A HORA E A VEZ DE JOÃO FERNANDES III
Conto
- João Fernandes, o que você tá fazendo agachado aí na horta?
- gritou Bibiana da porta da cozinha.
O marido não a ouviu. Ela tornou:
- O sol tá quente, homem! Vai te fazer mal.
João Fernandes se voltou:
- Então me traz o chapéu!
Bibiana se aproximou com o chapéu de palha.
- O que é isso que você tá fazendo?
Ele largou o martelo e as tábuas, enfiou o chapéu na cabeça e
secou o bigode com as costas da mão.
- É uma armadilha pra pegar esse gavião filho da mãe. Quero só ver ele roubar nossos pintos de novo!
Bibiana abriu a boca.
- Mas como...?
- É simples. Olha... Aqui vai ficar o pinto. O bichão vem
pra caçar ele, pousa aqui. Na hora em que puxar o barbante, derruba isso
aqui... e bum! Fica preso.
João Fernandes ficaria muito mais tempo explicando seu plano,
mas a mulher já tinha ido ver suas panelas no fogo. Se fosse dar ouvidos a
todas as invenções do marido...
Não fazia muito que eles haviam ido morar no campo. João
Fernandes conseguira se aposentar cedo por causa de um ferimento no braço,
trabalhando na metalúrgica. Aproveitou a deixa do destino para realizar um
sonho.
- Vamos nos mudar pro interior, Bibi! Nosso filho já está adulto, tem sua
família... Vamos curtir a nossa velhice.
Ele não explicou, na época, seu plano de também escrever
versos. Era outro desejo oculto, que nunca saíra da imaginação para o papel.
João Fernandes acreditava que longe da cidade, mergulhado na natureza e sob o
céu estrelado do interior, a inspiração não lhe faltaria.
Os primeiros tempos na cidadezinha foram bastante duros.
João Fernandes havia comprado uma chácara com uma casinha razoável, e logo
começou a plantar. Árvores frutíferas, milho, feijão, uma horta de verduras e
um jardim para Bibiana. De sol a sol, ele trabalhava feliz, rejuvenescido.
Sentindo que a coisa prosperava, ousou mais: construiu um galinheiro, e as aves
passaram a ser sua menina dos olhos, bem cuidadas e até mimadas. Ele gostava
sobretudo de ver Bibiana indo com a cesta ao galinheiro e trazendo os ovos
bonitos, rosados, com peninhas grudadas. Nesses momentos, compunha mentalmente
um verso assim: “Lá vai ela muito faceira/colher seus ovos na manhã...” Não
achava a rima, porém, e o verso não progredia.
Na hora de comer a omelete, sempre repetia:
- E pensar que a gente nem precisou comprar eles no mercado!
Mas o casal começou a dar pela falta de alguns franguinhos
novos. Foi o vizinho de cerca quem comentou sobre o gavião que andava rondando
os galinheiros. Foi ele também que deu a ideia de uma armadilha, que o espírito
empreendedor de João Fernandes logo resolveu pôr em prática.
No dia seguinte, saiu bem cedo para a avícola e dessa vez
voltou com um só pinto.
- Ai, João Fernandes... - estranhou a mulher. - Esse pinto tá tão raquítico. Não tinha
outro melhor?
Mas para o que se destinava, aquele estava bom demais. João
levou-o para o quintal e amarrou-o pela perna sob a arapuca recém-construída.
Entrou em casa esfregando as mãos:
- Ahá! Agora é só esperar. Quero ver se aquele safardana do
gavião vai se livrar dessa. Vou pegá-lo pelo pescoço e lhe dar o mesmo fim que
ele deu pros frangotes.
A mulher sentiu-se um pouco afetada pelos modos rudes do
marido, mas achou melhor não contrariar. Aquele, quando punha uma
ideia na cabeça...
Na primeira noite não aconteceu nada. Na segunda noite eles foram despertados por
gritos e guinchos. João Fernandes vestiu as calças, trêmulo de excitação.
Chegou à horta levando as cordas que tinha preparadas, mas soltou um murmúrio
de decepção.
- Filho da mãe...!
A arapuca fora desarmada, mas o gavião conseguiu se safar,
deixando algumas penas para trás. A mulher chegou logo depois.
- O que foi, meu Deus?!
João levantou as tábuas. O pinto continuava piando. Estava
ferido, mas se salvara do gavião.
- Coitadinho! - Bibiana levou as mãos à cabeça. - Está com a
patinha destroçada.
A mulher embrulhou a avezinha na ponta do roupão e levou-a
para dentro. Tratou da ferida na pata, que era mais grave do que parecia. Aos
poucos o franguinho foi se recuperando, já comia farelo às bicadas, bebia a
água do prato... Um belo dia saltou da cama e saiu pulando pelo quarto como um
saci. Bibiana ficou enternecida:
- Benza Deus! Não era a hora e a vez dele.
João Fernandes olhava cético:
- Só falta você querer dar um nome pra ele.
- E por que não? - disse Bibiana. - Você é João; nosso filho é João... Pois ele
vai ser o João Fernandes III. - E bateu palmas da própria traquinagem.
Os dias foram passando.
O pinto virou um frango e não saía de perto de Bibiana, pulando
daqui para lá com sua única pata. João Fernandes, o Primeiro, foi se habituando
a vê-lo comendo ao lado deles, na mesa, no pratinho que a mulher lhe fazia
especialmente.
- Credo! - disse, rindo, o filho ao visitá-los - Esse aí que
é o meu irmão?
- Não deboche dele, Júnior - disse a mãe. - Seu pai queria
matar o pobrezinho, e olhe como ele é inteligente.
Para provar o que dizia, Bibiana fingiu vestir a camisola de
dormir e apagou a luz. João Fernandes III pulou da cadeira e foi imediatamente
se encorujar ao lado da geladeira, na caixa onde dormia.
Todos riram e a luz foi novamente acesa.
- Não falei? - disse Bibiana, triunfante. - Ninguém mexe com
o meu bebê.
João Fernandes, o Primeiro, não gostou muito da predileção
da esposa pelo franguinho, mas ia se acostumando. Ao entrar em casa à tardinha,
cansado e louco pra tomar um banho, já encontrava o Terceiro empoleirado na
borda da banheira à sua espera.
- Quem diria que ia se tornar um mascote - ele pensava. E,
entrando na brincadeira que a ave esperava, fazia bastante balbúrdia para
salpicá-la com água.
Uma noite o gavião voltou. Ao que parece, já se havia
recuperado do trauma da armadilha e o desejo de caçar falava mais alto. As
galinhas estavam agora bem guardadas no galinheiro. No escuro do quintal, o arguto
gavião via apenas o brilho da tela da TV pela janela aberta. E ele não deixou
de logo distinguir, por entre as risadas do casal de idosos, um piado, que era
o jeito do Terceiro acompanhar seus donos. O alerta biológico do gavião foi
ativado, e ele passou a rondar a casa quando a TV estava ligada. Por isso, nem
Bibiana, nem João Fernandes, o Primeiro, perceberam que o galinho, que estava
crescendo muito rápido, não estava mais com eles na sala. Só escutaram mais
tarde um barulho esquisito de asas sendo arrastadas, e depois o terrível
guincho... Correram para fora a tempo de ver João Fernandes III sendo levado
pelos ares, com o pescoço quebrado e a sua única pata.
Ficaram tão consternados que não puderam entrar em casa.
Sentaram-se no banco do jardim, mudos, olhando para as estrelas, esperando... o
quê? Até que o dia amanheceu, e então Bibiana, enxugando os olhos vermelhos,
foi preparar o café.
- O que foi, com meu irmão galo? - perguntou o Segundo, no
dia de visita.
João Fernandes, o Primeiro, ergueu-se da mesa, taciturno. A
mãe respondeu, recolhendo os pratos:
- Foi nada, meu filho. É só que chegou a hora
e a vez dele.
FIM
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