quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

A ÚLTIMA LEMBRANÇA

 Conto fantástico



A última lembrança

 

O garoto largou o celular a um cutucão da mãe, mas quando o médico começou a falar, pegou-o de novo. O médico, com as mãos no bolso do guarda-pó, explicava a Laura que adotariam o procedimento da lembrança escolhida com a moribunda. Essa memória querida era o que os cientistas acreditavam que a acompanharia na eternidade.

- Por isso nós a chamamos aqui. Sendo sua neta, a senhora pode ajudá-la nessa escolha tão importante. Trata-se do futuro de sua avó.

Laura entrou no quarto do hospital puxando o garoto pela mão. Na cama, divisou os relevos suaves sob o lençol. Ninguém soubera as vezes que aquela mulher se amoldara para se adaptar às novas formas, conforme a idade ia exigindo. E agora, ali estava a forma quase consolidada, prestes a concluir o seu vir-a-ser.

Laura chamou baixinho, com medo:

- Vovó... Sou eu, Laura. – Silêncio. - O Jairzinho também está aqui.

Laura cutucou o menino para que largasse o celular.  Uma vozinha fina falou:

- Ahhh... Vocês... Eu...

- Não faça força, vovó. Fique aí deitadinha. Só me escute, tá bem?

A vovó fez que sim com a cabeça. Laura venceu a relutância e passou os dedos em seus cabelos finos como penugem. Foi explicando a técnica da memória que iam usar. Ela só precisaria escolher seu momento mais feliz pra carregar consigo na eternidade.

- Qual lembrança, vovó, vai escolher?

A avó falou num fiapo de voz:

- Ah... O dia da primeira comunhão! Eu parecia uma princesa. Em casa teve festa, os primos...

Em sua memória cansada desenrolou-se a cena. O jardim de sua casa, meninos e meninas brincando de pique antes do almoço ser servido. Ela corria com cuidado pra não sujar a roupa branca. De repente foi distraída por um bulício na folhagem por onde passavam sombras... Virou a cabeça para olhar e Carlinhos aproveitou para agarrá-la pela cintura.

- Peguei!

O primo sapecou-lhe um beijo na boca antes que ela pudesse fazer um gesto. E ela ficou ali uma eternidade, vendo a terra rodar. A meninada gritou e ela correu para o pique, mas se sentia diferente. Depois do beijo, quase nada mais importava.

- Que lindo, vovó! - Laura estava emocionada. Não imaginava que a avó se lembraria de coisas como essa.

...

Na manhã seguinte a enfermeira entrou no quarto puxando um carrinho.

- Bom dia, vovó!

Saudou com a jovialidade estudada dos que costumam lidar com enfermos sem esperança. Correu as cortinas e foi instalando ao lado dela um pequeno aparelho, cujos fios e eletrodos prendeu às suas têmporas e ao peito. Depois enfiou em sua mão uma caixinha de laca preta, na qual, explicou, ficaria guardada a lembrança escolhida. Enquanto manipulava o fármaco e preparava a injeção, a enfermeira disse:

- Pode fechar os olhos e começar a lembrar, vovó.

Em sua voz não havia emoção, mas eficiência. Desde que a sociedade sancionara o direito dos doentes incuráveis de receberem uma morte “digna e indolor”, como diziam os anúncios, surgiram várias escolas de treinamento para formar os chamados “enfermeiros de passagem” como ela.

De olhos fechados, a velha começou a recordar. Lá estava o jardim de sua casa, a volta da igreja com o vestido de renda da primeira comunhão, a brincadeira de pique-esconde com os primos... Um barulho na folhagem distraiu sua atenção, ela viu passar uma sombra no momento exato em que Carlinhos lhe roubou um beijo... Mas não! Desta vez ela “viu” a sombra que passou detrás das árvores: parecia ser uma mão segurando uma faca e algo pendurado. Então, no mesmo instante, essa lembrança ligou-se a outra do dia posterior: o seu gatinho encontrado morto no jardim, estripado dentro de um saco...

Ela quis gritar para a enfermeira:

- Pare tudo! Não posso levar essa lembrança! Não é o que eu...

Mas sua voz já não conseguia deixar a garganta. A enfermeira retirou tranquilamente a agulha e soltou o braço da paciente... que não estava mais lá. Baixou as pálpebras da falecida, desconectou o aparelho e saiu do quarto com o carrinho, fechando a porta.

...

A vovó continuou no jardim que fora eternizado para ela. Mas ela vira a sombra! E a sombra significava, no dia seguinte, estar chorando inconsolável ao lado do gatinho sacrificado por algum demente.

- A culpa foi toda minha! Como eu não te salvei quando vi a sombra do bandido...?! Nunca, nunca, vou me perdoar!

A dor que sentia era infernal. E não por acaso, quando olhou para cima viu um letreiro sobre o portão do jardim: INFERNO. Sem conseguir mudar um mícron daquela situação, ela teve de reviver e sofrer a cena 666 vezes! Todas as vezes começava vendo a sombra, levando o beijo e acabava diante do animalzinho de estimação todo desfigurado dentro de uma estopa. Então, na última vez, o gato começou a se mexer, suas partes se juntaram e a menina agora “era” o gato que, reanimado, saltou e correu para fora dali.

...

O gato saiu do Inferno e entrou como um raio pela porta de outro jardim em tudo semelhante ao primeiro, com exceção do letreiro sobre o portão que dizia: PURGATÓRIO.

Parecia um dia incomum. O jardim, quieto de ordinário, hoje estava cheio de crianças perigosas para um gato, crianças em movimento descontrolado. Além do mais, sua dona estava tão distraída que nem ligava para ele. O gato se esgueirou para não ser atropelado pelos meninos e foi para os fundos procurar um lugar para se deitar. E viu, como uma miragem, o passarinho desprevenido em cima da cerca! O vizinho do outro lado, várias vezes ameaçara os pais da menina sobre a presença indesejada de seu gato no quintal deles. Ah, isso até o gatinho sabia, porque tivera de fugir dali diversas vezes sob uma chuva de pedradas. Mas dessa vez ele não iria além da cerca. Só com um pulo alcançaria o lindo e apetitoso passarinho.

Foi o que fez, mas o passarinho voou e ele foi em seu encalço, cego para o resto. Num instante tudo ficou escuro. O gato se debateu por um tempo, sentindo-se agarrado, carregado e sacudido. E aí sentiu a coisa gelada e dura perfurando seu ventre e derretendo-o como neve. Os cheiros se misturaram todos. Seu último pensamento foi para o passarinho.

Se tivesse previsto ser caçado enquanto caçava, o gatinho com certeza teria evitado aquilo. Mas já era tarde. E ali no jardim chamado Purgatório teve que reviver a cena fatal 333 vezes. Começava todas elas seduzido pelo passarinho, correndo atrás dele, e terminava com seu próprio corpo se derretendo como sorvete que cai no chão. Até que, na última vez, conseguiu ver o passarinho que se salvara ao perceber o felino. E ao vê-lo, ele “era” o passarinho, que, voando, saiu dali pelo portão aberto e entrou rapidamente em outro jardim, em tudo semelhante aos anteriores.

...

O pássaro viu-se em um lugar cheio de pássaros, mas onde não havia nenhum gato, criança ou outro predador. Além disso, pencas de frutinhas deliciosas penduradas nas árvores, flores cheias de néctar, lagos com água fresca... Ali havia sempre sombra e sol, chuva e luar. Um lugar onde se podia trinar à vontade, sem sustos, pela eternidade. O passarinho então viu o letreiro: estava no PARAÍSO.

...

O velório foi concorrido, pois muitos empregados da firma do marido de Laura esperavam cair nas boas graças do chefe. Não custava ir dar um adeus à avó da esposa dele, mesmo que ficassem meio apartados, conversando em voz baixa. Poucos familiares, incluindo Laura e o garoto, circundavam o caixão. Disseram a Jairzinho para se despedir.

- O que acontece agora? – disse o menino, olhos fixos no cadáver.

- O corpo da vovó vai para o cemitério – disse Laura. – Mas a lembrança dela continua com a gente...

- E a lembrança dela vai com ela, não é?

O menino se referia à última lembrança escolhida. Ambos, mãe e filho, olharam para a caixinha preta na mão da defunta. Os rapazes da firma também tinham se aproximado, mãos cruzadas na frente do terno social, cabeça levemente inclinada em sinal de respeito. Um deles, representando os demais, comentou:

- Parece que ela está sorrindo... Não deve ter sofrido. Morreu como um passarinho.

Ouviram-se suspiros aqui e ali, como se os vivos estivessem digerindo suas emoções diante da morte.

A velha foi levada ao cemitério numa cerimônia breve. O caixão foi conduzido pelo marido de Laura e mais cinco rapazes. Não houve discursos, apenas flores e torrões de terra jogados lentamente na cova aberta.

No caminho de volta para casa, Laura tinha os olhos vermelhos, mas secos. Jairzinho voltara a seu celular. Mesmo assim, foi sua esperteza que percebeu algo no chão, ao entrarem em casa.

- Olha, mãe! É a caixinha de lembrança da vovó...

Laura pegou e abriu o objeto que a defunta, propositalmente ou não, deixara para trás. A caixa estava vazia.

 FIM



segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

A caixa de ferramentas de Stephen King

 A CAIXA DE FERRAMENTAS DE STEPHEN KING

Crônica




O que uma caixa de ferramentas antiga, com três andares e cheia de gavetinhas secretas tem a ver com o escritor? Tem tudo a ver. Metáforas como essa fazem o sucesso permanente do livro de Stephen King "Sobre a Escrita" para aficionados da arte tão mal compreendida que é escrever. 

No caso das ferramentas, diz o autor: Sim! Você precisa ter sua caixa de ferramentas e carregá-la consigo (na mente, é claro) para todo e qualquer trabalho que se proponha fazer, porque você não sabe exatamente do que necessitará, e se faltar aquele tal parafusinho você corre o risco de desanimar e não realizar seu trabalho - no caso, a escrita de um conto, um artigo, uma crônica,  um romance... Seja o que for. 

No primeiro andar da caixa de ferramentas do escritor estarão, naturalmente, o vocabulário e a gramática. Não dá pra fazer nada sem isso. O vocabulário não precisa ser sofisticado nem enorme. Você tem que se virar com o que tem. E sempre poderá ser bem sucedido, tanto com um vocabulário restrito quanto com um dicionário na cabeça. Mas saber utilizar bem o vocabulário, com observância mínima das regras da língua é o que vai fazer a diferença.

Nos andares inferiores da caixa vão estar as demais artes do seu ofício, como o estilo. King as abordará ao longo do seu manual. Mas uma das dicas mais importantes,  ao comparar nosso fazer com o de um marceneiro ou mecânico, é de que o escritor também conta com seu engenho, suas ferramentas e sua força de trabalho. "As ferramentas precisam estar lá e em bom estado", diz o autor. Como o marceneiro, que examina sua caixa e repõe o aparato que falta (para o escritor, pode ser o conhecimento básico da gramática) e limpa e afia o que está enferrujado ou gasto, quem se dedicar à escrita também precisa conferir as habilidades inerentes ao seu ofício periodicamente, além de polir e lixar, isto é,  escrever com constância. Desse modo a caixa estará pronta e as ferramentas perfeitas para o uso. Bingo!

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A assembleia das árvores

 Conto fantástico




A ASSEMBLEIA DAS ÁRVORES

 

Correu um boato entre as árvores da Amazônia que as mais velhas - uma Sumaúma de raízes tortas, e uma Castanheira-do-Brasil – estavam convocando uma assembleia de emergência. Isso era inédito no reino vegetal. Mas as árvores há algum tempo vinham mudando seu comportamento.

Tudo havia começado nas margens do Rio Solimões. Em um dia que deveria ser muito produtivo para a madeireira da região, os operários chegaram com suas máquinas e descobriram, cheios de surpresa, que as árvores que eles haviam marcado para derrubar já estavam mortas, como se houvessem previsto a execução próxima. Tantas décadas de exploração da madeira viva pareciam ter feito com que as árvores – contrariando toda a lógica – adquirissem consciência do seu triste destino pela serra elétrica. E elas começaram a reagir antecipando o fim, promovendo o que a imprensa sensacionalista estava chamando de ‘suicídio verde’. A situação era calamitosa. Daí a decisão extrema das velhas árvores para deliberar uma ação de emergência. No coração da mata os pássaros se calaram quando a velha Sumaúma abriu a sessão com voz rouca:

- Amigas Verdes! Temos permanecido imóveis e mudas desde os princípios da vida neste planeta. Mas a mãe natureza urde novos ramos sempre que uma nova necessidade brota. E é por isso que adquirimos esse atributo dos animais evoluídos: a voz - e não somente a voz, mas a fala; e não somente a fala, mas a comunicação...

As árvores da floresta mal podiam acreditar: estavam ouvindo e entendendo os pensamentos da Sumaúma. Emocionadas, balançavam seus galhos para lá e para cá, ajudadas pelo vento. A oradora continuou:

- Há uma certeza que rebrilha ao sol: o nosso mundo está em perigo! – Correu um murmúrio lúgubre entre as árvores - Todas nós sabemos da mudança do clima em curso. Fomos preparadas para esta mudança há milhares de anos, quando em nosso DNA foi gravada a instrução que deveremos todas seguir. – A árvore cerrou seus grandes olhos para puxar as palavras - O nosso planeta está em vias de se tornar um deserto. Daqui a poucos ciclos, toda água doce vai desaparecer.

Ao seu lado, a Castanheira acrescentou:

- E junto com a água, é claro, desaparece o nosso Reino Vegetal.

“Desaparece o nosso reino”, “desaparece o vegetal...”  – as árvores iam replicando as falas para as mais distantes.

- E quem é o responsável pela extinção de toda a seiva na Terra? – trovejou a Sumaúma.

As árvores gemeram em coro:

- O bicho homem! O bicho homem!

- Sim, isso é claro como a luz do dia. O homem está destruindo o equilíbrio do nosso planeta muito rápido. Se o aquecimento ocorresse no ritmo previsto por nossa mãe, nós não teríamos do que nos queixar. O instinto é verde! Bastaria a cada uma de nós cumprir o projeto de recolher nossas sementes e colocá-las para hibernar... Após o recesso da água no planeta, quando a atmosfera restaurasse o equilíbrio das chuvas, nossas sementes iriam novamente despertando do seu longo sono... E as florestas da Terra renasceriam em um úmido e fértil futuro.

As árvores esfregaram os galhos em aprovação.

- Sim, mas... – disse a Castanheira – Isso aconteceria dentro do ciclo normal. Infelizmente não é a nossa situação. Por causa do... do...

- Do bicho homem! Bicho homem! – as verdes retomaram o coro.

Uma Embaúba que estivera calada levantou o dedo folhoso.

- É verdade que o homem está apressando o fim dos nossos reinos, mas ele está sendo também o executor do seu próprio fim. E por que nós, que somos suas vítimas, iríamos nos preocupar com o fim do bicho homem?

“Por quê?” “Por quê?” - correu um farfalhar pelo bosque.    

- Para nós – disse a Sumaúma -, a mudança do clima significa apenas a antecipação de um ciclo, e a natureza já nos enxertou com soluções para a sobrevivência. No entanto... – A árvore pendeu seus galhos até o chão, ficando pensativa. A Castanheira veio em seu socorro:

- A irmã Sumaúma acha que devemos ser solidárias com o destino dos homens. Porque nós podemos simplesmente esperar e hibernar, mas os homens morrerão se nós desaparecermos.

- E eles nem têm sementes para hibernar – disse um Salgueiro.

O Angico-rosa não estava convencido.

- Com licença! De que maneira a nossa resistência poderia ajudar o Reino Animal? Eles também morreriam sem a água.

- Verdadeiro! – disse o Jatobá – Porém... se as plantas sobreviverem, os animais terão muito mais tempo para se adaptar ao mundo em transformação. E o homem pode encontrar um habitat mais favorável.   

Fez-se uma calmaria. As árvores haviam concordado em ajudar a raça humana, mas para isso era preciso que eles parassem de destruir o planeta e apressar o fim de todos.

Por fim, uma Ararinha-azul de casaca falou:

- Grandes protetoras! Se as florestas se acabam, nós também emudecemos para sempre! Queremos ser de alguma ajuda para vós nessa nobre empreitada.

Os pássaros aplaudiram com trinados as belas palavras da Ararinha. A Sumaúma se curvou, agradecendo. A Ararinha tinha uma sugestão.

- Vossas sementes contêm a vossa essência, não é verdade? A essência contém a propriedade mais importante, quer dizer, ela é o vosso verdadeiro valor, não é?

Oscilação das copas.

- Pois então! – a ave concluiu - Podemos coletar as vossas essências mais nobres, o que as árvores possuem de melhor, e fazer com elas uma poção para dar aos homens.

Os Bambus rangeram de admiração. O Salgueiro derramou lágrimas de orvalho.

Daí em diante a assembleia esquentou. As árvores amazônicas eram muito ciosas de suas propriedades e foram citando algumas delas.

- A força do Jatobá!

- A resiliência do Cajá!

- A fertilidade da Paineira!

- A sensibilidade da Castanheira!

- O cuidado da Embaúba!

- A sabedoria da Sumaúma!

- A medicina do Crajiru!

- A generosidade do Ipê!

As energias milagrosas contidas na essência das árvores eram incontáveis. Tantas energias reunidas fariam com que o homem fosse purificado de suas maldades e ignorâncias. Restava saber quem faria a poção e daria aos homens para beber.

Um Buriti se lembrou do velho índio que vivia próximo ao rio e tinha o hábito de conversar com as árvores e os bichos. Por que não fazer dele o seu mensageiro para os homens?

Fez-se uma votação e ambas as propostas tiveram aceitação quase unânime. Só se abstiveram de votar os grandes Jequitibás que eram alvo frequente da serra elétrica, e por isso tinham os homens atravessados em seus troncos.

Aves, insetos e pequenos mamíferos se organizaram em grupos para recolher as sementes e as resinas das árvores doadoras. Foram semanas de intensa atividade. Logo tinham juntado uma montanha no centro da clareira. O velho índio foi chamado. Ao ser inteirado do objetivo da missão, concordou prontamente em fazer a beberagem. Preparou os ingredientes, descascando, moendo, secando e misturando tudo cuidadosamente. Depois colocou a mistura para cozinhar em fogo lento num grande caldeirão. Um cheiro forte de seiva impregnou a mata, despertando o cio dos animais. As velhas árvores se encheram de nova esperança. Seu poder vegetal, concentrado durante eras, finalmente poderia mudar o jogo que o bicho homem estava jogando no planeta!

Passaram-se algumas luas e foi convocada nova assembleia. Desta vez as velhas árvores tiveram dificuldade em acalmar a agitação da mata. Quando o ruído amainou, a Castanheira tomou a palavra:

- Tivemos sucesso na primeira parte da nossa proposta de ajudar os seres homens. Nossas essências foram coletadas em grande diversidade.  O índio amigo da floresta trabalhou duro na preparação da poção. Soubemos que ela estava quase pronta. Porém... Muitas luas já se passaram, e não tivemos notícias do índio.

- Oh...! – correu um murmúrio de folhas e bambus.

Ouviu-se uma revoada de periquitos e no meio deles chegou a Ararinha-azul, branca de susto. Pousou no alto de um Pinheiro e disse, tomando fôlego:

- Tenho péssimas notícias! Venho da aldeia... O índio... está morto! Foi assassinado!

Novos murmúrios de decepção. Sem o índio mensageiro, todo o plano das árvores ia por água abaixo.

- É uma poda imensa para todas nós – lamentou a Sumaúma.

Ficaram de se reunir de novo dentro de quatro ciclos de lua. As aves e os insetos foram cuidar da vida e as árvores voltaram à sua imobilidade usual.

Nos dias que se seguiram o clima se tornou mais e mais cruel. Os rios estavam quase totalmente secos, as chuvas haviam sumido dos céus. As próprias nuvens não eram mais vistas sobre a mata. Sem rios na superfície nem rios aéreos. Muitas das plantas jovens morreram nessa fase; as árvores mais robustas retiravam seus últimos resquícios das raízes para sobreviver. De lá de fora vinham notícias trazidas pelos pássaros: peixes mortos aos milhares, doenças se espalhando na aldeia dos homens, incêndios se propagando e encurralando os animais em um círculo verde cada vez menor.

Chegou o dia da reunião. A Sumaúma falou com voz ainda mais grave:

- Amigas Verdes! Chegou a hora de cumprirmos o nosso destino. Vamos nos preparar para o sono, única forma de o planeta retomar sua vegetação em algum dia mais fértil. Infelizmente os seres homens não se deram conta da situação crítica de toda a Vida Orgânica, e em vez de usarem sua florada especial de inteligência para ajudar aos outros seres e a si mesmos, eles só fazem apressar a destruição. Só podemos lamentar.

As árvores escutavam em silêncio. Cada uma delas, obedecendo a uma programação genética, já estava recolhendo toda energia para o interior das células, de modo que a sua parte externa e visível – folhas, ramos, tronco tornavam-se pouco a pouco mais desbotados, vítreos, quase translúcidos. Em breve a floresta seria como uma imensa instalação de esculturas.

Surgiu a lua cheia. As árvores iniciaram um ritual de despedida. Animais de grande e pequeno porte sentiram o chamado e vieram assistir de longe. O primeiro gesto das árvores foi de gratidão ao Planeta Terra por sua vida, jogando para o alto uma chuvarada de flores de todos os tipos, cores e perfumes. Em seguida, elas depositaram no solo gentilmente seus frutos maduros. E então foram fechando suas folhas, encolhendo seus ramos, curvando-se em direção ao chão, até que, completamente secas, se imobilizaram para sempre.

 ...

Sobreveio um período de terrível desolação. Então, certa manhã, o céu se encheu de cúmulos-nimbos e desabou um aguaceiro sobre a antiga floresta, para espanto e alegria dos seres sobreviventes. Tal como no dilúvio, choveu durante quarenta dias e quarenta noites. Novos rios se formaram no deserto, carregando na enxurrada troncos, carcaças e tudo o que encontrasse pelo caminho. Foi assim que algumas mulheres e crianças famintas da aldeia viram passar na correnteza um enorme caldeirão. Recolheram-no. Dentro havia uma estranha beberagem verde, de odor afrodisíaco. Os indiozinhos provaram, gostaram. E todos os seres homens e mulheres da aldeia beberam daquela poção, sentindo-se imediatamente energizados e curados de seus males. De repente sentiram-se mais inteligentes, mais solidários uns com os outros, mais criativos e estranhamente dispostos a empregar todo o seu engenho para melhorar a vida de todos.

A Ararinha-azul, já muito idosa, deu um trinado de satisfação. A decisão das árvores estava dando seus frutos.



terça-feira, 31 de outubro de 2023

Tirem os gatos da Índia, por favor

Crônica:          

Os bastidores de uma classe online.




           Desde as primeiras aulas, a dança clássica indiana passou a fazer parte da minha vida pelos seus vários aspectos, sendo ao mesmo tempo expressividade corporal, ginástica, dança, meditação em movimento e arte. A professora Krishna nem é de minha cidade, nem do meu Estado. Estamos bem longe. Mas toda semana, no horário combinado, ela aparece na minha sala que já está preparada: espaço vazio no centro, cortinas corridas, um tapete felpudo onde faço os exercícios de ioga e os passos da dança, uma mesinha para apoiar o computador. Meus dois gatos adoram esse tapete. E não perdem uma aula de dança. É só escutar o som das músicas indianas saindo do computador e eles se acomodam ao redor. Quando estou deitada de costas e me viro de um lado para o outro, girando os braços e as pernas, eles vibram, parecem pensar: Oh! Finalmente ela aprendeu como se faz. 

          Hoje eles já estavam esparramados no tapete enquanto eu esperava a aula começar. Aproveitei o tempo que faltava para escrever alguma coisa no teclado. Estava absorta, mas tive de interromper a escrita porque havia chegado a hora e o link para entrar na aula. Levantei-me da poltrona e, de pé, fui ajeitando o computador para que sua tela pudesse não só mostrar a professora, mas ela também pudesse me ver repetindo seus gestos. Esse arranjo não é muito fácil quando o espaço é pequeno: ou Krishna enxerga meu corpo e não vê meus pés; ou enxerga o corpo e os pés, mas não vê meus braços levantados realizando os mudrás, gestos importantes de mãos nesta dança. Se estou de pé, a tela fica numa posição; se faço exercícios deitada ou sentada, a telinha tem de ser movida. Mas é o único jeito, a não ser que se instale um monitor maior, suspenso na parede. Enquanto isso, vamos à dança. 

          Levanto-me, já dizendo bom dia para Krishna e fazendo nossa saudação à mestra sorridente. A tela ainda está um tanto baixa para que ela me veja, ergo-a um tantinho e dou um passo para trás... indo pisar diretamente em cima dos meus dois gatos escarrapachados no tapete e desprevenidos como dois anjinhos. Ambos começam a gritar e uivar desesperados, enquanto eu, no ar, em plena queda lenta, sem enxergar onde estou pisando, não consigo simplesmente tirar o pé que os está esmagando porque não consigo me firmar. Finalmente caio sentada no tapete e os dois escapam como raios. Consternada, nem consigo saber qual dos dois eu machuquei mais. O gato pareceu mais traumatizado, mas foram chumaços de pelos brancos da gata, resultado do acidente, que eu recolhi pelo tapete. A professora na tela me olhava, a linda música tocando ao fundo, sem entender bem o que tinha acontecido.

          - Caí em cima dos gatos - falei, desconcertada. 

          Com sua delicadeza habitual, ela riu junto comigo e deu início à aula. Os gatos ficaram na porta, espiando só de longe. A aula até foi bem produtiva, apesar da minha agitação inicial e a cena de comédia. Só espero que o zoom não a tenha gravado! Tirem os gatos da próxima vez, please.



segunda-feira, 16 de outubro de 2023

PARA QUE SE ESCREVE

 

Escrever ficção não é algo natural. Requer uma falsidade, um artifício que não está no corpo. Precisa ser aprendido como um ofício de carpinteiro.  Contar uma história que nunca aconteceu, mas por intermédio da qual se possa contar o indizível. Criar um personagem que nunca existiu, mas é mais real que eu ou você. Escrever uma história é corrigir o destino, levar a estrada de alguém por onde ela deveria ir, mas a realidade impediu. Ser um romancista requer essa audácia, sufocar a voz da consciência que questiona: quem é você para ditar rumos, sentenciar destinos, julgar e escolher quem deve morrer e quem deve ser feliz? O escritor de ficção precisa fazer um pacto consigo mesmo, caso contrário não conseguirá mentir: "Eu aqui sou um autor, um criador de ilusões. Conceda-me espaço, suas memórias e sua experiência. Deixe-me brincar um pouco". 

O poeta falou na televisão: escreve-se porque a vida não basta. Eu teria concordado entusiasticamente com ele. Mas não agora. Também o mestre esotérico ensinou: o escritor é um neurótico. Eu teria me empenhado em me curar. Mas não agora. Nem um nem outro diz toda a verdade.  O que o escritor faz é transformar a vida para suportá-la. O poeta sabia que a vida de todo mundo não basta e é preciso intensificá-la com a imaginação, por isso se escreve. A intersecção do poeta e do neurótico está no instante presente. O escritor tem dificuldade em engolir o presente. Precisa transformá-lo no 'tempo da narração', no qual tudo se torna passado, e portanto, passível de ser analisado e controlado. Ou no 'tempo da poesia', onde o real é despojado de seu sem-sentido e se torna orgânico através da beleza.  A escrita é o dispéptico para uma sensibilidade aguçada que, além do mais, ama a linguagem.

domingo, 24 de setembro de 2023

Religião e Ciência podem se unir?


 

RELIGIÃO E CIÊNCIA PODEM SE UNIR?

 

O rio do conhecimento divide-se neste momento em dois fluxos: o fluxo de todas as informações acumuladas, chamado de 'conhecimento científico', e o fluxo das tradições religiosas, crenças e percepções intuitivas, normalmente englobadas como 'misticismo'. Mas nem sempre foi assim.

Até pouco tempo atrás, em nossa relativamente longa história desde as cavernas, o conhecimento científico, o saber das coisas do mundo estava diretamente ligado à concepção religiosa daquele determinado grupo, que procura responder a questões do tipo “de onde viemos”, “qual o propósito da nossa existência” e “para onde vamos depois”. Esse saber global constituía a sua "cultura". No Livro dos Mortos, por exemplo, estão registradas tanto as grandes questões existenciais da jornada da alma após a morte quanto os saberes práticos ou tecnológicos dos antigos egípcios – por exemplo, como pintar os olhos com certo pigmento para evitar os males do sol do deserto.

A cultura egípcia atingiu seu ápice com a escola hermética de Hermes Trimegisto. Através dela foi transmitido de boca a boca aos iniciados o conhecimento mais elevado a que a humanidade havia chegado, sintetizando os sete princípios, ou leis de todo o cosmos.  Até que teve sua decadência – que é, inclusive, uma das leis. Dela resultou a cultura grega - se pensarmos só em Ocidente - e sua conhecida "mitologia".

Muitos dos deuses da mitologia grega foram herdados dos egípcios, mas adaptados no sentido da nova cultura - outro momento, outras necessidades. Os "deuses gregos" eram muito parecidos com os seres humanos. Cada um deles quase que personificava um aspecto da personalidade humana, seus defeitos e virtudes. O panteão de deuses representava para os antigos gregos uma cosmologia que permeava toda sua existência, de modo a poder explicar, justificar todos os acontecimentos humanos como um capricho deste ou daquele deus. Não deixava de ser, portanto, um primórdio da ciência psicológica.

Então, como conhecimento científico da psique humana, os mitos da antiga Grécia tiveram inestimável valor, tanto que são estudados até hoje na psicologia como representações dos “arquétipos”. Porém, a religiosidade mesma havia ido para o espaço. Nada de transcendente havia que não estivesse inserido nesta ou naquela narrativa dos mitos – a “história dos deuses e semideuses”. O surgimento do cristianismo, derivado do credo hebraico em um Deus único, veio revolucionar esse contexto do conhecimento dominante, atravessando as fronteiras da Palestina, onde surgiu, e atingindo todo o mundo ocidental, até os nossos dias.

Qual a grande revolução da mensagem cristã para a época? Ela devolveu ao homem a perspectiva do transcendente, da existência de um plano divino além do humano e de uma resposta ao "de onde", "por quê " e "para quê " do homem. O modo cristão de compreender o mundo e a si mesmo trouxe um ar novo àqueles que seriamente buscavam respostas. Mas, seguindo a lei hermética antes mencionada, também o vigor da concepção cristã tinha que decair no mundo. E o que vimos na alta Idade Média foi o reaparecimento do saber científico que ficara desacreditado por longo tempo – o renascer do “Renascimento”. A tal ponto a Igreja havia isolado e discriminado todo conhecimento científico ou "profano", que se havia chegado ao ponto de negar as evidências lógicas em nome dos dogmas religiosos. E eis quando ressurge, cheia de novo vigor, a ciência.

Infelizmente, os primeiros homens corajosos a afrontar os dogmas religiosos inquestionáveis pereceram em fogueiras ou, no mínimo, sofreram execrações em seu meio, tidos como hereges, ímpios, amigos do diabo, etc. Foi uma lenta e persistente caminhada a que a ciência empreendeu desde que Galileu Galilei ousou mostrar a evidência de que a Terra não era o centro do universo, contradizendo o texto das escrituras bíblicas.

Lembremos que todo saber tradicional que se transforma em código - como o linguístico – a fim de ser preservado para as novas gerações, está sujeito a deturpações ao longo do tempo. Sua decodificação ou interpretação muda com o tempo e varia de um grupo para outro. Como consequência, aquilo que na origem foi "límpido e claro como a água" torna-se com o passar do tempo turvo, contraditório, ilógico... E adeus, saber revelado! O que fora aceito por um ato de fé vai agora requerer também uma compreensão. Aconteceu com os textos bíblicos e as escrituras das grandes tradições religiosas. Se aquele saber não é vivo, se ele está morto na prática, cravado com palavras num livro, numa escultura, em qualquer forma de arte ou de ritual ou cerimônia - então ele está fadado a se corromper e, finalmente, desaparecer.

A gangorra se inverte: o conhecimento científico começa a subir, e o religioso, a descer. As máquinas ganhando mais e mais automação e transformando a vida diária... Domínio da eletricidade, eletrônica, navegação, informação global... Novas formas de energia, viagens ao espaço, inteligência artificial... E como resultado, um modo de vida não mais centrado no conhecimento, mas na posse de bens, e uma mídia poderosa ditando a cada um o que devemos pensar, desejar, acreditar... Mas quando, no momento de deitar a cabeça no travesseiro, o homem sente surgir aquelas velhas, incômodas perguntas sobre o sentido da sua vida... Silêncio, vazio, angústia; e a sensação de que, na esteira de todo esse conhecimento tecnológico, algo se perdeu no caminho; e que não foi algo supérfluo. Haja vista as alterações feitas na paisagem milenar do planeta e no clima, interferindo no curso da vida vegetal, animal e humana e colocando tudo isso em risco.

 

Como se chegou a esse ponto? Não faz tanto tempo assim que tudo começou! A boa nova de Galileu, no século 16, da existência de um sistema solar do qual nosso planeta participava ao lado de vários outros, obrigou à expansão do nosso olhar sobre o Universo e deu ao homem uma espécie de vertigem. Essa expansão não admitia a volta ao repouso das crenças religiosas; era preciso entender o que é o mundo e como ele funciona. Veio então sir Isaac Newton, no século seguinte, botar mais lenha na fogueira, com a evidência de um universo inteiramente em movimento, vivo, ordenado pelas forças gravitacionais dos corpos no espaço. Revelações que deram um nó na concepção de mundo, não só dos estudiosos, mas se refletiram em cadeia até os afazeres mais corriqueiros das pessoas simples. Então, o filósofo René Descartes traduziu o que estava acontecendo, com sua famosa fórmula: "Penso, logo existo". Era o início do século 18, e o início também de uma celebração cada vez maior do conhecimento científico, experimental, onde a razão é o único árbitro. Daí em diante, a tendência sempre maior a se extirpar toda forma de saber que não ocorreu por observação direta ou dedução lógica.

Mas a outra balança da gangorra não está totalmente no chão. O conhecimento religioso, da transcendência, nunca desapareceu do mundo – assim como o símbolo da tocha nos jogos olímpicos, sua chama é passada de mão em mão aos seres humanos dispostos a conservá-lo e passá-lo adiante. Em nossa época ele segue invisível, porém, mostra um pequeno impulso de subida. Por mais incrível que pareça, quem está contribuindo para que ele volte a subir na vida coletiva é justamente o conhecimento científico, também chegado ao seu grau mais elevado. É verdade que a ciência continua se dedicando às performances da tecnologia, mas alguns gênios da matemática, da física e da biologia se encerram em seus laboratórios de pesquisa, discutem com outros "esquisitos" e trazem hipóteses mirabolantes sobre o universo, revolucionando até mesmo a noção corrente da realidade.

 

Mas parece que a ciência está prestes a encontrar o seu próprio limite. Com a física se interessando cada vez mais pelo que ocorre no interior do átomo, e por outro, visualizando cada vez mais longe as fronteiras do universo, esse sólido edifício construído por Descartes - do pensar humano como única medida de todas as coisas - começa a balançar, assim como a crença de que a ciência acabaria por resolver todos os mistérios. Pelo contrário, os mistérios do universo não fazem senão aumentar... Quando pensaram que as descobertas de Galileu e de Newton haviam acabado com nossa segurança bíblica, ainda não haviam visto nada... No início do século 20 – ontem! - Albert Einstein veio arrancar com as mãos uma de nossas mais caras concepções de realidade, dizendo que o tempo, como tal, não existe. Pelo menos não existe como entidade ou fenômeno universal. Ele representa apenas uma relação entre um corpo que se movimenta no espaço, e outro corpo. Se os movimentos dos dois corpos têm o mesmo referencial no espaço, o tempo de ambos é coincidente - leia-se: medem-se pelo mesmo relógio.  Mas se os referenciais de observação do movimento de ambos forem diferentes - o que pode ocorrer em espaços muito grandes ou muito pequenos-, então os tempos não transcorrem da mesma maneira. Coisa de ficção científica? É a nova realidade.

Mas ainda não é tudo. As pesquisas da mecânica quântica deparam com uma frequência cada vez maior com fenômenos inexplicáveis pelo conhecimento científico já adquirido: partículas que surgem e desaparecem do nada, matéria e anti-matéria, matéria escura, energia escura, princípio da incerteza... Conceitos que dão certa dor de cabeça aos leigos, mas eles estão fascinados! Mas vamos deixá-los prosseguir em suas pesquisas. Enquanto isso, continuaremos usando tecnologias cada vez mais sofisticadas e nos sentindo cada vez mais ignorantes da nossa própria vida e significado... E esperando que, em algum desses labirintos e mistérios, os cientistas finalmente sintetizem Deus, para acreditar que há. Na verdade, não estão muito longe: em suas andanças astronômicas, lá pelas tantas, eles tropeçaram nos buracos negros. Perplexidade geral! E agora? Uma área bem definida do universo conhecido onde as "leis da física " são anuladas? Onde a matéria simplesmente some, sem se transformar em sua contraparte de energia, como Einstein havia postulado? Assim parece! O que é afinal um buraco negro? Será uma espécie de portal para outro universo? Ou um tipo de ralo por onde se escoa a matéria criada após o Big-Bang, para reciclar e recriar o mundo, infinitamente?

A história da ciência mostra que uma descoberta exponencial foi possível sempre que se ultrapassou os limites do pensamento da época para alcançar um nível mais abrangente em que o aparente paradoxo pudesse ser explicado. Foi assim que, para eliminar a contradição entre o princípio da relatividade do tempo e o da gravidade universal, Einstein concebeu o tecido curvo do espaço-tempo. E agora, para entender os buracos negros, qual limite os cientistas terão de superar em suas concepções?

 

Voltando à cultura egípcia e ao hermetismo - conforme o “Caibalion”, um pequeno livro publicado no início do século 20 para registrar por escrito, pela primeira vez, a tradição iniciática -, todo o mundo manifestado estava originalmente, e está, na Mente do Todo. Esse conceito de que “tudo é Mental”, não deixa de ter certa semelhança com o conceito de Tao, no Taoísmo, uma tradição também muito antiga do Oriente. Platão, na Grécia antiga, deixando atrás a antiga mitologia e criando a nova filosofia, já havia percebido isso. As coisas que vemos e conhecemos, desde as mais materiais, até as mais sutis já existiam na Mente Infinita, e não são, portanto, “reais”, mas “ilusórias”. Não quer dizer que as coisas não existam – para nós, que estamos no seu mesmo plano, elas existem plenamente! Mas de um ponto de vista “absoluto”, elas são criações da Mente Infinita Incognoscível. Platão captou essa ideia do hermetismo em sua concepção do “mundo das ideias”.

O universo, os seres, os fenômenos, todas as coisas derivam, em sua origem, da Mente do Todo Criador. Porém, para se manifestarem, elas obedecem estritamente a “leis” que a Mente do Todo também criou. Portanto, para conhecer toda e cada coisa, é preciso conhecer as leis que regem sua manifestação. Para isso, é preciso compreender um fato fundamental: tudo no mundo segue uma escala. Conhecer alguma coisa significa conhecer em que lugar da escala ela está.

O mestre George I. Gurdjieff, que na primeira metade do século 20 dedicou-se a explanar essa e outras ideias esotéricas de forma que o homem ocidental moderno pudesse entendê-las, chamou de “Raio de Criação” ao mundo como manifestação do Absoluto e se desdobrando em sucessivos planos cada vez mais densos, segundo as “leis”. A tradição hermética já ensinava que a realidade que conhecemos - e a que não conhecemos ainda - está composta de planos hierarquicamente organizados que vão desde a matéria mais densa até a realidade mais sutil. Do plano da chamada Matéria, com sete degraus, passa-se ao plano da Mente e deste ao plano do Espírito, com sete níveis cada um. Não há solução de continuidade entre o elemento mais material e o mais energético; entre o mais denso e o mais sutil. Ou seja, não há ruptura brusca na passagem de um nível a outro da escala, em direção à origem de tudo, o Ser Absoluto. Abolida, assim, qualquer discriminação entre corpo ou alma, material ou espiritual, natureza ou pensamento. A realidade passa a ser vista como um contínuo, com seus diferentes graus de materialidade, e passa a ser possível visualizar precisamente o sentido de uma “evolução”: a ascensão, na escala, na direção do Absoluto. Desse ponto de vista, tudo no mundo está em evolução, tudo está cumprindo o que lhe cabe ser.

Não seria esse o limite cognitivo que os cientistas precisariam ultrapassar para passar ao próximo nível do conhecimento? Passar a “ver” o mundo de forma ampla e profunda, não mais como objeto de pesquisa em laboratório, mas como uma “grande escala” da manifestação do Divino - tenha este o nome que se lhe quiser dar? Creio que teríamos, então, a Religião de mãos dadas com a Ciência.