ÀS MARGENS DO RIO TAFI
(conto)
Eu vinha de excursionar pelas colinas de uma encantadora
cidadezinha aos pés da cordilheira, quando dei pela falta da minha câmera
kodak. Na mochila de lona onde a levava pendurada, só balançava o fio
solitário. Não era o valor da câmera que me fazia lamentar sua perda, mas sim
as fotos maravilhosas daquele passeio que eu jamais poderia revelar. A simpática
dona da pousada me ouviu e comentou:
- Você pode voltar lá amanhã e procurar entre as rochas, ou
então pedir a Brancaflor que a encontre.
Diante do nosso espanto, ela sentou-se conosco e contou-nos
a história de Brancaflor.
...
Conta-se que a única filha de Dom Manuel Hernandez foi
capturada por um índio quando passeava nas margens do rio Tafi. Depois de
alguns dias a moça voltou para casa. Não vinha assustada nem ferida, mas com um
ar sonhador e completamente muda. De modo que ninguém ficou sabendo o que lhe
aconteceu.
Nove meses mais tarde ela sentiu as dores do parto; Dom
Manuel e a esposa ganhavam uma neta que foi batizada de Brancaflor. E se esse
nome sugere uma beleza delicada e pura, fazia jus plenamente à criança, que era
de uma formosura angelical.
A mãe de Brancaflor morreu pouco depois, e a menina foi
criada pelos avós com desvelo. As amas e pajens trazidos para cuidá-la, ao verem
a menina pela primeira vez quedavam extasiados, como se vissem um querubim
caído das nuvens. Assim foi a infância de Brancaflor.
Os avós pensavam: mas uma criança não é como um anjo
imutável. Crianças chegam à puberdade e adquirem espinhas, manias; espicham em
partes desproporcionais; a voz desafina; a nova personalidade desafia os mais
velhos e assim por diante. Tal não foi o caso de Brancaflor. Cresceu e
tornou-se ainda mais bela ao cristalizarem-se os traços algo exóticos de sua
face e a esbeltez de seu corpo. Tinha a pele clara e os olhos ligeiramente
oblíquos, lábios carnudos e uma basta cabeleireira negra. Quanto ao olhar, era
o que lhe concedia um ar misterioso e amável de fada ou ninfa. Nenhuma
rebeldia, nenhum antagonismo. Em suma, era impossível vê-la e não a amar.
Com o tempo foi-se revelando nela um dom. No começo a avó
acreditava que era coincidência: quando lhe pedia para buscar qualquer objeto
perdido, a menina o trazia na mesma hora, fosse uma tesourinha de costura, um
pente de cabelo ou um documento que o avô não se lembrava de ter guardado. Com
a repetição do fenômeno, já ninguém mais duvidava que Branca era capaz de achar
o que quer que alguém tivesse perdido. E as pessoas do bairro a procuravam com
os mais variados pedidos de ajuda... Eram objetos perdidos ou
roubados, animais de estimação fugidos ou até pessoas desaparecidas. Os
bombeiros de outras cidades iam chamá-la quando se tratava de resgatar vítimas
sob os escombros. E ela prontamente atendia a todos. Não havia o que ou quem
ela não encontrasse.
- Como foi, Branca – perguntou-lhe a avó -, que você começou
a ver coisas que ninguém vê? Quem lhe deu esse poder?
Brancaflor estava sentada aos pés dela, no leito. Ela se
calou por um instante, depois disse:
- Ah, minha avó, quem me deu esse poder foi um índio que me
aparece em sonhos desde que eu era bem pequena, e diz ser meu pai. Mas não posso
lhe contar mais.
A avó, que estava muito doente, morreu pouco depois. Branca
nunca mais falou sobre o assunto, sob pena de perder o dom que havia recebido.
...
As águas foram correndo no rio Tafi. Certo dia em que
Brancaflor colhia lírios selvagens à sua beira, um moço desconhecido passou por
ela. Impressionado por sua beleza, ele voltou e começaram a conversar. Chamava-se
Santiago. Mudara-se há pouco para a cidade com seu filho pequeno, depois de ter
enviuvado. Branca ficou comovida com sua história e manifestou desejo de
conhecer o órfão. Foram juntos até a praça onde o pequeno Dani brincava sob a
supervisão de uma babá. Daquele dia em diante os três viam-se quase todos os
dias. O avô de Branca, que já estava bem velho e doente e temia que sua neta
ficasse sozinha, fazia gosto no casamento. Casaram-se.
Se eram felizes juntos ou não, ninguém poderia afirmar. Do
que ninguém tinha dúvida era do amor apaixonado que Brancaflor nutria por Dani,
criando-o e cuidando dele como se fora seu próprio filho. Não havia o que ela não
fizesse pelo menino, que também a adorava. Dom Manuel havia morrido e Branca
herdara a propriedade, agora administrada por Santiago. Quando Dani fez quatro
anos, Brancaflor recebeu uma carta. Um advogado de uma cidade próxima
solicitava seus préstimos para localizar uma pessoa desaparecida. Ela viajou
para lá sozinha.
O advogado levou-a até sua cliente. Era uma jovem mulher
adoentada e com o rosto devastado pelo sofrimento. Contou a Branca que havia
anos procurava por seu filho que havia sido levado pelo ex-marido às
escondidas. Desde então, nunca mais tivera notícia dos dois.
- Ele era pouco mais que um bebê! – soluçou a jovem.
Branca despediu-se dela prometendo fazer o possível para ter
a visão que ela procurava, do paradeiro da criança.
- Sim – disse a mulher, abraçando-a. – Apenas rezo para que
meu filhinho esteja vivo e eu volte a tê-lo em meus braços.
Já em casa, Brancaflor não parava de pensar na pobre mãe. Depois
de pôr Dani na cama, ela se recolheu para meditar e se concentrar. Nessas ocasiões,
invocava o índio seu pai, e lhe pedia orientação em sonho. Então ela dormiu e
sonhou. Primeiro ela viu o índio a cavalo, sob o luar, trotando perto do rio. Em
seguida teve a visão de um cobertor xadrez azul e vermelho. Despertou assustada
e correu ao quarto do filho adotivo, que dormia tranquilamente sob o cobertor
xadrez azul e vermelho.
Não pode ser verdade, pensava ela, chorando pelos cantos da
casa. Viajou novamente, desta vez levando uma fotografia de Dani. Ao vê-la, a
mulher quase teve um desmaio. Reconhecera seu bebê.
- Sim, é o meu Carlo – dizia ela, em meio ao riso-choro.
Brancaflor começava a entender tudo.
- E qual o nome do pai dele? Não é Santiago?
- O pai dele se chama Martim. Mas não duvido que tenha
arranjado um nome falso para fugir com o menino.
O advogado foi chamado e, inteirando-se das suspeitas, se
pôs a investigar Santiago secretamente. Depois que tudo ficou confirmado, não
havia como negar que Branca fora enganada pelo marido, que não era viúvo coisa
nenhuma, nem o menino, órfão. Ela voltou para casa se sentindo um trapo. Não
comia nem bebia, apenas pegava Dani-Carlo no colo e, enchendo-o de beijos,
chorava. Por fim tomou a difícil decisão. Fez sua mala, vestiu-o com seu melhor
terninho e, ao amanhecer, embarcaram num trem.
- Meu filho – disse ela – Você sempre será meu filho, e eu,
sua mãe.
- Hã-hã – disse Carlo, sem entender.
- Mesmo que a gente fique muito tempo sem se ver, entendeu?
- A gente vai ficar?
- Vai, Carlo. É preciso.
Ela tirou uma corrente de seu pescoço e pendurou-a no do
garoto.
- Vamos combinar uma coisa? – disse-lhe, já com os olhos
molhados.
- O quê?
- Toda vez que você quiser me ver, ponha esta corrente e eu
vou te aparecer em sonhos.
- Tá bem, mãe.
E Carlo continuou olhando fascinado pela janela do trem, sem
se dar conta de que era uma despedida. A jovem mãe os estava esperando na
estação. Abraçou o filho tanto, tanto, que quase o deixou sufocado. Ele ainda olhou
para trás, mas Branca já se afastava, acenando com a mão, sem deixar que ele
visse seu rosto inundado de lágrimas.
...
A dona da pousada deu um suspiro ao finalizar a história de
Branca.
- E o marido mentiroso? – perguntei. – O que aconteceu com
ele?
- Foi descoberto e preso – ela disse. – O casamento com
Brancaflor foi anulado, mas ela não voltou para a propriedade de seu avô.
Vendeu tudo e internou-se na mata, nunca mais voltou à civilização. Algumas
pessoas dizem tê-la visto vagando nas margens do rio.
- Que história!
Fiquei pensando que ainda me restava um dia como turista no
lugar e eu ia dedicá-lo, inteiro, a procurar Brancaflor nas margens do Tafi...
Se eu tivesse o seu dom...
FIM
Adorável história Márcia, como sempre, seus contos trazem, além do enredo, numa leitura suave, os sons e as cores que encantam como miragens. Parabéns, da um gosto de quero saber mais💮
ResponderExcluirObrigada, querida. Que bom que gostou!
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