sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

A Visita dos Deuses


 A visita dos deuses

conto


A visita dos deuses

 

Apolo e Hefesto[1], vindo à Terra com a missão de salvar a raça humana do consumo desenfreado e da perda de significado, desceram da morada dos deuses diretamente na rua 25 de Março, o grande centro comercial em São Paulo. Alguns dias antes, Apolo havia procurado o grande Zeus no Olimpo, e curvando-se diante de seu trono, falou:

- Ó grande Zeus, pai de todos os deuses, que mantivestes o nosso mundo até agora em expansão e perfeito equilíbrio!

Zeus revolveu-se em seu assento.

- Dizei-me, Apolo-Sol, meu filho dileto: acaso eu não o mantenho ainda?

- Não, grande Zeus! Os mortais já não nos respeitam, nem a deus algum! A ociosidade, a luxúria e a ganância tomaram conta do fazer dos homens. O único deus a que eles prestam homenagem chama-se Dinheiro.

- Continuai!

- O pior é que consumir para eles tornou-se um vício que vai enfraquecendo seu caráter já de natureza fraco e volúvel, e eles já não acreditam nem em si próprios.

Zeus afagou sua longa barba e disse:

- Suponho que me estais a pedir permissão para descer ao mundo dos homens. Pretendeis inspirá-los com vossas artes como a música, a pintura, a poesia?

Apolo assentiu com a cabeça.

- Sim, meu pai! Farei com que os homens explorem essas e outras habilidades e descubram dentro de si uma nova paixão.  

- Pois ide! Tendes minha permissão. Mas para maior proveito, levai também vosso irmão Hefesto. Nem só de arte abstrata é feita a vida dos mortais, e nem todos dão para isso. Há de lhes fazer bem um pouco de labor manual e engenhosidade, e nessa área meu pobre filho coxo nunca será igualado.

...

 Assim, os dois irmãos divinos, um habitando a montanha do Olimpo, o outro habitando o subterrâneo Hades, revestiram-se com a aparência de homens e se misturaram à multidão de pedestres que ia freneticamente de uma loja a outra. Os deuses admiravam-se muito de tudo o que ali viam. Hefesto, deus dos metais, não resistiu à visão de uma grande espada reluzente pendendo por trás de uma vitrine. Entrou na loja e foi examiná-la, sob o olhar atento da balconista.

- Posso mostrá-la ao senhor, se quiser – ela disse, puxando o fio de barbante que sustinha o objeto.

- Mas... – disse Hefesto. – É tão leve! Como pode?

- Sim, o plástico é muito leve – disse a vendedora. – Como se espera de toda fantasia, não? E posso lhe garantir que a tinta não sai facilmente.

Hefesto fez uma careta e foi procurar Apolo do lado de fora, ansioso para lhe contar que os mortais já não usavam o velho e bom metal e que era preciso ensiná-los a forjá-lo. Foi encontrar o deus-sol na calçada, muito interessado em um cego que tocava sanfona. Ao lado, um rapaz com roupas modestas cuidava das poucas moedinhas que conseguira em seu chapéu.

- Olhai, Hefesto – disse Apolo. - Esse pobre músico não tem reconhecimento algum por sua arte.

Hefesto não conteve uma expressão sincera.

- Sim, mas também... com essa música.

Apolo pediu o chapéu ao rapaz, colocou-o entre seus pés. Tirou do cinto a sua harpa e começou a tocar. E tocou divinamente, como era de se esperar. As pessoas se detinham e iam se aproximando, hipnotizadas por sua música; as mulheres, especialmente, atraídas também por sua beleza máscula. Ele era o próprio Sol!

Hefesto disse para si mesmo que doravante, se quisesse fazer amizade com alguma bela mortal, não deveria andar ao lado de seu irmão perfeito. Mas o próprio Apolo sentiu-se um pouco alarmado com a atitude das moças que chegavam cada vez mais perto e tentavam agarrá-lo, numa massa ruidosa de mãos estendidas. Ele fez um sinal a seu irmão para que devolvesse ao rapaz o chapéu abarrotado de notas e desapareceu num passe de mágica. Depois que a multidão se dispersou, Apolo voltou a ficar visível.

- Aqui não estamos seguros, irmão Hefesto. Vamos entrar naquela loja.

Era uma loja de instrumentos musicais. A vendedora os atendeu, gentil.

- O que os senhores tocam? – perguntou.

Apolo sorriu da pergunta.

- O que eu toco, minha jovem? Eu sou a própria Música!

Ela pareceu gostar da brincadeira.

- Não me diga! Então, quem sabe, você possa me ajudar? Faz anos que estudo piano, mas já estou perdendo as esperanças. Pelo visto, nunca vou chegar a ser uma concertista.

Hefesto meteu-se na conversa:

- Mas não pode parar de treinar, moça...

- Graciara.

- Não pare, Graciara. Sem trabalho duro, não existe gênio.

Nesse momento entrou na loja o mesmo rapaz que acompanhava o cego.

- Até que enfim os encontrei! – ele disse aos deuses. – Eu me chamo Abel. Queria agradecer pela ajuda ao meu pobre tio. O coitado precisaria tocar sanfona por um ano inteiro para ganhar essa quantia. – Ele olhou para seus bolsos cheios. - Apesar de que agora estou até com medo de ser roubado. Vocês sabem, o que não falta por aqui são ladrões.

- Isso não é problema, garoto - disse Hefesto.

E, tirando da mochila seu malho de ferreiro, em poucos minutos fez um cofre para o rapaz.

– Agora pode guardar seu dinheiro em segurança.

- Obrigado, senhor! – disse Abel. – Nunca vi uma habilidade assim. Mas qual é a senha para abrir?

- Basta você tocar na fechadura – disse Hefesto. – Ele só responde ao seu toque, de mais ninguém.

Abel contou que também amava construir aparelhos automatizados como robôs, e estava aprendendo.

- Era de um professor assim que a gente precisava!

Hefesto sorriu com modéstia e prometeu visitá-lo em breve na tal escola da comunidade. O rapaz saiu com seu cofre.

- Nada mal, hem, Apolo? Já tenho um discípulo.

Mas Apolo acabava de conduzir Graciara até o piano.

- Qual seria a música de sua preferência? – perguntou.  

- Ah! Eu amo os noturnos de Chopin.- disse ela.

- Pois então toque-os, não tenha medo.

Graciara pousou os dedos no teclado, ouviu a música em sua mente e, sem entender como acontecia, foi tocando com maestria e sentimento, como se fosse o próprio autor. Quando terminou, estava ruborizada e feliz como nunca.

- Está convencida de que somos deuses, moça? – disse Hefesto.

No corredor dos fundos, atraído pela música, surgiu o esposo de Graciara que tratava da contabilidade.

- Quem estava tocando? – ele disse.

- Eu, querido! Este senhor estava me ensinando.

Pedro se apresentou e apertou as mãos dos deuses. Tentou disfarçar seu ciúme ao notar a beleza de Apolo.

- Muito prazer. Em qual escola o senhor ensina?

- Por enquanto, em escola nenhuma – respondeu Hefesto. Mas podemos ensinar, se nos mostrar onde ficam as escolas.

Apolo sugeriu de modo sedutor:

- O amigo Pedro também deseja ser músico de sucesso?

- Ah não! – Pedro encolheu os ombros. – Meu negócio são as artes plásticas. Eu pinto quadros.

Fez um gesto para que o seguissem e mostrou-lhes alguns quadros. Apolo teve que dar um leve toque em seu irmão para que este não comentasse que a pintura era bastante amadora. 

- Ah...! – exclamou Hefesto, sem saber como continuar.

- Se quiser, amigo Pedro, posso fazer de você um artista conhecido e admirado – disse Apolo ao lojista.

A oferta era irresistível. Pedro agradeceu, perguntou o que podia dar como pagamento.

- Apenas me mostre outros amantes da pintura como você.

Pedro concordou em levar Apolo ao estúdio onde, junto com outros candidatos a artistas, pintavam ou esculpiam tendo modelos vivos.

Quando os deuses iam saindo, Graciara olhou admirada para seu próprio braço. Nunca havia reparado que seu bracelete comprado no mercadinho chinês era tão reluzente e bonito. Hefesto cochichou para Apolo: “Eu o troquei por uma joia verdadeira”.

 - Muito bem! – disse Hefesto quando estavam na rua. – Nós dois teremos nossos aprendizes. Mas que dia, por Zeus! Se eu fosse um mortal – e já me sinto um – eu diria que estou bem cansado.

- Tendes razão – disse Apolo. – Vamos subir à montanha para dormir o sono dos justos.

- Não me parece tão bom para dormir quanto um vulcão – disse Hefesto -, mas aceito. Mas não vejo nenhuma montanha por aqui.

- Aquele prédio alto vai nos servir – disse Apolo.

Transportaram-se com seus poderes para a cobertura de um edifício e estenderam-se para repousar, que os deuses também não são de ferro. A noite já ia caindo e a Lua, lá de cima, sorria-lhes ternamente.

 ...

Nos dias que se seguiram, as jornadas de ambos os deuses olímpicos foi intensa.

Hefesto reuniu-se à comunidade de garotos e garotas que se interessavam por ciência e tecnologia – palavras que ele nunca tinha ouvido antes -, levado por Abel. Quando ele os viu construindo pequenos artefatos que podiam mover-se por si mesmos, ficou cheio de um ardor divino. Começou a lhes ensinar tudo o que existe sobre a arte de construir, desde como forjar o mais puro aço até as delicadezas artesanais da ourivesaria. Os estudantes o amavam. Procuravam-no após as aulas na escola e passavam com ele o resto do dia, projetando e construindo maravilhas.

Quanto a Apolo, no dia em que chegou ao ateliê de artes, causou um rebuliço sem tamanho. Ninguém jamais havia visto modelo humano tão perfeito. Chegaram a sugerir que ele era a própria estátua do David de Michelângelo que havia cobrado vida, saindo de Florença e vindo ali para ser esculpido e retratado. Algumas pintoras quiseram examinar o braço do modelo para conferir se havia marcas do acidente real sofrido pela estátua, quando foi atingida por uma cadeira durante um protesto de rua.

- Jovens! – disse Apolo sorrindo. – Já lhes disse que não sou o David. Aliás, esse Michelângelo foi meu devoto em segredo, naqueles tempos em que a Igreja o proibia. Por isso o favoreci na inspiração dessa e de outras obras relevantes.

A partir desse dia, artistas notáveis foram surgindo naquele estúdio e noutros, inclusive Pedro, que ganhou projeção após expor numa grande galeria e teve suas pinturas multiplicadas em murais por toda a cidade. Bastava que alguém pintasse tendo o deus Apolo como modelo, ou modelasse suas formas em pedra ou barro, para que o gênio aflorasse e o artista se pusesse a criar obras cobiçadas e admiradas.

 ...

Porém... Se a missão proposta pelos deuses junto aos mortais estava tendo sucesso, também era verdade que ela estava se desenrolando em duas direções opostas.

Zeus assistia a tudo de seu trono, tendo ao lado sua filha, a deusa Palas-Atena[2], toda paramentada com elmo e armadura.

- Olhai para esses mortais insensatos e faltos de gratidão, Atena! – dizia o pai dos deuses. – Vede como esses novos artistas inspirados por Apolo já vão rivalizando uns com os outros ao invés de se unirem em seu modo de expressão. Cada um se julga genuinamente talentoso, ao passo que acusa os demais de serem impostores.

Enquanto isso, na Terra, Apolo tentava ensinar também filosofia e poesia, e acalmava os ânimos esquentados.

- Não se preocupem com fama ou fortuna! – dizia aos discípulos - Amem aquilo que fazem! Busquem o que há de melhor dentro de si. Façam de cada obra uma mensagem dos deuses para os homens. Vocês vão ver que nada neste mundo se compara a isso.

Na comunidade influenciada por Hefesto também pipocavam os problemas. À medida que os jovens foram se emancipando na arte de fabricar todo tipo de máquina e objeto artesanalmente, o declínio no comércio local chamou a atenção das indústrias, que se reuniram para discutir a situação. Só havia uma solução, concluíram, que era absorver essa nova fonte de produção. “Vamos, pois, contratar esses meninos e meninas geniais, oferecendo-lhes um modesto salário de aprendizes. Em pouco tempo, terão esquecido essas bobagens que constroem para se dedicar à carreira”.

Era essa a visão de Zeus no topo do Mundo que ele havia reordenado nas eras iniciais ao derrotar seu pai Cronos, e que agora, graças aos mortais, via em grave risco de sucumbir novamente no caos.

- Escutai, ó grande Zeus – dizia Palas-Atena – o que meu irmão Hefesto está a dizer.

- Amiguinhos – dizia Hefesto aos discípulos -, vocês vieram pedir minha opinião; e ela é de que não deviam aceitar. Eu bem sei o medo que todos têm de acabarem como o pobre cego que toca sanfona para viver de esmolas. – Ele deu uma olhadela para Abel. – Mas eu lhes digo que resistam à tentação! Dinheiro não é tudo, e vocês receberão sempre aquilo que merecem. Se pararem agora de estudar, vão ser absorvidos pelo poderoso e impiedoso mercado. Nunca mais sentirão o prazer de criar coisas apenas por serem belas, fortes e boas.

No Olimpo, vários deuses que assistiam em volta do trono bateram palmas.

 ...

Hefesto e Apolo dormiam na cobertura do edifício quando foram despertados por um forte alarido. Nas ruas viram uma multidão portando faixas, aos gritos de: “Fora os artistas novatos!” Em sentido contrário, outro grupo proclamava: “Morram os artistas decrépitos!” E um terceiro grupo alardeava: “Somos dirigidos pelos deuses”. A pancadaria acabou acontecendo. Do alto do edifício os deuses viram aqueles nobres representantes das verdades superiores que se intitulavam artistas atirarem-se pedras; alguns se atracavam num corpo-a-corpo nada artístico nem científico.  

- Pelas barbas de Netuno! – disse Hefesto. – A multidão está desgovernada. E nossos discípulos estão entre eles! Como poderão passar adiante o que lhes ensinamos, se não conseguem se entender?

- Reparai nas viaturas que chegaram com homens uniformizados. Eles jogam algum tipo de gás venenoso sobre os manifestantes. Por Zeus! Onde foi que nós nos metemos?!

- Ora, eu quase ia me esquecendo! – disse Hefesto. – Preciso ir ver meu discípulo Abel que hoje participa de um torneio de ciências importante para ele.

- E eu – disse Apolo – não pretendo perder o primeiro concerto de Graciara. Será esta noite e ela conta comigo.

Nesse momento um dos policiais apontou um megafone para o alto e anunciou:

- Desçam já do edifício, vocês foram localizados! Apolo e Hefesto, vocês estão detidos em nome da lei! Acusados de incitar a desordem e de praticar o charlatanismo! Desçam por bem, ou vamos invadir o prédio.

Os deuses se entreolharam.

- Ora – disse Hefesto - Nós é que somos os acusados?

- Assim parece – disse Apolo, respirando fundo. – Deixai-me pensar, meu dileto irmão.

Depois de arquitetarem um plano de ação, os deuses baixaram à rua disfarçados em moradores de rua, com cobertores sobre os ombros e carregando sacos de latinhas e papéis velhos. Assim eles atravessaram no meio da multidão agitada. Entre os mais belicosos, viram discípulos seus que apoiavam a ação da polícia, incitando contra os “falsos professores que se autoproclamavam deuses”.

- Prendam eles! Prendam eles!

Apolo reconheceu aquela voz: era de Pedro. Respirou fundo novamente. Bem que Afrodite o avisara sobre a incoerência e a inconsistência do coração humano.

Os deuses se separaram e foram ao encontro de seus discípulos favoritos para lhes dar força e inspiração.

Apolo pousou, invisível, ao lado de Graciara. Ao se apresentar, ela parecia iluminada por uma luz divina e tocou Chopin como nunca. O teatro estremeceu sob aplausos e “bravos!”. O êxito da nova musicista deu mais vida ao imortal Apolo.

Em outro canto da cidade, Hefesto, junto aos competidores de robótica, vibrava com a performance de cada máquina incrível desenhada e construída com o engenho daqueles meninos talentosos. Quando chegou a vez de Abel, este fez um pequeno agradecimento e dedicou seu trabalho ao velho tio cego que o havia criado. Em seguida, lançou na arena um robô ao qual tinha dado as feições do mestre Hefesto. O deus abriu a boca, espantado. Nunca antes tinha sentido nada que não fosse ímpeto, desejo ou fúria, mas essa nova emoção parecia-se mais com orgulho, gratidão e até amor. O deus abraçou seus alunos e até esqueceu-se de mancar.

...

Já era madrugada e a Lua ia bem alta no céu quando os dois deuses se reuniram junto à fonte da praça da Sé, como haviam combinado. A missão chegara ao fim, pelo menos no que lhes dizia respeito.

Apolo ergueu os braços e invocou:

-  Ó grande Zeus! As boas novas que trazemos é que, com nossa estada, muitos mortais conheceram o Bom, o Belo e o Verdadeiro das artes e do labor das mãos. Eles terão seu futuro mudado para sempre.

- Sim! – ecoou Hefesto.

- No entanto, eles são de natureza tal que conseguem até mesmo transformar um grande Bem em algo mau, até destrutivo para eles...

- Sim, isso mesmo! – ecoou Hefesto.

- Escutai, escutai, Atena! – disse Zeus, ao ouvi-los. – Apolo e Hefesto deram o melhor de suas essências para ensinar aos homens. Mas olhai a grande confusão que a sua boa intenção causou!

Pai e filha, no Olimpo, continuavam assistindo à confrontação de manifestantes e policiais noite a dentro; a prisão de vários deles e a depredação de lojas e galerias de arte.

- Bem o vejo, grande Zeus! – disse Palas-Atena - Meus irmãos foram impecáveis. Porém, se concordais comigo, de nada adianta dar um Bem a esses mortais, se lhes falta sabedoria para usá-lo.

Zeus cofiou suas longas barbas e a encarou.

- Falais com grande verdade! E já imagino que o que me vais pedir, se vos conheço bem...

- Permissão para descer à Terra, ó pai de todos os deuses! – disse Atena de olhar decidido.

Zeus deu um grande suspiro e se ajeitou no trono. Estava ficando velho e sem paciência para aqueles mortais bárbaros, mas se os seus filhos ainda tinham paixão para isso...

- Muito bem! – disse por fim. – Esta noite Apolo e Hefesto receberão as justas homenagens dos deuses do Olimpo, do Hades e do Oceano, e durante o banquete nos brindarão com seus relatos sobre a missão. E depois...

- Depois vós me deixareis ir! – disse Atena de olhar destemido.

- Sim, filha dileta, que nasceste de dentro da minha cabeça! Permito que durante algum tempo vivais junto aos humanos distribuindo fartamente a vossa Sabedoria.

Afinal de contas, – continuou Zeus para si mesmo – eles jamais se tornarão sábios o bastante para querer rivalizar com os deuses.


Fim


 



[1] Apolo: na mitologia grega, deus ligado às artes, à profecia, à cura, à música, à poesia, dentre outros atributos. Hefesto: idem, deus do fogo e da metalurgia, grande forjador e relojoeiro.

[2] Palas-Atena, ou Minerva para os romanos: deusa mitológica da sabedoria, da guerra, da civilização e da justiça, entre outros atributos.



sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

O HOMEM DO POÇO

 Conto



O HOMEM DO POÇO

 

Saindo da igreja da Senhora dos Homens Pretos, na praça Princesa Isabel, Irvia viu árvores sujas e esquecidas, petrificadas no asfalto. As árvores do centro da cidade eram como crianças longamente submetidas à violência que tivessem perdido a fala e o brilho e continuaram vivas sem alma. Ali estavam seres vivos pedindo socorro. Acaso a cidade também não lhes pertencia? Atravessou o largo do Paissandu, chegou ao vale do Anhangabaú. Nomes que remetiam a um passado de gente escravizada em espaços separados. Como se hoje em dia não fosse igual. Ela bem o sabia, embora fosse livre para ir aos domingos na igreja, quando podia passear pelo centro. Mas era como um castigo; todos os lugares por onde andava lhe jogavam na cara uma história de gente excluída. Passou entre camelôs que vendiam bugigangas. Paissandu era um chefe índio, pensou, talvez o primeiro dono da região. Os brancos lhe deram espelhinhos, machadinhas, essas coisas, para que se mudasse com a tribo, deixando a terra e todos os seus tesouros para os que chegavam. Anhangabaú: outro nome misterioso de rio onde as mulheres vinham lavar roupa e eram assediadas por soldados e outros homens desocupados. Pelo menos naquela época havia rios! Chegou ao terminal de ônibus, sempre lentos e demorados. Quando encostavam na calçada não tinham pressa de engolir a fila humana, depois iam guinchando e soltando uma fumaça preta até chegar ao bairro.

Apesar de tudo, o momento do ônibus era um sossego, quase uma folga para não pensar em nada. Ela simplesmente se deixava levar, chacoalhando entre mulheres com sacolas, estudantes e trabalhadores. Seus olhos iam postos no vidro empoeirado, vendo sem ver os carros e ruas passando. De vez em quando Irvia dava com o olhar cobiçoso de um homem encarando-a. Inquieta, baixava o seu. Em que ele pensava? Ele não podia ver o seu ‘por dentro’, era sua aparência morena que lhe causava desejo. Esse tipo de olhar era um anzol que o homem jogava e alguma coisa visguenta grudava nela. Então fixava a vista na distância, constrangida, quase com ódio do homem. Um dia tudo ia mudar. Um dia passaria por aquelas ruas num vestido de seda, uma echarpe esvoaçante e sapatos de salto e ninguém olharia seu corpo com desrespeito. Homens e mulheres lhe sorririam e abririam portas, estenderiam tapetes. Um dia.

...

- Irvia, acorda!

O patrão estava na porta do quartinho. Ia sair de viagem com a namorada e queria que ela preparasse o café.

Irvia mexeu nas panelas bocejando, ainda submersa pelo sonho da noite. A namorada do patrão gostava de panquecas...

O súbito motor de uma betoneira veio perturbar a manhã. Helen tapou os ouvidos.

- O que é isso, Lucas, pelo amor de Deus?!

- Reforma na casa vizinha – disse Lucas. – Vão fazer uma piscina nos fundos, onde só tem um velho poço e umas bananeiras.      

- Vão destruir o poço? – Irvia parecia perplexa.

Lucas sorriu.

– Esse poço é uma velha história para a Irvia.

O poço guardava a história de um cadáver que Irvia vira há uns dez anos, mas nunca esquecera. Um homem semiafogado no poço vizinho. Ela sabia apenas que se tratava de um empregado e que a família, abalada com a repercussão do acidente, mudara-se da cidade e deixara a casa abandonada. O corpo estendido no chão, entretanto, não lhe saía da memória. Moreno como ela, mas nunca saberia se bonito ou não, por causa da deformidade causada pelo tempo submerso na água fria. Ainda assim, esse corpo resgatado com um fiapo de vida falara com ela. Os olhos do afogado estavam semicerrados e de sua boca só saíam murmúrios. Mas suas roupas rasgadas, as mãos e pés ulcerados e inchados, os lábios sem cor na pele escura, diziam algo terrível que ela não decifrava. E a jovem Irvia ficou no meio do povo olhando, desejando que o homem se levantasse rindo, dizendo que tudo fora só de brincadeira. Que aquilo não podia acontecer a uma pessoa inocente.

- Que história! – disse Helen. – Então você trabalha aqui desde essa época?

- Ah! A Irvia praticamente nasceu em nossa casa. – disse Lucas. - A mãe dela foi empregada da minha avó e da minha mãe.

Irvia recolheu a louça e saiu com o buldogue pelas calçadas. Na volta, escutou um alarido de vozes vindas da construção. Aproximou um banquinho do muro dos fundos para espiar. Os operários passavam animadamente um objeto de mão em mão.

- Que é que vocês acharam no poço? – Irvia falou.

Mostraram-lhe uma pequena corrente de metal.

- Parece uma pulseira – disse um dos pedreiros.

- É antiga – disse outro. – Meio enferrujada, mas deve ser de prata.

- Eu fico com ela! – disse Irvia.

Irvia deu duas notas pelo objeto. Uma excitação a tomou ao pensar que pertencera ao homem afogado. O patrão estava de saída, ela lhe mostrou. Ele fez uma careta.

- Você é louca de ficar com isso? É coisa mal-assombrada, que o morto pode querer de volta. Você não tem medo?

Piscou para a namorada. Referia-se a uma lenda que corria na vizinhança, de que o afogado voltava ao poço nas noites de lua para buscar algo que perdera.

...

Certas horas, dias, momentos jamais passam. Ficam congelados no espaço-tempo como uma singularidade, existindo para sempre na vida de uma pessoa. Para Moacir o afogamento nunca passou, ainda que os bombeiros o tivessem resgatado e deitado numa cama à espera da ambulância. Percebia figuras embaçadas ao redor, os sons pareciam vir do interior de uma garrafa. Mas sentia-se mais lúcido do que nunca. O corpo se tornara estranhamente pesado, a luz o feria quase tanto quanto o desespero de não poder contar às pessoas o que estava vivendo. Para ele a experiência do fundo do poço não terminara, nunca mais o deixaria.

Impossível saber que horas eram. Manhã? Tarde? Noite? Tentaria perguntar se pudesse, mas de que adiantaria? O dia e a noite não faziam mais sentido, tudo era uma coisa só. Ele havia descoberto o grande mistério. Precisava revelá-lo a mais alguém, caso contrário enlouqueceria de verdade. Se houvesse alguém que pudesse compreender. Então escutou a sirene dos socorristas que vinham buscá-lo. As próprias forças do desespero o ergueram da cama. Jogou as pernas para o lado e, num impulso meio sobre-humano, meio animal, saiu cambaleando na noite e desapareceu.

...

 

O silêncio baixou sobre a rua depois que os operários se foram. Irvia tomou um banho demorado e deitou-se na cama. Tinha trazido a pulseira consigo e colocou-a no braço, pensando no homem do poço. Do rádio vinha uma melodia suave que se somava à do vento. Ela apagou a luz do abajur, mas acendeu-o quase imediatamente. A escuridão no quarto era pavorosa. E o vento derrubava coisas lá fora, coisas que ela não podia ver, na rua, no quintal, por toda a parte. Ouviu barulho de passos: tum, tum... Mas não, com certeza eram latas de lixo que o vento derrubava em sua passagem. A imaginação prega peças na gente, pensou. E a sua estava impressionada com os pensamentos da véspera, andando nas ruas do centro. Ela não tinha nada que ficar imaginando escravos acorrentados em todo o lugar, ou vendidos em leilões. Agora esses pensamentos vinham assombrá-la.

Mas os passos ficaram mais ritmados – tum, tum, tum. Vinham do outro lado do muro, não longe do seu quartinho. Irvia sentou-se na cama, olhou a pulseira. Um pensamento a fez gelar. Seria o homem do poço que vinha resgatar seu tesouro? De um pulo, foi até a janela e a escancarou. Uma lua brilhante estava saindo de trás das nuvens e iluminando o quarto com sombras. Noite de lua... como dizia a lenda. Jogou um xale em cima da camisola, pegou uma lanterna e saiu, direto para os fundos.

Do outro lado do muro a lua projetava sombras nas bananeiras e montes de entulhos. E entre essas, a sombra de um homem sentado no poço. Sem pensar muito, Irvia apoiou as mãos e saltou para o outro lado. O homem ergueu a cabeça. Seus olhos negros eram profundos e serenos. Parecia até que a estivera esperando. Ela lhe estendeu a pulseira de metal.

- Isto é seu?

Ele a tomou com um sorriso triste.

- Obrigado. Faz anos que venho procurando isto.

Irvia sentou-se na beirada do poço.

- Está vendo esse desenho gravado? – ele mostrou. - É uma cruz de malta. Meu avô a trouxe de sua terra, Malta, há muitos anos. Ele a deu para mim quando eu era criança. E de uns anos para cá eu tenho tido essa ideia fixa de voltar para lá, para a nossa verdadeira terra.

O vento soprava nos cabelos de Irvia e ela se imaginou num veleiro, partindo para a ilha de Malta, uma espécie de paraíso no meio do oceano.

 - Foi depois do acidente que você tomou essa decisão,...?

- Moacir. Prazer.

Ela estendeu a mão.

- Irvia.

- Foi sim. Como você sabe do acidente?

Ela lhe contou sua experiência de quando era apenas uma adolescente e pensara que ele fosse um cadáver saído do poço. Ele escutou com atenção.

- Na verdade, era isso mesmo. Não sei como sobrevivi. Fiquei dois dias e uma noite dentro desse buraco. Essas coisas marcam a gente. Eu voltei do inferno. Mas não pense que alguém teve culpa, foi acidente mesmo. A corda enroscou, eu subi para desatar. As tábuas estavam podres... Gritei, mas não tinha ninguém na casa. A família estava viajando. Despenquei lá dentro. Afundei alguns metros na água, subi, afundei, subi de novo... A cada vez eu tentava me agarrar nas saliências dos tijolos, mas sempre me escapava... Ah, menina, você não sabe a utilidade que têm as unhas! Só no que eu conseguia pensar era em esticar e endurecer as minhas para me prender na pedra e não me afogar...! – Ele engoliu em seco. - Até que numa dessas tentativas meu pé encontrou um pequeno buraco, coisa de nada, mas foi a minha salvação. Meus braços estavam dormentes, meio abertos, assim, na posição em que cada mão achou uma falha na parede para se agarrar. E eu respirei... Fiquei ali sem poder me mexer. Só minha cabeça virava de um lado para o outro, pensando, pensando...

Irvia escutava fascinada. Ele continuou.

- Ah, menina! Nunca queira saber as coisas que nosso cérebro é capaz de pensar quando está lutando com a morte. Você sabia que é verdade que se você olha o céu de dentro de um poço, você não enxerga o sol? É verdade, você vê as estrelas ao meio-dia. Por isso eu não tinha ideia do tempo. Só depois eu calculei que demorou aquele dia inteiro, a noite inteira e mais da metade do dia seguinte para o jardineiro chegar, perceber as tábuas quebradas, a minha ausência e chamar por socorro. Dois dias e uma noite!

- Nossa, é inacreditável. Um milagre ter escapado... Em que você pensava?

- Olha... Assisti minha vida inteira várias vezes, como se fosse um filme. – Ele se calou por instantes. – E foi aí que vi tudo com clareza. Não queria mais continuar sendo um coitado, um órfão que alguém resolveu adotar e dar a migalha de um emprego para que não morresse de fome. Tinha que haver mais alguma coisa.

Irvia sentiu o impulso de dizer: “É o que eu penso também”, mas se calou.

- Você entende isso, Irvia? A liberdade que a gente sonha e imagina nunca é exatamente igual à realidade... Mas a gente não pode parar de tentar, não é mesmo?

A lua havia se escondido e caía uma garoa fina. Ela se encolheu dentro do xale.

- Eu tenho que ir andando. Está tarde.

Ele também se levantou.

- Você volta amanhã? Ainda queria te contar algumas coisas. Acho que nós temos muito em comum.

Irvia viu de novo, nos seus olhos pretos, um veleiro singrando os mares.  E ela se viu nele com Moacir, ambos alegres, a caminho de Malta e da liberdade.

Moacir ajudou-a a passar sobre o muro e ficou olhando-a até fechar a porta e desaparecer. Apertou a pulseira na mão e sorriu para si mesmo. Era verdade que encontrar a pulseira o faria encontrar seu destino.


segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Eu Sou Cuba



 Я Kуба (Eu Sou Cuba)

Impressões do filme russo de 1964.


O filme sobre a revolução de Cuba do diretor Mikhail Kalatozov, feito em um contexto soviético e agora restaurado como um clássico, é uma obra de arte incontestável do ponto de vista da fotografia e da direção, mas a dramaturgia também é surpreendentemente eficaz. 

As cenas de introdução da história de Cuba - incrivelmente belas - já revelam que se trata de um filme engajado. Mas a primeira das quatro histórias nos faz relaxar quanto a isso. Ao ver clichês de moças puras corrompidas pela vida viciosa dos americanos, nosso emocional, já muito escolado por mais de setenta anos de cinema, decide que aquilo, afinal, não vai ser importante. Que vamos nos ater à parte estética do filme.

Mas, então, a segunda história vem como um soco no peito, a história do agricultor que investe todas as esperanças e gasta a vida numa terra que jamais será sua. Uma história muito real e contemporânea também do nosso país. 

Pronto! Já estamos sensibilizados e prontos para a terceira e quarta histórias que tratam da revolução.  Já sentimos empatia pelos estudantes de classe média de Havana, não resignados com a situação política do país e, inspirados por ideais socialistas, dispostos a fazer qualquer coisa para isso mudar. É claro que os jovens idealistas não conseguirão passar à ação efetiva,  mas eles agora estão do lado do povo. 

Quanto a nós,  espectadores, a essa altura já estamos cientes e desejosos de que apareçam, enfim, os revolucionários para concretizar a luta demandada e anunciada desde o início do filme: Fidel e os guerrilheiros de Sierra Maestra. E a luta se desenha em estilo grandioso, sem muitos detalhes nem personagens além do líder Fidel Castro; só com a dramática cena de Mariano, o povo que pegou em armas para libertar seu país. Como nas histórias anteriores, as tomadas, planos e ângulos da câmera são de tirar o fôlego e provocar uma montanha russa de emoções. A técnica do diretor, aliada às paisagens telúricas de Cuba se encarregam de produzir a máxima densidade.

Fica a impressão de termos participado de uma grande saga... Não só política ou ideológica,  mas a saga humana do século XX. A epopeia de Cuba. E com quanta beleza!