quarta-feira, 17 de abril de 2024

O JARDIM DAS EMOÇÕES de Vovó Masha

 

O JARDIM DAS EMOÇÕES DE VOVÓ MASHA

Um conto infantil para qualquer idade

 


 

Os netos da vovó Masha – Laura, Henrique e Dudu – quando vão visitá-la correm para brincar no jardim, que eles adoram. Nos fundos da casa, o jardim começa ao se atravessar um portãozinho pintado de branco, sobre o qual pende uma placa onde se lê: “Jardim das Emoções”.

As crianças atravessaram o portão com a vovó. O jardim estava ainda mais bonito do que eles se lembravam. Flores variadas nos canteiros, bosques, caminhos marcados com pedras. Voando aqui e ali, seres do reino animal: passarinhos, borboletas, joaninhas e outros insetos. Dudu foi logo brincar no balanço e vovó sentou-se com os dois maiores no banco de pedra, sob a sombra de um Ipê amarelo.

- Como eu gosto deste jardim, vovó! – disse Laura.

Vovó Masha deu uma risada bondosa.

- Eu também, querida! Mas ele não foi sempre assim...

As crianças eram doidas por histórias e pediram que a vovó contasse mais.

- Não? Como ele era antes?

- Ah... – disse a vovó, se recordando. – Na minha festa de dezoito anos...

- Dezoito? – Henrique abriu a boca de espanto.

- Sim, eu ia fazer dezoito anos e vim ao jardim buscar algumas rosas para colocar num vaso. Quando cheguei, encontrei meu jardim completamente arrasado. O mato havia crescido tanto que os arbustos espinhentos sufocaram as flores. Não havia uma única roseira... Sentei-me aqui neste banco e chorei. Estava tão desanimada! Foi então que um Pica-pau, ali naquele tronco, me falou...

- Passarinhos não falam, só cantam! – interrompeu Laura.

- Pois é, normalmente não falam – disse a vovó. – Mas aquele falou. Falou bem assim, me olhando de lado:

- Por que está chorando, Masha? Pra tudo tem remédio, tem sim!

Pensei que estava ficando louca. “Ele está falando comigo”. Mas respondi:

- Ah, Passarinho... Olhe este jardim! Passei toda minha vida cultivando estas flores, mas eu sou um desastre. Nada cresce, e o que cresce acaba morrendo.

- Escute – disse o Pica-pau. – Já ouviu falar da Maga Jardineira? Ela faz milagres com qualquer jardim, faz sim!

- Quem é essa maga? Onde ela mora? – perguntei.

- Seu nome é Magobel – disse o Pica-pau - Eu soube que ela está morando no Vale das Águas Curativas.

- Eu não o levei muito a sério – continuou a vovó. – Mas não tinha muita escolha. Corri para a estação de trem. O pássaro me acompanhou, voando por sobre minha cabeça. Tomei o trem e desci na pequena Águas Curativas. Era uma cidade diferente de todas que eu conhecia. Seus habitantes pareciam sempre felizes, sorridentes e amáveis. Tomei coragem e perguntei a um velho muito velho:

- O senhor deve morar aqui há muito tempo. Será que conhece a senhora Magobel?

- Ah! A Maga Jardineira? – disse o homem. – Claro que sim. Todos a conhecem por aqui.

 O simpático velhinho me deu um mapa meio amarrotado. Eu me pus a caminho, de olho no mapa. No local marcado com um “X” me vi diante de uma casa alegre, com um vasto jardim florido. No meio da folhagem, uma mulher agachada, usando um chapéu com fitas coloridas, cuidava das plantas.

- Com licença... A senhora é a Magobel?

- Sim. Entre, entre! Em que posso ajudar?

Pouco depois, tomando uma xícara de chá em sua sala acolhedora, contei-lhe meus problemas com o jardim dos meus sonhos. Então notei que Magobel usava um vestido azul com asinhas de borboleta ou de fada. Seria ela uma fada?

- Venha! – disse ela - Vou lhe mostrar uma coisa.

Ela me levou ao jardim e mostrou os canteiros. Havia flores de diferentes tipos, cores, formatos, tamanhos. Mas me chamou a atenção os nomes escritos nas plaquinhas dos canteiros. Havia Serenidade, Alegria, Generosidade, Criatividade, Lucidez e assim por diante.     

- Que tipo de flores eram aquelas? – quis saber Henrique.

- Foi o que eu perguntei à Maga Jardineira – disse vovó Masha – E ela me respondeu:

- Você pode ver que as flores que cultivo são de um tipo especial: são flores de emoções. Na verdade, todas as pessoas possuem um jardim como o meu e como o seu também. São as nossas emoções mais habituais. E são elas que dão a atmosfera da nossa vida!

- Eu nunca havia pensado nisso! – eu lhe disse. Na verdade, eu estava pensando no meu próprio jardim, abandonado à própria sorte. Até aquele momento, eu só tinha tido reclamações para ele! Eram as minhas emoções que estavam secando e definhando...

- Agora venha, vou lhe mostrar outra coisa. – disse a Maga.

A Maga Jardineira me levou a um depósito onde vi prateleiras cheias de vidros com tampas. Em uma das prateleiras, um gato preto dormia. Fui lendo os rótulos daqueles vidros: Desânimo, Desconfiança, Medo, Raiva, Ingratidão e muitos outros.

- Ui! – eu disse – Para que servem essas aqui?

- Essas são as pragas que tiro do meu jardim – disse a Maga Magobel. – São as chamadas emoções negativas. Se deixar que esses bichinhos cresçam à vontade, eles devoram e acabam com minhas belas flores. – E ela deu uma boa gargalhada.

Fiquei confusa, porque naquele momento a Maga Jardineira não parecia mais uma fada: ela vestia um manto negro e na cabeça tinha um chapéu pontudo da mesma cor.

- E o que você fez, vovó? – quis saber Laura.

- Magobel – eu lhe disse, vencendo meu medo – você pode me ajudar?

A Maga Jardineira me mandou esperar um instante. Quando ela voltou, estava outra vez vestida de azul-celeste, com suas asinhas de fada. Levou-me a um canto do jardim, onde um gato amarelo dormia...

- E depois, vovó? – perguntou Henrique.

- Bem, eu não entendi o que ela fez. Lembro-me que segurou minha mão direita e me mandou desenhar o formato do meu jardim, com uma caneta mágica. Fiz o desenho na palma da minha mão e o interior do desenho logo ficou preenchido com um mato denso.

- Hum... Está confuso aqui! – disse a Maga Jardineira. – Onde mais ou menos ficam as flores?

Eu apontei para os locais no desenho onde deveriam estar as rosas, as dálias, as margaridas... Ou seja, as belas emoções da minha vida.

Magobel fechou os olhos, sempre segurando minha mão e começou a dizer palavras incompreensíveis.

- O que a senhora disse? – eu perguntei.

- Oh! – disse ela – não é nada complicado. Eu simplesmente tirei as ervas daninhas que estavam matando as flores e em seu lugar plantei mudas que você já havia plantado, mas estavam sem força. Arrancando e plantando, arrancando e plantando. Simples assim.

A Maga tornou a fechar os olhos e murmurou mais palavras encantadas. Quando terminou, ela me disse, fechando minha mão:

- Cuide bem das suas novas mudas, querida! Elas são lindas! Não há razão para que não floresçam. Ah, e não se esqueça de arrancar as ervas daninhas e afastar as pragas! Não se iluda, porque elas vão sempre voltar e tentar acabar com a lindeza de tudo... Por isso é que se chamam pragas! Ha! Ha! Ha!

Estava na hora de ir. Nós nos despedimos com um abraço. Eu estava emocionada: com sua bondade, a Maga havia feito meu desânimo desaparecer, e eu não via a hora de voltar e cuidar do meu jardim. Afinal, minhas queridas plantas mereciam viver, assim como eu! Mas eu tinha uma dúvida...

- Obrigada mesmo, Magobel! Mas... A senhora fez uma transformação no jardim da minha mão... Como é que vou fazer isso no meu jardim de verdade?

- Não se preocupe! – ela disse – O que está na sua mão, está no seu coração, e o que está no seu coração vai florescer na sua vida!

Quando olhei para trás, ela acenava para mim no portão. Estava de novo com seu chapéu preto de bruxa, mas com o vestido azul de fada. Engraçado como ela convivia bem com esses dois tipos de vestuário, assim como com os diferentes tipos de emoções!

- E deu certo, vovó? – perguntou Laura, ansiosa.

- Bem... Logo de cara, não. Saí de Águas Curativas me sentindo bem mais leve do que quando chegara, o que me fez pensar que provavelmente as emoções negativas pesavam mais. Então, quando cheguei em casa...

 - Olha! Ela voltou, voltou sim!

Era o Pica-pau me esperando no portão enferrujado do meu jardim.

- Sim, Pica-pau, voltei! – eu disse – Encontrei a Maga Jardineira e foi maravilhoso! Agora vou arrumar toda essa bagunça e...

- Ops! É melhor você não entrar aí... – disse o pássaro.

Ele me contou que o jardim perdera bastante do mato, porém, havia sido invadido por uma multidão de lagartas pretas e vermelhas. No início os pássaros tentaram comê-las, mas seu gosto era horrível até para eles.

- Elas são nojentas, são sim! – disse o Pica-pau. – As pretas são gordas e rastejam; as vermelhas são rápidas e queimam como ácido.

Assim, antes de entrar no jardim, eu tive de consultar o livro que a Maga Jardineira me dera. No livro pude identificar aquelas pragas: as lagartas pretas representavam a emoção da tristeza; as vermelhas, a emoção da raiva...

 Vovó Masha notou que o pequeno Dudu havia deixado o balanço e agora também ouvia atentamente o fim da história.

- E aí? – perguntaram as três crianças.

- O livro mágico da Magobel dizia que o antídoto para ambas as pragas, - continuou a vovó - tanto as lagartas pretas quanto as vermelhas, era uma árvore chamada Manacá. Essa árvore, muito comum na mata atlântica, dava flores de duas cores: branca e rosa. As flores brancas continham emoção de alegria, que fazia espantar a tristeza. Já as flores cor-de-rosa espantavam rapidamente a raiva porque continham generosidade.

- Nossa! – Laura bateu palmas. – Eu queria ter um livro assim.

- A primeira coisa que fiz – disse vovó Masha – foi buscar as tais sementes de Manacá-da-Serra e plantá-las por todo o jardim. No começo eu usava botas e luvas de borracha para me defender das lagartas. As sementes germinaram, as árvores foram crescendo, crescendo... Antes mesmo que ficassem adultas, já foram espantando as lagartas para longe.

Quanto às outras plantas, eu nem podia acreditar! Surgiram flores de que eu nem me lembrava e pensei que estavam mortas! Outras que eu havia plantado há algum tempo, mas que regava e regava e teimavam em pender dos caules, fracas e indefesas, e agora... Que vitalidade! Exalavam a luz do sol que elas absorviam, e a devolviam ao mundo em forma de beleza. Olhem para elas!

Nesse momento, um Pica-pau de topete vermelho apareceu bicando o tronco.

- Será o mesmo pássaro dos seus dezoito anos? – perguntou Henrique.

- Oh, creio que esse deve ser um de seus netos! – disse vovó Masha, sorrindo. – Meu amigo Pica-pau me aconselhou a procurar a Maga Jardineira, e no fim, ele também ganhou um jardim muito agradável para viver e criar sua família.

- E você não procurou mais a Jardineira mágica? – disse Laura.

- Oh, sim! Nós nos tornamos grandes amigas – disse a vovó. – Mas eu já tinha me tornado Jardineira de mim mesma.

Ela olhou seu reloginho de pulso.

- Crianças, hora de almoçar!

Foram saindo, mas, a certa altura, Vovó Masha notou que Dudu havia ficado para trás. Voltaram ao jardim e o chamaram. Lá estava o garoto, muito à vontade, conversando com o Pica-pau.

 

FIM

sábado, 2 de março de 2024

A HORA E A VEZ DE JOÃO FERNANDES III

 


A HORA E A VEZ DE JOÃO FERNANDES III

Conto

 

 

- João Fernandes, o que você tá fazendo agachado aí na horta? - gritou Bibiana da porta da cozinha.

O marido não a ouviu. Ela tornou:

- O sol tá quente, homem! Vai te fazer mal.

João Fernandes se voltou:

- Então me traz o chapéu!

Bibiana se aproximou com o chapéu de palha.

- O que é isso que você tá fazendo?

Ele largou o martelo e as tábuas, enfiou o chapéu na cabeça e secou o bigode com as costas da mão.

- É uma armadilha pra pegar esse gavião filho da mãe.  Quero só ver ele roubar nossos pintos de novo! 

Bibiana abriu a boca.

- Mas como...?

- É simples. Olha... Aqui vai ficar o pinto. O bichão vem pra caçar ele, pousa aqui. Na hora em que puxar o barbante, derruba isso aqui... e bum! Fica preso.

João Fernandes ficaria muito mais tempo explicando seu plano, mas a mulher já tinha ido ver suas panelas no fogo. Se fosse dar ouvidos a todas as invenções do marido...

Não fazia muito que eles haviam ido morar no campo. João Fernandes conseguira se aposentar cedo por causa de um ferimento no braço, trabalhando na metalúrgica. Aproveitou a deixa do destino para realizar um sonho.

- Vamos nos mudar pro interior, Bibi!  Nosso filho já está adulto, tem sua família... Vamos curtir a nossa velhice.

Ele não explicou, na época, seu plano de também escrever versos. Era outro desejo oculto, que nunca saíra da imaginação para o papel. João Fernandes acreditava que longe da cidade, mergulhado na natureza e sob o céu estrelado do interior, a inspiração não lhe faltaria.  

Os primeiros tempos na cidadezinha foram bastante duros. João Fernandes havia comprado uma chácara com uma casinha razoável, e logo começou a plantar. Árvores frutíferas, milho, feijão, uma horta de verduras e um jardim para Bibiana. De sol a sol, ele trabalhava feliz, rejuvenescido. Sentindo que a coisa prosperava, ousou mais: construiu um galinheiro, e as aves passaram a ser sua menina dos olhos, bem cuidadas e até mimadas. Ele gostava sobretudo de ver Bibiana indo com a cesta ao galinheiro e trazendo os ovos bonitos, rosados, com peninhas grudadas. Nesses momentos, compunha mentalmente um verso assim: “Lá vai ela muito faceira/colher seus ovos na manhã...” Não achava a rima, porém, e o verso não progredia.

Na hora de comer a omelete, sempre repetia:

- E pensar que a gente nem precisou comprar eles no mercado!

Mas o casal começou a dar pela falta de alguns franguinhos novos. Foi o vizinho de cerca quem comentou sobre o gavião que andava rondando os galinheiros. Foi ele também que deu a ideia de uma armadilha, que o espírito empreendedor de João Fernandes logo resolveu pôr em prática.

No dia seguinte, saiu bem cedo para a avícola e dessa vez voltou com um só pinto.

- Ai, João Fernandes... - estranhou a mulher.  - Esse pinto tá tão raquítico. Não tinha outro melhor?

Mas para o que se destinava, aquele estava bom demais. João levou-o para o quintal e amarrou-o pela perna sob a arapuca recém-construída. Entrou em casa esfregando as mãos:

- Ahá! Agora é só esperar. Quero ver se aquele safardana do gavião vai se livrar dessa. Vou pegá-lo pelo pescoço e lhe dar o mesmo fim que ele deu pros frangotes.

A mulher sentiu-se um pouco afetada pelos modos rudes do marido, mas achou melhor não contrariar. Aquele, quando punha uma ideia na cabeça...

Na primeira noite não aconteceu nada.  Na segunda noite eles foram despertados por gritos e guinchos. João Fernandes vestiu as calças, trêmulo de excitação. Chegou à horta levando as cordas que tinha preparadas, mas soltou um murmúrio de decepção.

- Filho da mãe...!

A arapuca fora desarmada, mas o gavião conseguiu se safar, deixando algumas penas para trás. A mulher chegou logo depois.

- O que foi, meu Deus?!

João levantou as tábuas. O pinto continuava piando. Estava ferido, mas se salvara do gavião.

- Coitadinho! - Bibiana levou as mãos à cabeça. - Está com a patinha destroçada.

 

A mulher embrulhou a avezinha na ponta do roupão e levou-a para dentro. Tratou da ferida na pata, que era mais grave do que parecia. Aos poucos o franguinho foi se recuperando, já comia farelo às bicadas, bebia a água do prato... Um belo dia saltou da cama e saiu pulando pelo quarto como um saci. Bibiana ficou enternecida:

- Benza Deus! Não era a hora e a vez dele.

João Fernandes olhava cético:

- Só falta você querer dar um nome pra ele.

- E por que não? - disse Bibiana.  - Você é João; nosso filho é João... Pois ele vai ser o João Fernandes III. - E bateu palmas da própria traquinagem.

Os dias foram passando.

O pinto virou um frango e não saía de perto de Bibiana, pulando daqui para lá com sua única pata. João Fernandes, o Primeiro, foi se habituando a vê-lo comendo ao lado deles, na mesa, no pratinho que a mulher lhe fazia especialmente.

- Credo! - disse, rindo, o filho ao visitá-los - Esse aí que é o meu irmão?

- Não deboche dele, Júnior - disse a mãe. - Seu pai queria matar o pobrezinho, e olhe como ele é inteligente.

Para provar o que dizia, Bibiana fingiu vestir a camisola de dormir e apagou a luz. João Fernandes III pulou da cadeira e foi imediatamente se encorujar ao lado da geladeira, na caixa onde dormia.

Todos riram e a luz foi novamente acesa.

- Não falei? - disse Bibiana, triunfante. - Ninguém mexe com o meu bebê.

João Fernandes, o Primeiro, não gostou muito da predileção da esposa pelo franguinho, mas ia se acostumando. Ao entrar em casa à tardinha, cansado e louco pra tomar um banho, já encontrava o Terceiro empoleirado na borda da banheira à sua espera.

- Quem diria que ia se tornar um mascote - ele pensava. E, entrando na brincadeira que a ave esperava, fazia bastante balbúrdia para salpicá-la com água.

Uma noite o gavião voltou. Ao que parece, já se havia recuperado do trauma da armadilha e o desejo de caçar falava mais alto. As galinhas estavam agora bem guardadas no galinheiro. No escuro do quintal, o arguto gavião via apenas o brilho da tela da TV pela janela aberta. E ele não deixou de logo distinguir, por entre as risadas do casal de idosos, um piado, que era o jeito do Terceiro acompanhar seus donos. O alerta biológico do gavião foi ativado, e ele passou a rondar a casa quando a TV estava ligada. Por isso, nem Bibiana, nem João Fernandes, o Primeiro, perceberam que o galinho, que estava crescendo muito rápido, não estava mais com eles na sala. Só escutaram mais tarde um barulho esquisito de asas sendo arrastadas, e depois o terrível guincho... Correram para fora a tempo de ver João Fernandes III sendo levado pelos ares, com o pescoço quebrado e a sua única pata.

Ficaram tão consternados que não puderam entrar em casa. Sentaram-se no banco do jardim, mudos, olhando para as estrelas, esperando... o quê? Até que o dia amanheceu, e então Bibiana, enxugando os olhos vermelhos, foi preparar o café.

- O que foi, com meu irmão galo? - perguntou o Segundo, no dia de visita.

João Fernandes, o Primeiro, ergueu-se da mesa, taciturno. A mãe respondeu, recolhendo os pratos:

- Foi nada, meu filho. É só que chegou a hora e a vez dele.

 

FIM


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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

PASTORAL AMERICANA - o livro


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PASTORAL AMERICANA – o livro

Comentários ao romance de Philip Roth[1]

 

Eu tenho lido bastante. Mas não me lembro de haver lido nada produzido no último século que se iguale a este romance extraordinário, que também virou filme[2]. Intrigante, original e profundo do começo ao fim, ele me fez sentir diante de uma nova e radical forma de escrever ficção, sem entretanto abdicar dos aspectos que fazem do gênero romance o suprassumo da literatura. Um verdadeiro ponto de inflexão na história do romance, no meu ponto de vista, assim como Marcel Proust e Miguel de Cervantes o foram em suas épocas.

O que surpreende logo na primeira curva do livro – porque ele começa, por assim dizer, numa reta bem suave – é a mudança do narrador. Fomos levados até aqui por um narrador em primeira pessoa que é “um escritor que se lembra”. De que ele se lembra? De sua infância passada num bairro judeu de Nova York, na primeira metade do século. Mais precisamente, lembra-se de um colega: um garoto perfeito, ídolo do esporte local, do qual ele nunca conseguiu se aproximar muito, mas que o marcou profundamente como um modelo, uma inspiração. Note-se que o “Sueco”, como era conhecido o ídolo, ainda não é um personagem de seus escritos, apenas alguém de sua memória, que o narrador relembra.

A partir de certo momento da trama, o escritor-narrador é levado a escrever sobre o Sueco, e então o romance se transforma. O colega de infância que ele via de longe, com sua aura de sucesso e perfeição, estava morto. Ora, os ídolos também morrem. Mas as razões que teriam convertido a vida do Sueco num verdadeiro inferno, levando-o à morte, segundo o relato do irmão, eram tão absurdas para um ser daquela estatura moral, física e social, segundo seu ponto de vista, que ele resolve reconstituir aquela vida, aquela pessoa, aquela história; ou seja, fazer do Sueco o protagonista de seu livro. 

Aqui começa o romance da construção de um romance.

Percebemos que a tarefa de Zuckerman, o personagem escritor, é difícil, pois trata-se de escrever sobre uma pessoa real e as pessoas são intangíveis em sua essência, sobretudo o Sueco, que fez questão de apresentar ao mundo sempre uma máscara perfeita. Mas ele está bem ciente do fato. Sabe que, por mais que se esforce em buscar a verdade por trás da persona, seu “Sueco” será um personagem. Impossível a fidelidade absoluta. Além disso, para o nível do ser que ele pretende atingir, não pode se fiar na palavra de ninguém que o tenha conhecido, por mais sincero que o depoente deseje ser. Tudo deverá sair de sua própria dedução e sentimento. O narrador nos conta que durante os meses seguintes fará uma imersão tão grande no modo de ser do “Sueco” e nas coisas que ele viveu, que será como ver o mundo com seus olhos; tornar-se ele próprio. Empenha-se em visitar lugares em que o protagonista viveu e por onde passou, lugares que doravante a sua imaginação irá preencher com a presença do “Sueco”.

Dá-se, então, o ponto de virada na construção do romance. Em dado momento, o Sueco começa a falar em primeira pessoa – e ele passa a ser o narrador principal de sua própria vida. Apesar disso, o primeiro narrador (onisciente) continua se intrometendo aqui e ali, dizendo o que pensa da situação e nos fazendo lembrar que, embora agora em segundo plano, é "ele" quem está escrevendo a história... Mas o Sueco reassume a palavra em seguida, não perdendo o fio. Assim, as intromissões do narrador-escritor prosseguem mimetizadas na paisagem do romance sem quebrar o ritmo da narrativa, mas, ao contrário, aumentando ainda mais a temperatura emocional.

É claro que a história do Sueco, propriamente dita, é incrível – se assim não fosse, não teria muita importância a forma original de narrar. É a saga de uma consciência pura, alegre, satisfeita consigo mesma e com o mundo em que está inserida e dotada de um profundo senso de gratidão e dever, através de um mundo que se corrompe cada vez mais, fazendo sua sobrevivência naqueles moldes parecer incongruente, inepta e até mesmo louca. O protagonista nos aparece tão deslocado, desde a eclosão de seu conflito interior, quanto um Dom Quixote do século XX, em um mundo capitalista que perdeu todos os seus valores.

Com uma configuração como essa, os fatos da vida que acontecem ao Sueco assumem uma qualidade trágica. Sua história é uma tragédia dos nossos tempos, na qual o herói, sem saber por quê, é punido pelos deuses com um sofrimento atroz... Ele é atingido pelo destino "naquilo que lhe é mais caro". A pessoa a quem mais ama no mundo – sua filha - se mostra sua pior inimiga – dele, de si mesma e de todas as coisas que têm ou tiveram valor, tais como sua família, casa, tradições, seu trabalho e papel no mundo, sua pátria (a América da liberdade e da prosperidade) e assim por diante. O mundo do Sueco é implodido de forma invisível aos olhos dos outros, e ele colapsa como um deus atingido em seu pedestal.

O escritor se propõe a desvendar essa queda do protagonista. E nesse processo vai nos mostrando as entranhas da sociedade norte-americana do século XX e os conflitos das gerações. Muito já se tem falado em relação aos temas políticos e éticos abordados no romance – a questão religiosa, a questão racial, os protestos contra as guerras, a rebeldia que os jovens começam a mostrar a partir da década de 60, os políticos corruptos, a mudança na atuação das empresas, os males da televisão e muitos outros. Esse panorama é visto a partir de seus elementos menores, dentro da família, à medida que as pessoas vão sendo afetadas pelas mudanças em suas próprias vidas. Ele enriquece a "Pastoral" e revela a ironia de seu título, uma ironia amarga e melancólica. Não deixa de ser uma evocação de um tempo em que “as coisas eram melhores” – principalmente na fala do pai do Sueco, uma personalidade dominadora que se vê perplexo diante da decadência de valores que tinham sido tão fundamentais para o estabelecimento dos imigrantes no passado.

Mas, apesar de sua importância, o fulcro do romance não é o panorama social nem o questionamento ético. O que faz o livro ser universal é o tema da dor e da injustiça. “Por que acontecem ao Sueco aquelas coisas?” “Em seu lugar, o que nós faríamos?” É o mesmo absurdo das desgraças que atingiram o Jó da Bíblia, a pessoa que menos as merecia. Como dissemos, essa é uma história trágica. Por sua característica de herói no sentido mitológico, o Sueco tenta até as raias do impossível entender o que aconteceu com a filha; faz tudo para conciliar o inconciliável e tentar corrigir em si mesmo os erros inadmissíveis (que ele não vê que estão fora dele), para que a vida volte a seus eixos. Não consegue, evidentemente. E esta será a causa de sua morte final. Não o câncer, não a idade, mas a impossibilidade de ser Si mesmo.

E o narrador-escritor (*) estava ciente do que aconteceria desde o princípio? O sentimento de empatia e o anseio de compreensão despertados nele desde que ouviu o relato do irmão do Sueco o conduziram enquanto escrevia a saga. E o final da história do Sueco só poderia ser o concebido desde o início, assim como na tragédia o desfecho trágico está delineado desde as primeiras ações do herói. 

(*) Não confundir o personagem escritor com o autor do romance. 


NOTAS

[1] American Pastoral, de Philip Roth, vencedor do prêmio Pulitzer, publicado em 1997

[2] Pastoral Americana, filme de 2016, roteirizado por John Romano e dirigido por Ewan McGregor

[3] Pastoral-gênero de arte (Wikipedia) – abordagem adotada nas artes e na literatura, caracterizada pelo tratamento idealizado do estilo de vida dos pastores, retratados como pessoas simples que cuidam do gado em meio a paisagens bucólicas, em conexão com a natureza, de acordo com as estações e as mudanças na disponibilidade de água e de pasto. Principalmente direcionadas ao público urbano, as obras pastorais apresentam as sociedades de pastores como livres da complexidade e da corrupção da vida nas cidades.

 

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Contos recentes: Às Margens do Rio Tafi; A Visita dos Deuses; O Homem do Poço; A Última Lembrança 




 

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

ÀS MARGENS DO RIO TAFI

 


ÀS MARGENS DO RIO TAFI

(conto)

 

Eu vinha de excursionar pelas colinas de uma encantadora cidadezinha aos pés da cordilheira, quando dei pela falta da minha câmera kodak. Na mochila de lona onde a levava pendurada, só balançava o fio solitário. Não era o valor da câmera que me fazia lamentar sua perda, mas sim as fotos maravilhosas daquele passeio que eu jamais poderia revelar. A simpática dona da pousada me ouviu e comentou:

- Você pode voltar lá amanhã e procurar entre as rochas, ou então pedir a Brancaflor que a encontre.

Diante do nosso espanto, ela sentou-se conosco e contou-nos a história de Brancaflor.

...

 

Conta-se que a única filha de Dom Manuel Hernandez foi capturada por um índio quando passeava nas margens do rio Tafi. Depois de alguns dias a moça voltou para casa. Não vinha assustada nem ferida, mas com um ar sonhador e completamente muda. De modo que ninguém ficou sabendo o que lhe aconteceu.

Nove meses mais tarde ela sentiu as dores do parto; Dom Manuel e a esposa ganhavam uma neta que foi batizada de Brancaflor. E se esse nome sugere uma beleza delicada e pura, fazia jus plenamente à criança, que era de uma formosura angelical.

A mãe de Brancaflor morreu pouco depois, e a menina foi criada pelos avós com desvelo. As amas e pajens trazidos para cuidá-la, ao verem a menina pela primeira vez quedavam extasiados, como se vissem um querubim caído das nuvens. Assim foi a infância de Brancaflor.

Os avós pensavam: mas uma criança não é como um anjo imutável. Crianças chegam à puberdade e adquirem espinhas, manias; espicham em partes desproporcionais; a voz desafina; a nova personalidade desafia os mais velhos e assim por diante. Tal não foi o caso de Brancaflor. Cresceu e tornou-se ainda mais bela ao cristalizarem-se os traços algo exóticos de sua face e a esbeltez de seu corpo. Tinha a pele clara e os olhos ligeiramente oblíquos, lábios carnudos e uma basta cabeleireira negra. Quanto ao olhar, era o que lhe concedia um ar misterioso e amável de fada ou ninfa. Nenhuma rebeldia, nenhum antagonismo. Em suma, era impossível vê-la e não a amar.

Com o tempo foi-se revelando nela um dom. No começo a avó acreditava que era coincidência: quando lhe pedia para buscar qualquer objeto perdido, a menina o trazia na mesma hora, fosse uma tesourinha de costura, um pente de cabelo ou um documento que o avô não se lembrava de ter guardado. Com a repetição do fenômeno, já ninguém mais duvidava que Branca era capaz de achar o que quer que alguém tivesse perdido. E as pessoas do bairro a procuravam com os mais variados pedidos de ajuda... Eram objetos perdidos ou roubados, animais de estimação fugidos ou até pessoas desaparecidas. Os bombeiros de outras cidades iam chamá-la quando se tratava de resgatar vítimas sob os escombros. E ela prontamente atendia a todos. Não havia o que ou quem ela não encontrasse.

- Como foi, Branca – perguntou-lhe a avó -, que você começou a ver coisas que ninguém vê? Quem lhe deu esse poder?

Brancaflor estava sentada aos pés dela, no leito. Ela se calou por um instante, depois disse:

- Ah, minha avó, quem me deu esse poder foi um índio que me aparece em sonhos desde que eu era bem pequena, e diz ser meu pai. Mas não posso lhe contar mais.

A avó, que estava muito doente, morreu pouco depois. Branca nunca mais falou sobre o assunto, sob pena de perder o dom que havia recebido.

...

As águas foram correndo no rio Tafi. Certo dia em que Brancaflor colhia lírios selvagens à sua beira, um moço desconhecido passou por ela. Impressionado por sua beleza, ele voltou e começaram a conversar. Chamava-se Santiago. Mudara-se há pouco para a cidade com seu filho pequeno, depois de ter enviuvado. Branca ficou comovida com sua história e manifestou desejo de conhecer o órfão. Foram juntos até a praça onde o pequeno Dani brincava sob a supervisão de uma babá. Daquele dia em diante os três viam-se quase todos os dias. O avô de Branca, que já estava bem velho e doente e temia que sua neta ficasse sozinha, fazia gosto no casamento. Casaram-se.

Se eram felizes juntos ou não, ninguém poderia afirmar. Do que ninguém tinha dúvida era do amor apaixonado que Brancaflor nutria por Dani, criando-o e cuidando dele como se fora seu próprio filho. Não havia o que ela não fizesse pelo menino, que também a adorava. Dom Manuel havia morrido e Branca herdara a propriedade, agora administrada por Santiago. Quando Dani fez quatro anos, Brancaflor recebeu uma carta. Um advogado de uma cidade próxima solicitava seus préstimos para localizar uma pessoa desaparecida. Ela viajou para lá sozinha.

O advogado levou-a até sua cliente. Era uma jovem mulher adoentada e com o rosto devastado pelo sofrimento. Contou a Branca que havia anos procurava por seu filho que havia sido levado pelo ex-marido às escondidas. Desde então, nunca mais tivera notícia dos dois.

- Ele era pouco mais que um bebê! – soluçou a jovem.

Branca despediu-se dela prometendo fazer o possível para ter a visão que ela procurava, do paradeiro da criança.

- Sim – disse a mulher, abraçando-a. – Apenas rezo para que meu filhinho esteja vivo e eu volte a tê-lo em meus braços.

Já em casa, Brancaflor não parava de pensar na pobre mãe. Depois de pôr Dani na cama, ela se recolheu para meditar e se concentrar. Nessas ocasiões, invocava o índio seu pai, e lhe pedia orientação em sonho. Então ela dormiu e sonhou. Primeiro ela viu o índio a cavalo, sob o luar, trotando perto do rio. Em seguida teve a visão de um cobertor xadrez azul e vermelho. Despertou assustada e correu ao quarto do filho adotivo, que dormia tranquilamente sob o cobertor xadrez azul e vermelho.

Não pode ser verdade, pensava ela, chorando pelos cantos da casa. Viajou novamente, desta vez levando uma fotografia de Dani. Ao vê-la, a mulher quase teve um desmaio. Reconhecera seu bebê.

- Sim, é o meu Carlo – dizia ela, em meio ao riso-choro.

Brancaflor começava a entender tudo.

- E qual o nome do pai dele? Não é Santiago?

- O pai dele se chama Martim. Mas não duvido que tenha arranjado um nome falso para fugir com o menino.

O advogado foi chamado e, inteirando-se das suspeitas, se pôs a investigar Santiago secretamente. Depois que tudo ficou confirmado, não havia como negar que Branca fora enganada pelo marido, que não era viúvo coisa nenhuma, nem o menino, órfão. Ela voltou para casa se sentindo um trapo. Não comia nem bebia, apenas pegava Dani-Carlo no colo e, enchendo-o de beijos, chorava. Por fim tomou a difícil decisão. Fez sua mala, vestiu-o com seu melhor terninho e, ao amanhecer, embarcaram num trem.

- Meu filho – disse ela – Você sempre será meu filho, e eu, sua mãe.

- Hã-hã – disse Carlo, sem entender.

- Mesmo que a gente fique muito tempo sem se ver, entendeu?

- A gente vai ficar?

- Vai, Carlo. É preciso.

Ela tirou uma corrente de seu pescoço e pendurou-a no do garoto.

- Vamos combinar uma coisa? – disse-lhe, já com os olhos molhados.

- O quê?

- Toda vez que você quiser me ver, ponha esta corrente e eu vou te aparecer em sonhos.

- Tá bem, mãe.

E Carlo continuou olhando fascinado pela janela do trem, sem se dar conta de que era uma despedida. A jovem mãe os estava esperando na estação. Abraçou o filho tanto, tanto, que quase o deixou sufocado. Ele ainda olhou para trás, mas Branca já se afastava, acenando com a mão, sem deixar que ele visse seu rosto inundado de lágrimas.

...

A dona da pousada deu um suspiro ao finalizar a história de Branca.

- E o marido mentiroso? – perguntei. – O que aconteceu com ele?

- Foi descoberto e preso – ela disse. – O casamento com Brancaflor foi anulado, mas ela não voltou para a propriedade de seu avô. Vendeu tudo e internou-se na mata, nunca mais voltou à civilização. Algumas pessoas dizem tê-la visto vagando nas margens do rio.

- Que história!

Fiquei pensando que ainda me restava um dia como turista no lugar e eu ia dedicá-lo, inteiro, a procurar Brancaflor nas margens do Tafi... Se eu tivesse o seu dom...

 

FIM



sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

A Visita dos Deuses


 A visita dos deuses

conto


A visita dos deuses

 

Apolo e Hefesto[1], vindo à Terra com a missão de salvar a raça humana do consumo desenfreado e da perda de significado, desceram da morada dos deuses diretamente na rua 25 de Março, o grande centro comercial em São Paulo. Alguns dias antes, Apolo havia procurado o grande Zeus no Olimpo, e curvando-se diante de seu trono, falou:

- Ó grande Zeus, pai de todos os deuses, que mantivestes o nosso mundo até agora em expansão e perfeito equilíbrio!

Zeus revolveu-se em seu assento.

- Dizei-me, Apolo-Sol, meu filho dileto: acaso eu não o mantenho ainda?

- Não, grande Zeus! Os mortais já não nos respeitam, nem a deus algum! A ociosidade, a luxúria e a ganância tomaram conta do fazer dos homens. O único deus a que eles prestam homenagem chama-se Dinheiro.

- Continuai!

- O pior é que consumir para eles tornou-se um vício que vai enfraquecendo seu caráter já de natureza fraco e volúvel, e eles já não acreditam nem em si próprios.

Zeus afagou sua longa barba e disse:

- Suponho que me estais a pedir permissão para descer ao mundo dos homens. Pretendeis inspirá-los com vossas artes como a música, a pintura, a poesia?

Apolo assentiu com a cabeça.

- Sim, meu pai! Farei com que os homens explorem essas e outras habilidades e descubram dentro de si uma nova paixão.  

- Pois ide! Tendes minha permissão. Mas para maior proveito, levai também vosso irmão Hefesto. Nem só de arte abstrata é feita a vida dos mortais, e nem todos dão para isso. Há de lhes fazer bem um pouco de labor manual e engenhosidade, e nessa área meu pobre filho coxo nunca será igualado.

...

 Assim, os dois irmãos divinos, um habitando a montanha do Olimpo, o outro habitando o subterrâneo Hades, revestiram-se com a aparência de homens e se misturaram à multidão de pedestres que ia freneticamente de uma loja a outra. Os deuses admiravam-se muito de tudo o que ali viam. Hefesto, deus dos metais, não resistiu à visão de uma grande espada reluzente pendendo por trás de uma vitrine. Entrou na loja e foi examiná-la, sob o olhar atento da balconista.

- Posso mostrá-la ao senhor, se quiser – ela disse, puxando o fio de barbante que sustinha o objeto.

- Mas... – disse Hefesto. – É tão leve! Como pode?

- Sim, o plástico é muito leve – disse a vendedora. – Como se espera de toda fantasia, não? E posso lhe garantir que a tinta não sai facilmente.

Hefesto fez uma careta e foi procurar Apolo do lado de fora, ansioso para lhe contar que os mortais já não usavam o velho e bom metal e que era preciso ensiná-los a forjá-lo. Foi encontrar o deus-sol na calçada, muito interessado em um cego que tocava sanfona. Ao lado, um rapaz com roupas modestas cuidava das poucas moedinhas que conseguira em seu chapéu.

- Olhai, Hefesto – disse Apolo. - Esse pobre músico não tem reconhecimento algum por sua arte.

Hefesto não conteve uma expressão sincera.

- Sim, mas também... com essa música.

Apolo pediu o chapéu ao rapaz, colocou-o entre seus pés. Tirou do cinto a sua harpa e começou a tocar. E tocou divinamente, como era de se esperar. As pessoas se detinham e iam se aproximando, hipnotizadas por sua música; as mulheres, especialmente, atraídas também por sua beleza máscula. Ele era o próprio Sol!

Hefesto disse para si mesmo que doravante, se quisesse fazer amizade com alguma bela mortal, não deveria andar ao lado de seu irmão perfeito. Mas o próprio Apolo sentiu-se um pouco alarmado com a atitude das moças que chegavam cada vez mais perto e tentavam agarrá-lo, numa massa ruidosa de mãos estendidas. Ele fez um sinal a seu irmão para que devolvesse ao rapaz o chapéu abarrotado de notas e desapareceu num passe de mágica. Depois que a multidão se dispersou, Apolo voltou a ficar visível.

- Aqui não estamos seguros, irmão Hefesto. Vamos entrar naquela loja.

Era uma loja de instrumentos musicais. A vendedora os atendeu, gentil.

- O que os senhores tocam? – perguntou.

Apolo sorriu da pergunta.

- O que eu toco, minha jovem? Eu sou a própria Música!

Ela pareceu gostar da brincadeira.

- Não me diga! Então, quem sabe, você possa me ajudar? Faz anos que estudo piano, mas já estou perdendo as esperanças. Pelo visto, nunca vou chegar a ser uma concertista.

Hefesto meteu-se na conversa:

- Mas não pode parar de treinar, moça...

- Graciara.

- Não pare, Graciara. Sem trabalho duro, não existe gênio.

Nesse momento entrou na loja o mesmo rapaz que acompanhava o cego.

- Até que enfim os encontrei! – ele disse aos deuses. – Eu me chamo Abel. Queria agradecer pela ajuda ao meu pobre tio. O coitado precisaria tocar sanfona por um ano inteiro para ganhar essa quantia. – Ele olhou para seus bolsos cheios. - Apesar de que agora estou até com medo de ser roubado. Vocês sabem, o que não falta por aqui são ladrões.

- Isso não é problema, garoto - disse Hefesto.

E, tirando da mochila seu malho de ferreiro, em poucos minutos fez um cofre para o rapaz.

– Agora pode guardar seu dinheiro em segurança.

- Obrigado, senhor! – disse Abel. – Nunca vi uma habilidade assim. Mas qual é a senha para abrir?

- Basta você tocar na fechadura – disse Hefesto. – Ele só responde ao seu toque, de mais ninguém.

Abel contou que também amava construir aparelhos automatizados como robôs, e estava aprendendo.

- Era de um professor assim que a gente precisava!

Hefesto sorriu com modéstia e prometeu visitá-lo em breve na tal escola da comunidade. O rapaz saiu com seu cofre.

- Nada mal, hem, Apolo? Já tenho um discípulo.

Mas Apolo acabava de conduzir Graciara até o piano.

- Qual seria a música de sua preferência? – perguntou.  

- Ah! Eu amo os noturnos de Chopin.- disse ela.

- Pois então toque-os, não tenha medo.

Graciara pousou os dedos no teclado, ouviu a música em sua mente e, sem entender como acontecia, foi tocando com maestria e sentimento, como se fosse o próprio autor. Quando terminou, estava ruborizada e feliz como nunca.

- Está convencida de que somos deuses, moça? – disse Hefesto.

No corredor dos fundos, atraído pela música, surgiu o esposo de Graciara que tratava da contabilidade.

- Quem estava tocando? – ele disse.

- Eu, querido! Este senhor estava me ensinando.

Pedro se apresentou e apertou as mãos dos deuses. Tentou disfarçar seu ciúme ao notar a beleza de Apolo.

- Muito prazer. Em qual escola o senhor ensina?

- Por enquanto, em escola nenhuma – respondeu Hefesto. Mas podemos ensinar, se nos mostrar onde ficam as escolas.

Apolo sugeriu de modo sedutor:

- O amigo Pedro também deseja ser músico de sucesso?

- Ah não! – Pedro encolheu os ombros. – Meu negócio são as artes plásticas. Eu pinto quadros.

Fez um gesto para que o seguissem e mostrou-lhes alguns quadros. Apolo teve que dar um leve toque em seu irmão para que este não comentasse que a pintura era bastante amadora. 

- Ah...! – exclamou Hefesto, sem saber como continuar.

- Se quiser, amigo Pedro, posso fazer de você um artista conhecido e admirado – disse Apolo ao lojista.

A oferta era irresistível. Pedro agradeceu, perguntou o que podia dar como pagamento.

- Apenas me mostre outros amantes da pintura como você.

Pedro concordou em levar Apolo ao estúdio onde, junto com outros candidatos a artistas, pintavam ou esculpiam tendo modelos vivos.

Quando os deuses iam saindo, Graciara olhou admirada para seu próprio braço. Nunca havia reparado que seu bracelete comprado no mercadinho chinês era tão reluzente e bonito. Hefesto cochichou para Apolo: “Eu o troquei por uma joia verdadeira”.

 - Muito bem! – disse Hefesto quando estavam na rua. – Nós dois teremos nossos aprendizes. Mas que dia, por Zeus! Se eu fosse um mortal – e já me sinto um – eu diria que estou bem cansado.

- Tendes razão – disse Apolo. – Vamos subir à montanha para dormir o sono dos justos.

- Não me parece tão bom para dormir quanto um vulcão – disse Hefesto -, mas aceito. Mas não vejo nenhuma montanha por aqui.

- Aquele prédio alto vai nos servir – disse Apolo.

Transportaram-se com seus poderes para a cobertura de um edifício e estenderam-se para repousar, que os deuses também não são de ferro. A noite já ia caindo e a Lua, lá de cima, sorria-lhes ternamente.

 ...

Nos dias que se seguiram, as jornadas de ambos os deuses olímpicos foi intensa.

Hefesto reuniu-se à comunidade de garotos e garotas que se interessavam por ciência e tecnologia – palavras que ele nunca tinha ouvido antes -, levado por Abel. Quando ele os viu construindo pequenos artefatos que podiam mover-se por si mesmos, ficou cheio de um ardor divino. Começou a lhes ensinar tudo o que existe sobre a arte de construir, desde como forjar o mais puro aço até as delicadezas artesanais da ourivesaria. Os estudantes o amavam. Procuravam-no após as aulas na escola e passavam com ele o resto do dia, projetando e construindo maravilhas.

Quanto a Apolo, no dia em que chegou ao ateliê de artes, causou um rebuliço sem tamanho. Ninguém jamais havia visto modelo humano tão perfeito. Chegaram a sugerir que ele era a própria estátua do David de Michelângelo que havia cobrado vida, saindo de Florença e vindo ali para ser esculpido e retratado. Algumas pintoras quiseram examinar o braço do modelo para conferir se havia marcas do acidente real sofrido pela estátua, quando foi atingida por uma cadeira durante um protesto de rua.

- Jovens! – disse Apolo sorrindo. – Já lhes disse que não sou o David. Aliás, esse Michelângelo foi meu devoto em segredo, naqueles tempos em que a Igreja o proibia. Por isso o favoreci na inspiração dessa e de outras obras relevantes.

A partir desse dia, artistas notáveis foram surgindo naquele estúdio e noutros, inclusive Pedro, que ganhou projeção após expor numa grande galeria e teve suas pinturas multiplicadas em murais por toda a cidade. Bastava que alguém pintasse tendo o deus Apolo como modelo, ou modelasse suas formas em pedra ou barro, para que o gênio aflorasse e o artista se pusesse a criar obras cobiçadas e admiradas.

 ...

Porém... Se a missão proposta pelos deuses junto aos mortais estava tendo sucesso, também era verdade que ela estava se desenrolando em duas direções opostas.

Zeus assistia a tudo de seu trono, tendo ao lado sua filha, a deusa Palas-Atena[2], toda paramentada com elmo e armadura.

- Olhai para esses mortais insensatos e faltos de gratidão, Atena! – dizia o pai dos deuses. – Vede como esses novos artistas inspirados por Apolo já vão rivalizando uns com os outros ao invés de se unirem em seu modo de expressão. Cada um se julga genuinamente talentoso, ao passo que acusa os demais de serem impostores.

Enquanto isso, na Terra, Apolo tentava ensinar também filosofia e poesia, e acalmava os ânimos esquentados.

- Não se preocupem com fama ou fortuna! – dizia aos discípulos - Amem aquilo que fazem! Busquem o que há de melhor dentro de si. Façam de cada obra uma mensagem dos deuses para os homens. Vocês vão ver que nada neste mundo se compara a isso.

Na comunidade influenciada por Hefesto também pipocavam os problemas. À medida que os jovens foram se emancipando na arte de fabricar todo tipo de máquina e objeto artesanalmente, o declínio no comércio local chamou a atenção das indústrias, que se reuniram para discutir a situação. Só havia uma solução, concluíram, que era absorver essa nova fonte de produção. “Vamos, pois, contratar esses meninos e meninas geniais, oferecendo-lhes um modesto salário de aprendizes. Em pouco tempo, terão esquecido essas bobagens que constroem para se dedicar à carreira”.

Era essa a visão de Zeus no topo do Mundo que ele havia reordenado nas eras iniciais ao derrotar seu pai Cronos, e que agora, graças aos mortais, via em grave risco de sucumbir novamente no caos.

- Escutai, ó grande Zeus – dizia Palas-Atena – o que meu irmão Hefesto está a dizer.

- Amiguinhos – dizia Hefesto aos discípulos -, vocês vieram pedir minha opinião; e ela é de que não deviam aceitar. Eu bem sei o medo que todos têm de acabarem como o pobre cego que toca sanfona para viver de esmolas. – Ele deu uma olhadela para Abel. – Mas eu lhes digo que resistam à tentação! Dinheiro não é tudo, e vocês receberão sempre aquilo que merecem. Se pararem agora de estudar, vão ser absorvidos pelo poderoso e impiedoso mercado. Nunca mais sentirão o prazer de criar coisas apenas por serem belas, fortes e boas.

No Olimpo, vários deuses que assistiam em volta do trono bateram palmas.

 ...

Hefesto e Apolo dormiam na cobertura do edifício quando foram despertados por um forte alarido. Nas ruas viram uma multidão portando faixas, aos gritos de: “Fora os artistas novatos!” Em sentido contrário, outro grupo proclamava: “Morram os artistas decrépitos!” E um terceiro grupo alardeava: “Somos dirigidos pelos deuses”. A pancadaria acabou acontecendo. Do alto do edifício os deuses viram aqueles nobres representantes das verdades superiores que se intitulavam artistas atirarem-se pedras; alguns se atracavam num corpo-a-corpo nada artístico nem científico.  

- Pelas barbas de Netuno! – disse Hefesto. – A multidão está desgovernada. E nossos discípulos estão entre eles! Como poderão passar adiante o que lhes ensinamos, se não conseguem se entender?

- Reparai nas viaturas que chegaram com homens uniformizados. Eles jogam algum tipo de gás venenoso sobre os manifestantes. Por Zeus! Onde foi que nós nos metemos?!

- Ora, eu quase ia me esquecendo! – disse Hefesto. – Preciso ir ver meu discípulo Abel que hoje participa de um torneio de ciências importante para ele.

- E eu – disse Apolo – não pretendo perder o primeiro concerto de Graciara. Será esta noite e ela conta comigo.

Nesse momento um dos policiais apontou um megafone para o alto e anunciou:

- Desçam já do edifício, vocês foram localizados! Apolo e Hefesto, vocês estão detidos em nome da lei! Acusados de incitar a desordem e de praticar o charlatanismo! Desçam por bem, ou vamos invadir o prédio.

Os deuses se entreolharam.

- Ora – disse Hefesto - Nós é que somos os acusados?

- Assim parece – disse Apolo, respirando fundo. – Deixai-me pensar, meu dileto irmão.

Depois de arquitetarem um plano de ação, os deuses baixaram à rua disfarçados em moradores de rua, com cobertores sobre os ombros e carregando sacos de latinhas e papéis velhos. Assim eles atravessaram no meio da multidão agitada. Entre os mais belicosos, viram discípulos seus que apoiavam a ação da polícia, incitando contra os “falsos professores que se autoproclamavam deuses”.

- Prendam eles! Prendam eles!

Apolo reconheceu aquela voz: era de Pedro. Respirou fundo novamente. Bem que Afrodite o avisara sobre a incoerência e a inconsistência do coração humano.

Os deuses se separaram e foram ao encontro de seus discípulos favoritos para lhes dar força e inspiração.

Apolo pousou, invisível, ao lado de Graciara. Ao se apresentar, ela parecia iluminada por uma luz divina e tocou Chopin como nunca. O teatro estremeceu sob aplausos e “bravos!”. O êxito da nova musicista deu mais vida ao imortal Apolo.

Em outro canto da cidade, Hefesto, junto aos competidores de robótica, vibrava com a performance de cada máquina incrível desenhada e construída com o engenho daqueles meninos talentosos. Quando chegou a vez de Abel, este fez um pequeno agradecimento e dedicou seu trabalho ao velho tio cego que o havia criado. Em seguida, lançou na arena um robô ao qual tinha dado as feições do mestre Hefesto. O deus abriu a boca, espantado. Nunca antes tinha sentido nada que não fosse ímpeto, desejo ou fúria, mas essa nova emoção parecia-se mais com orgulho, gratidão e até amor. O deus abraçou seus alunos e até esqueceu-se de mancar.

...

Já era madrugada e a Lua ia bem alta no céu quando os dois deuses se reuniram junto à fonte da praça da Sé, como haviam combinado. A missão chegara ao fim, pelo menos no que lhes dizia respeito.

Apolo ergueu os braços e invocou:

-  Ó grande Zeus! As boas novas que trazemos é que, com nossa estada, muitos mortais conheceram o Bom, o Belo e o Verdadeiro das artes e do labor das mãos. Eles terão seu futuro mudado para sempre.

- Sim! – ecoou Hefesto.

- No entanto, eles são de natureza tal que conseguem até mesmo transformar um grande Bem em algo mau, até destrutivo para eles...

- Sim, isso mesmo! – ecoou Hefesto.

- Escutai, escutai, Atena! – disse Zeus, ao ouvi-los. – Apolo e Hefesto deram o melhor de suas essências para ensinar aos homens. Mas olhai a grande confusão que a sua boa intenção causou!

Pai e filha, no Olimpo, continuavam assistindo à confrontação de manifestantes e policiais noite a dentro; a prisão de vários deles e a depredação de lojas e galerias de arte.

- Bem o vejo, grande Zeus! – disse Palas-Atena - Meus irmãos foram impecáveis. Porém, se concordais comigo, de nada adianta dar um Bem a esses mortais, se lhes falta sabedoria para usá-lo.

Zeus cofiou suas longas barbas e a encarou.

- Falais com grande verdade! E já imagino que o que me vais pedir, se vos conheço bem...

- Permissão para descer à Terra, ó pai de todos os deuses! – disse Atena de olhar decidido.

Zeus deu um grande suspiro e se ajeitou no trono. Estava ficando velho e sem paciência para aqueles mortais bárbaros, mas se os seus filhos ainda tinham paixão para isso...

- Muito bem! – disse por fim. – Esta noite Apolo e Hefesto receberão as justas homenagens dos deuses do Olimpo, do Hades e do Oceano, e durante o banquete nos brindarão com seus relatos sobre a missão. E depois...

- Depois vós me deixareis ir! – disse Atena de olhar destemido.

- Sim, filha dileta, que nasceste de dentro da minha cabeça! Permito que durante algum tempo vivais junto aos humanos distribuindo fartamente a vossa Sabedoria.

Afinal de contas, – continuou Zeus para si mesmo – eles jamais se tornarão sábios o bastante para querer rivalizar com os deuses.


Fim


 



[1] Apolo: na mitologia grega, deus ligado às artes, à profecia, à cura, à música, à poesia, dentre outros atributos. Hefesto: idem, deus do fogo e da metalurgia, grande forjador e relojoeiro.

[2] Palas-Atena, ou Minerva para os romanos: deusa mitológica da sabedoria, da guerra, da civilização e da justiça, entre outros atributos.



sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

O HOMEM DO POÇO

 Conto



O HOMEM DO POÇO

 

Saindo da igreja da Senhora dos Homens Pretos, na praça Princesa Isabel, Irvia viu árvores sujas e esquecidas, petrificadas no asfalto. As árvores do centro da cidade eram como crianças longamente submetidas à violência que tivessem perdido a fala e o brilho e continuaram vivas sem alma. Ali estavam seres vivos pedindo socorro. Acaso a cidade também não lhes pertencia? Atravessou o largo do Paissandu, chegou ao vale do Anhangabaú. Nomes que remetiam a um passado de gente escravizada em espaços separados. Como se hoje em dia não fosse igual. Ela bem o sabia, embora fosse livre para ir aos domingos na igreja, quando podia passear pelo centro. Mas era como um castigo; todos os lugares por onde andava lhe jogavam na cara uma história de gente excluída. Passou entre camelôs que vendiam bugigangas. Paissandu era um chefe índio, pensou, talvez o primeiro dono da região. Os brancos lhe deram espelhinhos, machadinhas, essas coisas, para que se mudasse com a tribo, deixando a terra e todos os seus tesouros para os que chegavam. Anhangabaú: outro nome misterioso de rio onde as mulheres vinham lavar roupa e eram assediadas por soldados e outros homens desocupados. Pelo menos naquela época havia rios! Chegou ao terminal de ônibus, sempre lentos e demorados. Quando encostavam na calçada não tinham pressa de engolir a fila humana, depois iam guinchando e soltando uma fumaça preta até chegar ao bairro.

Apesar de tudo, o momento do ônibus era um sossego, quase uma folga para não pensar em nada. Ela simplesmente se deixava levar, chacoalhando entre mulheres com sacolas, estudantes e trabalhadores. Seus olhos iam postos no vidro empoeirado, vendo sem ver os carros e ruas passando. De vez em quando Irvia dava com o olhar cobiçoso de um homem encarando-a. Inquieta, baixava o seu. Em que ele pensava? Ele não podia ver o seu ‘por dentro’, era sua aparência morena que lhe causava desejo. Esse tipo de olhar era um anzol que o homem jogava e alguma coisa visguenta grudava nela. Então fixava a vista na distância, constrangida, quase com ódio do homem. Um dia tudo ia mudar. Um dia passaria por aquelas ruas num vestido de seda, uma echarpe esvoaçante e sapatos de salto e ninguém olharia seu corpo com desrespeito. Homens e mulheres lhe sorririam e abririam portas, estenderiam tapetes. Um dia.

...

- Irvia, acorda!

O patrão estava na porta do quartinho. Ia sair de viagem com a namorada e queria que ela preparasse o café.

Irvia mexeu nas panelas bocejando, ainda submersa pelo sonho da noite. A namorada do patrão gostava de panquecas...

O súbito motor de uma betoneira veio perturbar a manhã. Helen tapou os ouvidos.

- O que é isso, Lucas, pelo amor de Deus?!

- Reforma na casa vizinha – disse Lucas. – Vão fazer uma piscina nos fundos, onde só tem um velho poço e umas bananeiras.      

- Vão destruir o poço? – Irvia parecia perplexa.

Lucas sorriu.

– Esse poço é uma velha história para a Irvia.

O poço guardava a história de um cadáver que Irvia vira há uns dez anos, mas nunca esquecera. Um homem semiafogado no poço vizinho. Ela sabia apenas que se tratava de um empregado e que a família, abalada com a repercussão do acidente, mudara-se da cidade e deixara a casa abandonada. O corpo estendido no chão, entretanto, não lhe saía da memória. Moreno como ela, mas nunca saberia se bonito ou não, por causa da deformidade causada pelo tempo submerso na água fria. Ainda assim, esse corpo resgatado com um fiapo de vida falara com ela. Os olhos do afogado estavam semicerrados e de sua boca só saíam murmúrios. Mas suas roupas rasgadas, as mãos e pés ulcerados e inchados, os lábios sem cor na pele escura, diziam algo terrível que ela não decifrava. E a jovem Irvia ficou no meio do povo olhando, desejando que o homem se levantasse rindo, dizendo que tudo fora só de brincadeira. Que aquilo não podia acontecer a uma pessoa inocente.

- Que história! – disse Helen. – Então você trabalha aqui desde essa época?

- Ah! A Irvia praticamente nasceu em nossa casa. – disse Lucas. - A mãe dela foi empregada da minha avó e da minha mãe.

Irvia recolheu a louça e saiu com o buldogue pelas calçadas. Na volta, escutou um alarido de vozes vindas da construção. Aproximou um banquinho do muro dos fundos para espiar. Os operários passavam animadamente um objeto de mão em mão.

- Que é que vocês acharam no poço? – Irvia falou.

Mostraram-lhe uma pequena corrente de metal.

- Parece uma pulseira – disse um dos pedreiros.

- É antiga – disse outro. – Meio enferrujada, mas deve ser de prata.

- Eu fico com ela! – disse Irvia.

Irvia deu duas notas pelo objeto. Uma excitação a tomou ao pensar que pertencera ao homem afogado. O patrão estava de saída, ela lhe mostrou. Ele fez uma careta.

- Você é louca de ficar com isso? É coisa mal-assombrada, que o morto pode querer de volta. Você não tem medo?

Piscou para a namorada. Referia-se a uma lenda que corria na vizinhança, de que o afogado voltava ao poço nas noites de lua para buscar algo que perdera.

...

Certas horas, dias, momentos jamais passam. Ficam congelados no espaço-tempo como uma singularidade, existindo para sempre na vida de uma pessoa. Para Moacir o afogamento nunca passou, ainda que os bombeiros o tivessem resgatado e deitado numa cama à espera da ambulância. Percebia figuras embaçadas ao redor, os sons pareciam vir do interior de uma garrafa. Mas sentia-se mais lúcido do que nunca. O corpo se tornara estranhamente pesado, a luz o feria quase tanto quanto o desespero de não poder contar às pessoas o que estava vivendo. Para ele a experiência do fundo do poço não terminara, nunca mais o deixaria.

Impossível saber que horas eram. Manhã? Tarde? Noite? Tentaria perguntar se pudesse, mas de que adiantaria? O dia e a noite não faziam mais sentido, tudo era uma coisa só. Ele havia descoberto o grande mistério. Precisava revelá-lo a mais alguém, caso contrário enlouqueceria de verdade. Se houvesse alguém que pudesse compreender. Então escutou a sirene dos socorristas que vinham buscá-lo. As próprias forças do desespero o ergueram da cama. Jogou as pernas para o lado e, num impulso meio sobre-humano, meio animal, saiu cambaleando na noite e desapareceu.

...

 

O silêncio baixou sobre a rua depois que os operários se foram. Irvia tomou um banho demorado e deitou-se na cama. Tinha trazido a pulseira consigo e colocou-a no braço, pensando no homem do poço. Do rádio vinha uma melodia suave que se somava à do vento. Ela apagou a luz do abajur, mas acendeu-o quase imediatamente. A escuridão no quarto era pavorosa. E o vento derrubava coisas lá fora, coisas que ela não podia ver, na rua, no quintal, por toda a parte. Ouviu barulho de passos: tum, tum... Mas não, com certeza eram latas de lixo que o vento derrubava em sua passagem. A imaginação prega peças na gente, pensou. E a sua estava impressionada com os pensamentos da véspera, andando nas ruas do centro. Ela não tinha nada que ficar imaginando escravos acorrentados em todo o lugar, ou vendidos em leilões. Agora esses pensamentos vinham assombrá-la.

Mas os passos ficaram mais ritmados – tum, tum, tum. Vinham do outro lado do muro, não longe do seu quartinho. Irvia sentou-se na cama, olhou a pulseira. Um pensamento a fez gelar. Seria o homem do poço que vinha resgatar seu tesouro? De um pulo, foi até a janela e a escancarou. Uma lua brilhante estava saindo de trás das nuvens e iluminando o quarto com sombras. Noite de lua... como dizia a lenda. Jogou um xale em cima da camisola, pegou uma lanterna e saiu, direto para os fundos.

Do outro lado do muro a lua projetava sombras nas bananeiras e montes de entulhos. E entre essas, a sombra de um homem sentado no poço. Sem pensar muito, Irvia apoiou as mãos e saltou para o outro lado. O homem ergueu a cabeça. Seus olhos negros eram profundos e serenos. Parecia até que a estivera esperando. Ela lhe estendeu a pulseira de metal.

- Isto é seu?

Ele a tomou com um sorriso triste.

- Obrigado. Faz anos que venho procurando isto.

Irvia sentou-se na beirada do poço.

- Está vendo esse desenho gravado? – ele mostrou. - É uma cruz de malta. Meu avô a trouxe de sua terra, Malta, há muitos anos. Ele a deu para mim quando eu era criança. E de uns anos para cá eu tenho tido essa ideia fixa de voltar para lá, para a nossa verdadeira terra.

O vento soprava nos cabelos de Irvia e ela se imaginou num veleiro, partindo para a ilha de Malta, uma espécie de paraíso no meio do oceano.

 - Foi depois do acidente que você tomou essa decisão,...?

- Moacir. Prazer.

Ela estendeu a mão.

- Irvia.

- Foi sim. Como você sabe do acidente?

Ela lhe contou sua experiência de quando era apenas uma adolescente e pensara que ele fosse um cadáver saído do poço. Ele escutou com atenção.

- Na verdade, era isso mesmo. Não sei como sobrevivi. Fiquei dois dias e uma noite dentro desse buraco. Essas coisas marcam a gente. Eu voltei do inferno. Mas não pense que alguém teve culpa, foi acidente mesmo. A corda enroscou, eu subi para desatar. As tábuas estavam podres... Gritei, mas não tinha ninguém na casa. A família estava viajando. Despenquei lá dentro. Afundei alguns metros na água, subi, afundei, subi de novo... A cada vez eu tentava me agarrar nas saliências dos tijolos, mas sempre me escapava... Ah, menina, você não sabe a utilidade que têm as unhas! Só no que eu conseguia pensar era em esticar e endurecer as minhas para me prender na pedra e não me afogar...! – Ele engoliu em seco. - Até que numa dessas tentativas meu pé encontrou um pequeno buraco, coisa de nada, mas foi a minha salvação. Meus braços estavam dormentes, meio abertos, assim, na posição em que cada mão achou uma falha na parede para se agarrar. E eu respirei... Fiquei ali sem poder me mexer. Só minha cabeça virava de um lado para o outro, pensando, pensando...

Irvia escutava fascinada. Ele continuou.

- Ah, menina! Nunca queira saber as coisas que nosso cérebro é capaz de pensar quando está lutando com a morte. Você sabia que é verdade que se você olha o céu de dentro de um poço, você não enxerga o sol? É verdade, você vê as estrelas ao meio-dia. Por isso eu não tinha ideia do tempo. Só depois eu calculei que demorou aquele dia inteiro, a noite inteira e mais da metade do dia seguinte para o jardineiro chegar, perceber as tábuas quebradas, a minha ausência e chamar por socorro. Dois dias e uma noite!

- Nossa, é inacreditável. Um milagre ter escapado... Em que você pensava?

- Olha... Assisti minha vida inteira várias vezes, como se fosse um filme. – Ele se calou por instantes. – E foi aí que vi tudo com clareza. Não queria mais continuar sendo um coitado, um órfão que alguém resolveu adotar e dar a migalha de um emprego para que não morresse de fome. Tinha que haver mais alguma coisa.

Irvia sentiu o impulso de dizer: “É o que eu penso também”, mas se calou.

- Você entende isso, Irvia? A liberdade que a gente sonha e imagina nunca é exatamente igual à realidade... Mas a gente não pode parar de tentar, não é mesmo?

A lua havia se escondido e caía uma garoa fina. Ela se encolheu dentro do xale.

- Eu tenho que ir andando. Está tarde.

Ele também se levantou.

- Você volta amanhã? Ainda queria te contar algumas coisas. Acho que nós temos muito em comum.

Irvia viu de novo, nos seus olhos pretos, um veleiro singrando os mares.  E ela se viu nele com Moacir, ambos alegres, a caminho de Malta e da liberdade.

Moacir ajudou-a a passar sobre o muro e ficou olhando-a até fechar a porta e desaparecer. Apertou a pulseira na mão e sorriu para si mesmo. Era verdade que encontrar a pulseira o faria encontrar seu destino.


segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Eu Sou Cuba



 Я Kуба (Eu Sou Cuba)

Impressões do filme russo de 1964.


O filme sobre a revolução de Cuba do diretor Mikhail Kalatozov, feito em um contexto soviético e agora restaurado como um clássico, é uma obra de arte incontestável do ponto de vista da fotografia e da direção, mas a dramaturgia também é surpreendentemente eficaz. 

As cenas de introdução da história de Cuba - incrivelmente belas - já revelam que se trata de um filme engajado. Mas a primeira das quatro histórias nos faz relaxar quanto a isso. Ao ver clichês de moças puras corrompidas pela vida viciosa dos americanos, nosso emocional, já muito escolado por mais de setenta anos de cinema, decide que aquilo, afinal, não vai ser importante. Que vamos nos ater à parte estética do filme.

Mas, então, a segunda história vem como um soco no peito, a história do agricultor que investe todas as esperanças e gasta a vida numa terra que jamais será sua. Uma história muito real e contemporânea também do nosso país. 

Pronto! Já estamos sensibilizados e prontos para a terceira e quarta histórias que tratam da revolução.  Já sentimos empatia pelos estudantes de classe média de Havana, não resignados com a situação política do país e, inspirados por ideais socialistas, dispostos a fazer qualquer coisa para isso mudar. É claro que os jovens idealistas não conseguirão passar à ação efetiva,  mas eles agora estão do lado do povo. 

Quanto a nós,  espectadores, a essa altura já estamos cientes e desejosos de que apareçam, enfim, os revolucionários para concretizar a luta demandada e anunciada desde o início do filme: Fidel e os guerrilheiros de Sierra Maestra. E a luta se desenha em estilo grandioso, sem muitos detalhes nem personagens além do líder Fidel Castro; só com a dramática cena de Mariano, o povo que pegou em armas para libertar seu país. Como nas histórias anteriores, as tomadas, planos e ângulos da câmera são de tirar o fôlego e provocar uma montanha russa de emoções. A técnica do diretor, aliada às paisagens telúricas de Cuba se encarregam de produzir a máxima densidade.

Fica a impressão de termos participado de uma grande saga... Não só política ou ideológica,  mas a saga humana do século XX. A epopeia de Cuba. E com quanta beleza!