RELIGIÃO E CIÊNCIA PODEM SE UNIR?
O rio do conhecimento divide-se neste momento em dois
fluxos: o fluxo de todas as informações acumuladas, chamado de 'conhecimento
científico', e o fluxo das tradições religiosas, crenças e percepções
intuitivas, normalmente englobadas como 'misticismo'. Mas nem sempre foi assim.
Até pouco tempo atrás, em nossa relativamente longa história
desde as cavernas, o conhecimento científico, o saber das coisas do mundo
estava diretamente ligado à concepção religiosa daquele determinado grupo, que
procura responder a questões do tipo “de onde viemos”, “qual o propósito da
nossa existência” e “para onde vamos depois”. Esse saber global constituía a
sua "cultura". No Livro dos Mortos, por exemplo, estão registradas
tanto as grandes questões existenciais da jornada da alma após a morte quanto
os saberes práticos ou tecnológicos dos antigos egípcios – por exemplo, como
pintar os olhos com certo pigmento para evitar os males do sol do deserto.
A cultura egípcia atingiu seu ápice com a escola hermética
de Hermes Trimegisto. Através dela foi transmitido de boca a boca aos iniciados
o conhecimento mais elevado a que a humanidade havia chegado, sintetizando os
sete princípios, ou leis de todo o cosmos. Até que teve sua decadência – que é,
inclusive, uma das leis. Dela resultou a cultura grega - se pensarmos só em
Ocidente - e sua conhecida "mitologia".
Muitos dos deuses da mitologia grega foram herdados dos
egípcios, mas adaptados no sentido da nova cultura - outro momento, outras
necessidades. Os "deuses gregos" eram muito parecidos com os seres
humanos. Cada um deles quase que personificava um aspecto da personalidade
humana, seus defeitos e virtudes. O panteão de deuses representava para os
antigos gregos uma cosmologia que permeava toda sua existência, de modo a poder
explicar, justificar todos os acontecimentos humanos como um capricho deste ou
daquele deus. Não deixava de ser, portanto, um primórdio da ciência
psicológica.
Então, como conhecimento científico da psique humana, os
mitos da antiga Grécia tiveram inestimável valor, tanto que são estudados até
hoje na psicologia como representações dos “arquétipos”. Porém, a religiosidade
mesma havia ido para o espaço. Nada de transcendente havia que não estivesse
inserido nesta ou naquela narrativa dos mitos – a “história dos deuses e
semideuses”. O surgimento do cristianismo, derivado do credo hebraico em um
Deus único, veio revolucionar esse contexto do conhecimento dominante,
atravessando as fronteiras da Palestina, onde surgiu, e atingindo todo o mundo
ocidental, até os nossos dias.
Qual a grande revolução da mensagem cristã para a época? Ela
devolveu ao homem a perspectiva do transcendente, da existência de um plano
divino além do humano e de uma resposta ao "de onde", "por quê
" e "para quê " do homem. O modo cristão de compreender o mundo
e a si mesmo trouxe um ar novo àqueles que seriamente buscavam respostas. Mas,
seguindo a lei hermética antes mencionada, também o vigor da concepção cristã tinha
que decair no mundo. E o que vimos na alta Idade Média foi o reaparecimento do
saber científico que ficara desacreditado por longo tempo – o renascer do “Renascimento”.
A tal ponto a Igreja havia isolado e discriminado todo conhecimento científico
ou "profano", que se havia chegado ao ponto de negar as evidências
lógicas em nome dos dogmas religiosos. E eis quando ressurge, cheia de novo
vigor, a ciência.
Infelizmente, os primeiros homens corajosos a afrontar os
dogmas religiosos inquestionáveis pereceram em fogueiras ou, no mínimo,
sofreram execrações em seu meio, tidos como hereges, ímpios, amigos do diabo,
etc. Foi uma lenta e persistente caminhada a que a ciência empreendeu desde que
Galileu Galilei ousou mostrar a evidência de que a Terra não era o centro do
universo, contradizendo o texto das escrituras bíblicas.
Lembremos que todo saber tradicional que se transforma em
código - como o linguístico – a fim de ser preservado para as novas gerações,
está sujeito a deturpações ao longo do tempo. Sua decodificação ou
interpretação muda com o tempo e varia de um grupo para outro. Como
consequência, aquilo que na origem foi "límpido e claro como a água"
torna-se com o passar do tempo turvo, contraditório, ilógico... E adeus, saber
revelado! O que fora aceito por um ato de fé vai agora requerer também uma
compreensão. Aconteceu com os textos bíblicos e as escrituras das grandes
tradições religiosas. Se aquele saber não é vivo, se ele está morto na prática,
cravado com palavras num livro, numa escultura, em qualquer forma de arte ou de
ritual ou cerimônia - então ele está fadado a se corromper e, finalmente,
desaparecer.
A gangorra se inverte: o conhecimento científico começa a
subir, e o religioso, a descer. As máquinas ganhando mais e mais automação e transformando
a vida diária... Domínio da eletricidade, eletrônica, navegação, informação
global... Novas formas de energia, viagens ao espaço, inteligência artificial...
E como resultado, um modo de vida não mais centrado no conhecimento, mas na
posse de bens, e uma mídia poderosa ditando a cada um o que devemos pensar,
desejar, acreditar... Mas quando, no momento de deitar a cabeça no travesseiro,
o homem sente surgir aquelas velhas, incômodas perguntas sobre o sentido da sua
vida... Silêncio, vazio, angústia; e a sensação de que, na esteira de todo esse
conhecimento tecnológico, algo se perdeu no caminho; e que não
foi algo supérfluo. Haja vista as alterações feitas na paisagem
milenar do planeta e no clima, interferindo no curso da vida vegetal, animal e
humana e colocando tudo isso em risco.
Como se chegou a esse ponto? Não faz tanto tempo assim que
tudo começou! A boa nova de Galileu, no século 16, da existência de um sistema
solar do qual nosso planeta participava ao lado de vários outros, obrigou à
expansão do nosso olhar sobre o Universo e deu ao homem uma espécie de
vertigem. Essa expansão não admitia a volta ao repouso das crenças religiosas;
era preciso entender o que é o mundo e como ele funciona. Veio então sir Isaac
Newton, no século seguinte, botar mais lenha na fogueira, com a evidência de um
universo inteiramente em movimento, vivo, ordenado pelas forças gravitacionais
dos corpos no espaço. Revelações que deram um nó na concepção de mundo, não só dos
estudiosos, mas se refletiram em cadeia até os afazeres mais corriqueiros das
pessoas simples. Então, o filósofo René Descartes traduziu o que estava
acontecendo, com sua famosa fórmula: "Penso, logo existo". Era o
início do século 18, e o início também de uma celebração cada vez maior do
conhecimento científico, experimental, onde a razão é o único árbitro. Daí em
diante, a tendência sempre maior a se extirpar toda forma de saber que não
ocorreu por observação direta ou dedução lógica.
Mas a outra balança da gangorra não está totalmente no chão.
O conhecimento religioso, da transcendência, nunca desapareceu do mundo – assim
como o símbolo da tocha nos jogos olímpicos, sua chama é passada de mão em mão
aos seres humanos dispostos a conservá-lo e passá-lo adiante. Em nossa época
ele segue invisível, porém, mostra um pequeno impulso de subida. Por mais
incrível que pareça, quem está contribuindo para que ele volte a subir na vida
coletiva é justamente o conhecimento científico, também chegado ao seu
grau mais elevado. É verdade que a ciência continua se dedicando às
performances da tecnologia, mas alguns gênios da matemática, da física e da
biologia se encerram em seus laboratórios de pesquisa, discutem com outros
"esquisitos" e trazem hipóteses mirabolantes sobre o universo, revolucionando
até mesmo a noção corrente da realidade.
Mas parece que a ciência está prestes a encontrar o seu
próprio limite. Com a física se interessando cada vez mais pelo que ocorre no
interior do átomo, e por outro, visualizando cada vez mais longe as fronteiras
do universo, esse sólido edifício construído por Descartes - do pensar humano como
única medida de todas as coisas - começa a balançar, assim como a crença de que
a ciência acabaria por resolver todos os mistérios. Pelo contrário, os
mistérios do universo não fazem senão aumentar... Quando pensaram que as
descobertas de Galileu e de Newton haviam acabado com nossa segurança bíblica,
ainda não haviam visto nada... No início do século 20 – ontem! - Albert
Einstein veio arrancar com as mãos uma de nossas mais caras concepções de
realidade, dizendo que o tempo, como tal, não existe. Pelo menos não existe
como entidade ou fenômeno universal. Ele representa apenas uma relação entre um
corpo que se movimenta no espaço, e outro corpo. Se os movimentos dos dois
corpos têm o mesmo referencial no espaço, o tempo de ambos é coincidente -
leia-se: medem-se pelo mesmo relógio.
Mas se os referenciais de observação do movimento de ambos forem
diferentes - o que pode ocorrer em espaços muito grandes ou muito pequenos-,
então os tempos não transcorrem da mesma maneira. Coisa de ficção científica? É
a nova realidade.
Mas ainda não é tudo. As pesquisas da mecânica quântica
deparam com uma frequência cada vez maior com fenômenos inexplicáveis pelo
conhecimento científico já adquirido: partículas que surgem e desaparecem do
nada, matéria e anti-matéria, matéria escura, energia escura, princípio da
incerteza... Conceitos que dão certa dor de cabeça aos leigos, mas eles estão
fascinados! Mas vamos deixá-los prosseguir em suas pesquisas. Enquanto isso, continuaremos
usando tecnologias cada vez mais sofisticadas e nos sentindo cada vez mais
ignorantes da nossa própria vida e significado... E esperando que, em algum
desses labirintos e mistérios, os cientistas finalmente sintetizem Deus, para
acreditar que há. Na verdade, não estão muito longe: em suas andanças
astronômicas, lá pelas tantas, eles tropeçaram nos buracos negros. Perplexidade
geral! E agora? Uma área bem definida do universo conhecido onde as "leis
da física " são anuladas? Onde a matéria simplesmente some, sem se
transformar em sua contraparte de energia, como Einstein havia postulado? Assim
parece! O que é afinal um buraco negro? Será uma espécie de portal para outro
universo? Ou um tipo de ralo por onde se escoa a matéria criada após o Big-Bang,
para reciclar e recriar o mundo, infinitamente?
A história da ciência mostra que uma descoberta exponencial foi
possível sempre que se ultrapassou os limites do pensamento da época para
alcançar um nível mais abrangente em que o aparente paradoxo pudesse ser
explicado. Foi assim que, para eliminar a contradição entre o princípio da
relatividade do tempo e o da gravidade universal, Einstein concebeu o tecido curvo
do espaço-tempo. E agora, para entender os buracos negros, qual limite os
cientistas terão de superar em suas concepções?
Voltando à cultura egípcia e ao hermetismo - conforme o
“Caibalion”, um pequeno livro publicado no início do século 20 para registrar
por escrito, pela primeira vez, a tradição iniciática -, todo o mundo
manifestado estava originalmente, e está, na Mente do Todo. Esse conceito de
que “tudo é Mental”, não deixa de ter certa semelhança com o conceito de Tao,
no Taoísmo, uma tradição também muito antiga do Oriente. Platão, na Grécia
antiga, deixando atrás a antiga mitologia e criando a nova filosofia, já havia
percebido isso. As coisas que vemos e conhecemos, desde as mais materiais, até
as mais sutis já existiam na Mente Infinita, e não são, portanto, “reais”, mas
“ilusórias”. Não quer dizer que as coisas não existam – para nós, que estamos
no seu mesmo plano, elas existem plenamente! Mas de um ponto de vista
“absoluto”, elas são criações da Mente Infinita Incognoscível. Platão captou
essa ideia do hermetismo em sua concepção do “mundo das ideias”.
O universo, os seres, os fenômenos, todas as coisas derivam,
em sua origem, da Mente do Todo Criador. Porém, para se manifestarem, elas
obedecem estritamente a “leis” que a Mente do Todo também criou. Portanto, para
conhecer toda e cada coisa, é preciso conhecer as leis que regem sua manifestação.
Para isso, é preciso compreender um fato fundamental: tudo no mundo segue uma
escala. Conhecer alguma coisa significa conhecer em que lugar da escala ela
está.
O mestre George I. Gurdjieff, que na primeira metade do
século 20 dedicou-se a explanar essa e outras ideias esotéricas de forma que o
homem ocidental moderno pudesse entendê-las, chamou de “Raio de Criação” ao
mundo como manifestação do Absoluto e se desdobrando em sucessivos planos cada
vez mais densos, segundo as “leis”. A tradição hermética já ensinava que a
realidade que conhecemos - e a que não conhecemos ainda - está composta de
planos hierarquicamente organizados que vão desde a matéria mais densa até a realidade
mais sutil. Do plano da chamada Matéria, com sete degraus, passa-se ao plano da
Mente e deste ao plano do Espírito, com sete níveis cada um. Não há solução de
continuidade entre o elemento mais material e o mais energético; entre o mais
denso e o mais sutil. Ou seja, não há ruptura brusca na passagem de um nível a
outro da escala, em direção à origem de tudo, o Ser Absoluto. Abolida, assim, qualquer
discriminação entre corpo ou alma, material ou espiritual, natureza ou
pensamento. A realidade passa a ser vista como um contínuo, com seus diferentes
graus de materialidade, e passa a ser possível visualizar precisamente o
sentido de uma “evolução”: a ascensão, na escala, na direção do Absoluto. Desse
ponto de vista, tudo no mundo está em evolução, tudo está cumprindo o que lhe
cabe ser.
Não seria esse o limite cognitivo que os cientistas
precisariam ultrapassar para passar ao próximo nível do conhecimento? Passar a
“ver” o mundo de forma ampla e profunda, não mais como objeto de pesquisa em
laboratório, mas como uma “grande escala” da manifestação do Divino - tenha
este o nome que se lhe quiser dar? Creio que teríamos, então, a Religião de
mãos dadas com a Ciência.