quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A assembleia das árvores

 Conto fantástico




A ASSEMBLEIA DAS ÁRVORES

 

Correu um boato entre as árvores da Amazônia que as mais velhas - uma Sumaúma de raízes tortas, e uma Castanheira-do-Brasil – estavam convocando uma assembleia de emergência. Isso era inédito no reino vegetal. Mas as árvores há algum tempo vinham mudando seu comportamento.

Tudo havia começado nas margens do Rio Solimões. Em um dia que deveria ser muito produtivo para a madeireira da região, os operários chegaram com suas máquinas e descobriram, cheios de surpresa, que as árvores que eles haviam marcado para derrubar já estavam mortas, como se houvessem previsto a execução próxima. Tantas décadas de exploração da madeira viva pareciam ter feito com que as árvores – contrariando toda a lógica – adquirissem consciência do seu triste destino pela serra elétrica. E elas começaram a reagir antecipando o fim, promovendo o que a imprensa sensacionalista estava chamando de ‘suicídio verde’. A situação era calamitosa. Daí a decisão extrema das velhas árvores para deliberar uma ação de emergência. No coração da mata os pássaros se calaram quando a velha Sumaúma abriu a sessão com voz rouca:

- Amigas Verdes! Temos permanecido imóveis e mudas desde os princípios da vida neste planeta. Mas a mãe natureza urde novos ramos sempre que uma nova necessidade brota. E é por isso que adquirimos esse atributo dos animais evoluídos: a voz - e não somente a voz, mas a fala; e não somente a fala, mas a comunicação...

As árvores da floresta mal podiam acreditar: estavam ouvindo e entendendo os pensamentos da Sumaúma. Emocionadas, balançavam seus galhos para lá e para cá, ajudadas pelo vento. A oradora continuou:

- Há uma certeza que rebrilha ao sol: o nosso mundo está em perigo! – Correu um murmúrio lúgubre entre as árvores - Todas nós sabemos da mudança do clima em curso. Fomos preparadas para esta mudança há milhares de anos, quando em nosso DNA foi gravada a instrução que deveremos todas seguir. – A árvore cerrou seus grandes olhos para puxar as palavras - O nosso planeta está em vias de se tornar um deserto. Daqui a poucos ciclos, toda água doce vai desaparecer.

Ao seu lado, a Castanheira acrescentou:

- E junto com a água, é claro, desaparece o nosso Reino Vegetal.

“Desaparece o nosso reino”, “desaparece o vegetal...”  – as árvores iam replicando as falas para as mais distantes.

- E quem é o responsável pela extinção de toda a seiva na Terra? – trovejou a Sumaúma.

As árvores gemeram em coro:

- O bicho homem! O bicho homem!

- Sim, isso é claro como a luz do dia. O homem está destruindo o equilíbrio do nosso planeta muito rápido. Se o aquecimento ocorresse no ritmo previsto por nossa mãe, nós não teríamos do que nos queixar. O instinto é verde! Bastaria a cada uma de nós cumprir o projeto de recolher nossas sementes e colocá-las para hibernar... Após o recesso da água no planeta, quando a atmosfera restaurasse o equilíbrio das chuvas, nossas sementes iriam novamente despertando do seu longo sono... E as florestas da Terra renasceriam em um úmido e fértil futuro.

As árvores esfregaram os galhos em aprovação.

- Sim, mas... – disse a Castanheira – Isso aconteceria dentro do ciclo normal. Infelizmente não é a nossa situação. Por causa do... do...

- Do bicho homem! Bicho homem! – as verdes retomaram o coro.

Uma Embaúba que estivera calada levantou o dedo folhoso.

- É verdade que o homem está apressando o fim dos nossos reinos, mas ele está sendo também o executor do seu próprio fim. E por que nós, que somos suas vítimas, iríamos nos preocupar com o fim do bicho homem?

“Por quê?” “Por quê?” - correu um farfalhar pelo bosque.    

- Para nós – disse a Sumaúma -, a mudança do clima significa apenas a antecipação de um ciclo, e a natureza já nos enxertou com soluções para a sobrevivência. No entanto... – A árvore pendeu seus galhos até o chão, ficando pensativa. A Castanheira veio em seu socorro:

- A irmã Sumaúma acha que devemos ser solidárias com o destino dos homens. Porque nós podemos simplesmente esperar e hibernar, mas os homens morrerão se nós desaparecermos.

- E eles nem têm sementes para hibernar – disse um Salgueiro.

O Angico-rosa não estava convencido.

- Com licença! De que maneira a nossa resistência poderia ajudar o Reino Animal? Eles também morreriam sem a água.

- Verdadeiro! – disse o Jatobá – Porém... se as plantas sobreviverem, os animais terão muito mais tempo para se adaptar ao mundo em transformação. E o homem pode encontrar um habitat mais favorável.   

Fez-se uma calmaria. As árvores haviam concordado em ajudar a raça humana, mas para isso era preciso que eles parassem de destruir o planeta e apressar o fim de todos.

Por fim, uma Ararinha-azul de casaca falou:

- Grandes protetoras! Se as florestas se acabam, nós também emudecemos para sempre! Queremos ser de alguma ajuda para vós nessa nobre empreitada.

Os pássaros aplaudiram com trinados as belas palavras da Ararinha. A Sumaúma se curvou, agradecendo. A Ararinha tinha uma sugestão.

- Vossas sementes contêm a vossa essência, não é verdade? A essência contém a propriedade mais importante, quer dizer, ela é o vosso verdadeiro valor, não é?

Oscilação das copas.

- Pois então! – a ave concluiu - Podemos coletar as vossas essências mais nobres, o que as árvores possuem de melhor, e fazer com elas uma poção para dar aos homens.

Os Bambus rangeram de admiração. O Salgueiro derramou lágrimas de orvalho.

Daí em diante a assembleia esquentou. As árvores amazônicas eram muito ciosas de suas propriedades e foram citando algumas delas.

- A força do Jatobá!

- A resiliência do Cajá!

- A fertilidade da Paineira!

- A sensibilidade da Castanheira!

- O cuidado da Embaúba!

- A sabedoria da Sumaúma!

- A medicina do Crajiru!

- A generosidade do Ipê!

As energias milagrosas contidas na essência das árvores eram incontáveis. Tantas energias reunidas fariam com que o homem fosse purificado de suas maldades e ignorâncias. Restava saber quem faria a poção e daria aos homens para beber.

Um Buriti se lembrou do velho índio que vivia próximo ao rio e tinha o hábito de conversar com as árvores e os bichos. Por que não fazer dele o seu mensageiro para os homens?

Fez-se uma votação e ambas as propostas tiveram aceitação quase unânime. Só se abstiveram de votar os grandes Jequitibás que eram alvo frequente da serra elétrica, e por isso tinham os homens atravessados em seus troncos.

Aves, insetos e pequenos mamíferos se organizaram em grupos para recolher as sementes e as resinas das árvores doadoras. Foram semanas de intensa atividade. Logo tinham juntado uma montanha no centro da clareira. O velho índio foi chamado. Ao ser inteirado do objetivo da missão, concordou prontamente em fazer a beberagem. Preparou os ingredientes, descascando, moendo, secando e misturando tudo cuidadosamente. Depois colocou a mistura para cozinhar em fogo lento num grande caldeirão. Um cheiro forte de seiva impregnou a mata, despertando o cio dos animais. As velhas árvores se encheram de nova esperança. Seu poder vegetal, concentrado durante eras, finalmente poderia mudar o jogo que o bicho homem estava jogando no planeta!

Passaram-se algumas luas e foi convocada nova assembleia. Desta vez as velhas árvores tiveram dificuldade em acalmar a agitação da mata. Quando o ruído amainou, a Castanheira tomou a palavra:

- Tivemos sucesso na primeira parte da nossa proposta de ajudar os seres homens. Nossas essências foram coletadas em grande diversidade.  O índio amigo da floresta trabalhou duro na preparação da poção. Soubemos que ela estava quase pronta. Porém... Muitas luas já se passaram, e não tivemos notícias do índio.

- Oh...! – correu um murmúrio de folhas e bambus.

Ouviu-se uma revoada de periquitos e no meio deles chegou a Ararinha-azul, branca de susto. Pousou no alto de um Pinheiro e disse, tomando fôlego:

- Tenho péssimas notícias! Venho da aldeia... O índio... está morto! Foi assassinado!

Novos murmúrios de decepção. Sem o índio mensageiro, todo o plano das árvores ia por água abaixo.

- É uma poda imensa para todas nós – lamentou a Sumaúma.

Ficaram de se reunir de novo dentro de quatro ciclos de lua. As aves e os insetos foram cuidar da vida e as árvores voltaram à sua imobilidade usual.

Nos dias que se seguiram o clima se tornou mais e mais cruel. Os rios estavam quase totalmente secos, as chuvas haviam sumido dos céus. As próprias nuvens não eram mais vistas sobre a mata. Sem rios na superfície nem rios aéreos. Muitas das plantas jovens morreram nessa fase; as árvores mais robustas retiravam seus últimos resquícios das raízes para sobreviver. De lá de fora vinham notícias trazidas pelos pássaros: peixes mortos aos milhares, doenças se espalhando na aldeia dos homens, incêndios se propagando e encurralando os animais em um círculo verde cada vez menor.

Chegou o dia da reunião. A Sumaúma falou com voz ainda mais grave:

- Amigas Verdes! Chegou a hora de cumprirmos o nosso destino. Vamos nos preparar para o sono, única forma de o planeta retomar sua vegetação em algum dia mais fértil. Infelizmente os seres homens não se deram conta da situação crítica de toda a Vida Orgânica, e em vez de usarem sua florada especial de inteligência para ajudar aos outros seres e a si mesmos, eles só fazem apressar a destruição. Só podemos lamentar.

As árvores escutavam em silêncio. Cada uma delas, obedecendo a uma programação genética, já estava recolhendo toda energia para o interior das células, de modo que a sua parte externa e visível – folhas, ramos, tronco tornavam-se pouco a pouco mais desbotados, vítreos, quase translúcidos. Em breve a floresta seria como uma imensa instalação de esculturas.

Surgiu a lua cheia. As árvores iniciaram um ritual de despedida. Animais de grande e pequeno porte sentiram o chamado e vieram assistir de longe. O primeiro gesto das árvores foi de gratidão ao Planeta Terra por sua vida, jogando para o alto uma chuvarada de flores de todos os tipos, cores e perfumes. Em seguida, elas depositaram no solo gentilmente seus frutos maduros. E então foram fechando suas folhas, encolhendo seus ramos, curvando-se em direção ao chão, até que, completamente secas, se imobilizaram para sempre.

 ...

Sobreveio um período de terrível desolação. Então, certa manhã, o céu se encheu de cúmulos-nimbos e desabou um aguaceiro sobre a antiga floresta, para espanto e alegria dos seres sobreviventes. Tal como no dilúvio, choveu durante quarenta dias e quarenta noites. Novos rios se formaram no deserto, carregando na enxurrada troncos, carcaças e tudo o que encontrasse pelo caminho. Foi assim que algumas mulheres e crianças famintas da aldeia viram passar na correnteza um enorme caldeirão. Recolheram-no. Dentro havia uma estranha beberagem verde, de odor afrodisíaco. Os indiozinhos provaram, gostaram. E todos os seres homens e mulheres da aldeia beberam daquela poção, sentindo-se imediatamente energizados e curados de seus males. De repente sentiram-se mais inteligentes, mais solidários uns com os outros, mais criativos e estranhamente dispostos a empregar todo o seu engenho para melhorar a vida de todos.

A Ararinha-azul, já muito idosa, deu um trinado de satisfação. A decisão das árvores estava dando seus frutos.