ia se tornar um mascote - ele pensava. E, entrando na brincadeira que a ave esperava, fazia bastante balbúrdia para salpicá-la com água.

Uma noite o gavião voltou. Ao que parece, já se havia recuperado do trauma da armadilha e o desejo de caçar falava mais alto. As galinhas estavam agora bem guardadas no galinheiro. No escuro do quintal, o arguto gavião via apenas o brilho da tela da TV pela janela aberta. E ele não deixou de logo distinguir, por entre as risadas do casal de idosos, um piado, que era o jeito do Terceiro acompanhar seus donos. O alerta biológico do gavião foi ativado, e ele passou a rondar a casa quando a TV estava ligada. Por isso, nem Bibiana, nem João Fernandes, o Primeiro, perceberam que o galinho, que estava crescendo muito rápido, não estava mais com eles na sala. Só escutaram mais tarde um barulho esquisito de asas sendo arrastadas, e depois o terrível guincho... Correram para fora a tempo de ver João Fernandes III sendo levado pelos ares, com o pescoço quebrado e a sua única pata.

Ficaram tão consternados que não puderam entrar em casa. Sentaram-se no banco do jardim, mudos, olhando para as estrelas, esperando... o quê? Até que o dia amanheceu, e então Bibiana, enxugando os olhos vermelhos, foi preparar o café.

- O que foi, com meu irmão galo? - perguntou o Segundo, no dia de visita.

João Fernandes, o Primeiro, ergueu-se da mesa, taciturno. A mãe respondeu, recolhendo os pratos:

- Foi nada, meu filho. É só que chegou a hora e a vez dele.

 

FIM


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