Conto fantástico
A ASSEMBLEIA DAS ÁRVORES
Correu um boato entre as árvores da Amazônia que as mais
velhas - uma Sumaúma de raízes tortas, e uma Castanheira-do-Brasil – estavam
convocando uma assembleia de emergência. Isso era inédito no reino vegetal. Mas
as árvores há algum tempo vinham mudando seu comportamento.
Tudo havia começado nas margens do Rio Solimões. Em um dia
que deveria ser muito produtivo para a madeireira da região, os operários
chegaram com suas máquinas e descobriram, cheios de surpresa, que as árvores
que eles haviam marcado para derrubar já estavam mortas, como se houvessem
previsto a execução próxima. Tantas décadas de exploração da madeira viva pareciam
ter feito com que as árvores – contrariando toda a lógica – adquirissem
consciência do seu triste destino pela serra elétrica. E elas começaram a
reagir antecipando o fim, promovendo o que a imprensa sensacionalista estava
chamando de ‘suicídio verde’. A situação era calamitosa. Daí a decisão extrema
das velhas árvores para deliberar uma ação de emergência. No coração da mata os
pássaros se calaram quando a velha Sumaúma abriu a sessão com voz rouca:
- Amigas Verdes! Temos permanecido imóveis e mudas desde os
princípios da vida neste planeta. Mas a mãe natureza urde novos ramos sempre
que uma nova necessidade brota. E é por isso que adquirimos esse atributo dos
animais evoluídos: a voz - e não somente a voz, mas a fala; e não somente a
fala, mas a comunicação...
As árvores da floresta mal podiam acreditar: estavam ouvindo
e entendendo os pensamentos da Sumaúma. Emocionadas, balançavam seus galhos
para lá e para cá, ajudadas pelo vento. A oradora continuou:
- Há uma certeza que rebrilha ao sol: o nosso mundo está em perigo!
– Correu um murmúrio lúgubre entre as árvores - Todas nós sabemos da mudança do
clima em curso. Fomos preparadas para esta mudança há milhares de anos, quando
em nosso DNA foi gravada a instrução que deveremos todas seguir. – A árvore
cerrou seus grandes olhos para puxar as palavras - O nosso planeta está em vias
de se tornar um deserto. Daqui a poucos ciclos, toda água doce vai desaparecer.
Ao seu lado, a Castanheira acrescentou:
- E junto com a água, é claro, desaparece o nosso Reino Vegetal.
“Desaparece o nosso reino”, “desaparece o vegetal...” – as árvores iam replicando as falas para as
mais distantes.
- E quem é o responsável pela extinção de toda a seiva na
Terra? – trovejou a Sumaúma.
As árvores gemeram em coro:
- O bicho homem! O bicho homem!
- Sim, isso é claro como a luz do dia. O homem está
destruindo o equilíbrio do nosso planeta muito rápido. Se o aquecimento ocorresse
no ritmo previsto por nossa mãe, nós não teríamos do que nos queixar. O
instinto é verde! Bastaria a cada uma de nós cumprir o projeto de recolher
nossas sementes e colocá-las para hibernar... Após o recesso da água no
planeta, quando a atmosfera restaurasse o equilíbrio das chuvas, nossas
sementes iriam novamente despertando do seu longo sono... E as florestas da
Terra renasceriam em um úmido e fértil futuro.
As árvores esfregaram os galhos em aprovação.
- Sim, mas... – disse a Castanheira – Isso aconteceria
dentro do ciclo normal. Infelizmente não é a nossa situação. Por causa do...
do...
- Do bicho homem! Bicho homem! – as verdes retomaram o coro.
Uma Embaúba que estivera calada levantou o dedo folhoso.
- É verdade que o homem está apressando o fim dos nossos
reinos, mas ele está sendo também o executor do seu próprio fim. E por que nós,
que somos suas vítimas, iríamos nos preocupar com o fim do bicho homem?
“Por quê?” “Por quê?” - correu um farfalhar pelo bosque.
- Para nós – disse a Sumaúma -, a mudança do clima significa
apenas a antecipação de um ciclo, e a natureza já nos enxertou com soluções para
a sobrevivência. No entanto... – A árvore pendeu seus galhos até o chão,
ficando pensativa. A Castanheira veio em seu socorro:
- A irmã Sumaúma acha que devemos ser solidárias com o
destino dos homens. Porque nós podemos simplesmente esperar e hibernar, mas os
homens morrerão se nós desaparecermos.
- E eles nem têm sementes para hibernar – disse um
Salgueiro.
O Angico-rosa não estava convencido.
- Com licença! De que maneira a nossa resistência poderia
ajudar o Reino Animal? Eles também morreriam sem a água.
- Verdadeiro! – disse o Jatobá – Porém... se as plantas
sobreviverem, os animais terão muito mais tempo para se adaptar ao mundo em
transformação. E o homem pode encontrar um habitat mais favorável.
Fez-se uma calmaria. As árvores haviam concordado em ajudar
a raça humana, mas para isso era preciso que eles parassem de destruir o
planeta e apressar o fim de todos.
Por fim, uma Ararinha-azul de casaca falou:
- Grandes protetoras! Se as florestas se acabam, nós também
emudecemos para sempre! Queremos ser de alguma ajuda para vós nessa nobre
empreitada.
Os pássaros aplaudiram com trinados as belas palavras da Ararinha.
A Sumaúma se curvou, agradecendo. A Ararinha tinha uma sugestão.
- Vossas sementes contêm a vossa essência, não é verdade? A
essência contém a propriedade mais importante, quer dizer, ela é o vosso
verdadeiro valor, não é?
Oscilação das copas.
- Pois então! – a ave concluiu - Podemos coletar as vossas
essências mais nobres, o que as árvores possuem de melhor, e fazer com elas uma
poção para dar aos homens.
Os Bambus rangeram de admiração. O Salgueiro derramou
lágrimas de orvalho.
Daí em diante a assembleia esquentou. As árvores amazônicas
eram muito ciosas de suas propriedades e foram citando algumas delas.
- A força do Jatobá!
- A resiliência do Cajá!
- A fertilidade da Paineira!
- A sensibilidade da Castanheira!
- O cuidado da Embaúba!
- A sabedoria da Sumaúma!
- A medicina do Crajiru!
- A generosidade do Ipê!
As energias milagrosas contidas na essência das árvores eram
incontáveis. Tantas energias reunidas fariam com que o homem fosse purificado
de suas maldades e ignorâncias. Restava saber quem faria a poção e daria aos
homens para beber.
Um Buriti se lembrou do velho índio que vivia próximo ao rio
e tinha o hábito de conversar com as árvores e os bichos. Por que não fazer dele
o seu mensageiro para os homens?
Fez-se uma votação e ambas as propostas tiveram aceitação
quase unânime. Só se abstiveram de votar os grandes Jequitibás que eram alvo
frequente da serra elétrica, e por isso tinham os homens atravessados em seus
troncos.
Aves, insetos e pequenos mamíferos se organizaram em grupos
para recolher as sementes e as resinas das árvores doadoras. Foram semanas de
intensa atividade. Logo tinham juntado uma montanha no centro da clareira. O
velho índio foi chamado. Ao ser inteirado do objetivo da missão, concordou
prontamente em fazer a beberagem. Preparou os ingredientes, descascando,
moendo, secando e misturando tudo cuidadosamente. Depois colocou a mistura para
cozinhar em fogo lento num grande caldeirão. Um cheiro forte de seiva impregnou
a mata, despertando o cio dos animais. As velhas árvores se encheram de nova
esperança. Seu poder vegetal, concentrado durante eras, finalmente poderia
mudar o jogo que o bicho homem estava jogando no planeta!
Passaram-se algumas luas e foi convocada nova assembleia.
Desta vez as velhas árvores tiveram dificuldade em acalmar a agitação da mata.
Quando o ruído amainou, a Castanheira tomou a palavra:
- Tivemos sucesso na primeira parte da nossa proposta de
ajudar os seres homens. Nossas essências foram coletadas em grande diversidade.
O índio amigo da floresta trabalhou duro
na preparação da poção. Soubemos que ela estava quase pronta. Porém... Muitas
luas já se passaram, e não tivemos notícias do índio.
- Oh...! – correu um murmúrio de folhas e bambus.
Ouviu-se uma revoada de periquitos e no meio deles chegou a
Ararinha-azul, branca de susto. Pousou no alto de um Pinheiro e disse, tomando
fôlego:
- Tenho péssimas notícias! Venho da aldeia... O índio... está
morto! Foi assassinado!
Novos murmúrios de decepção. Sem o índio mensageiro, todo o plano
das árvores ia por água abaixo.
- É uma poda imensa para todas nós – lamentou a Sumaúma.
Ficaram de se reunir de novo dentro de quatro ciclos de lua.
As aves e os insetos foram cuidar da vida e as árvores voltaram à sua
imobilidade usual.
Nos dias que se seguiram o clima se tornou mais e mais
cruel. Os rios estavam quase totalmente secos, as chuvas haviam sumido dos
céus. As próprias nuvens não eram mais vistas sobre a mata. Sem rios na
superfície nem rios aéreos. Muitas das plantas jovens morreram nessa fase; as
árvores mais robustas retiravam seus últimos resquícios das raízes para
sobreviver. De lá de fora vinham notícias trazidas pelos pássaros: peixes
mortos aos milhares, doenças se espalhando na aldeia dos homens, incêndios se
propagando e encurralando os animais em um círculo verde cada vez menor.
Chegou o dia da reunião. A Sumaúma falou com voz ainda mais
grave:
- Amigas Verdes! Chegou a hora de cumprirmos o nosso
destino. Vamos nos preparar para o sono, única forma de o planeta retomar sua
vegetação em algum dia mais fértil. Infelizmente os seres homens não se deram
conta da situação crítica de toda a Vida Orgânica, e em vez de usarem sua
florada especial de inteligência para ajudar aos outros seres e a si mesmos,
eles só fazem apressar a destruição. Só podemos lamentar.
As árvores escutavam em silêncio. Cada uma delas, obedecendo
a uma programação genética, já estava recolhendo toda energia para o interior das
células, de modo que a sua parte externa e visível – folhas, ramos, tronco
tornavam-se pouco a pouco mais desbotados, vítreos, quase translúcidos. Em
breve a floresta seria como uma imensa instalação de esculturas.
Surgiu a lua cheia. As árvores iniciaram um ritual de
despedida. Animais de grande e pequeno porte sentiram o chamado e vieram assistir
de longe. O primeiro gesto das árvores foi de gratidão ao Planeta Terra por sua
vida, jogando para o alto uma chuvarada de flores de todos os tipos, cores e
perfumes. Em seguida, elas depositaram no solo gentilmente seus frutos maduros.
E então foram fechando suas folhas, encolhendo seus ramos, curvando-se em
direção ao chão, até que, completamente secas, se imobilizaram para sempre.
...
Sobreveio um período de terrível desolação. Então, certa
manhã, o céu se encheu de cúmulos-nimbos e desabou um aguaceiro sobre a antiga
floresta, para espanto e alegria dos seres sobreviventes. Tal como no dilúvio,
choveu durante quarenta dias e quarenta noites. Novos rios se formaram no
deserto, carregando na enxurrada troncos, carcaças e tudo o que encontrasse
pelo caminho. Foi assim que algumas mulheres e crianças famintas da aldeia
viram passar na correnteza um enorme caldeirão. Recolheram-no. Dentro havia uma
estranha beberagem verde, de odor afrodisíaco. Os indiozinhos provaram,
gostaram. E todos os seres homens e mulheres da aldeia beberam daquela poção,
sentindo-se imediatamente energizados e curados de seus males. De repente
sentiram-se mais inteligentes, mais solidários uns com os outros, mais
criativos e estranhamente dispostos a empregar todo o seu engenho para melhorar
a vida de todos.
A Ararinha-azul, já muito idosa, deu um trinado de
satisfação. A decisão das árvores estava dando seus frutos.