sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

O HOMEM DO POÇO

 Conto



O HOMEM DO POÇO

 

Saindo da igreja da Senhora dos Homens Pretos, na praça Princesa Isabel, Irvia viu árvores sujas e esquecidas, petrificadas no asfalto. As árvores do centro da cidade eram como crianças longamente submetidas à violência que tivessem perdido a fala e o brilho e continuaram vivas sem alma. Ali estavam seres vivos pedindo socorro. Acaso a cidade também não lhes pertencia? Atravessou o largo do Paissandu, chegou ao vale do Anhangabaú. Nomes que remetiam a um passado de gente escravizada em espaços separados. Como se hoje em dia não fosse igual. Ela bem o sabia, embora fosse livre para ir aos domingos na igreja, quando podia passear pelo centro. Mas era como um castigo; todos os lugares por onde andava lhe jogavam na cara uma história de gente excluída. Passou entre camelôs que vendiam bugigangas. Paissandu era um chefe índio, pensou, talvez o primeiro dono da região. Os brancos lhe deram espelhinhos, machadinhas, essas coisas, para que se mudasse com a tribo, deixando a terra e todos os seus tesouros para os que chegavam. Anhangabaú: outro nome misterioso de rio onde as mulheres vinham lavar roupa e eram assediadas por soldados e outros homens desocupados. Pelo menos naquela época havia rios! Chegou ao terminal de ônibus, sempre lentos e demorados. Quando encostavam na calçada não tinham pressa de engolir a fila humana, depois iam guinchando e soltando uma fumaça preta até chegar ao bairro.

Apesar de tudo, o momento do ônibus era um sossego, quase uma folga para não pensar em nada. Ela simplesmente se deixava levar, chacoalhando entre mulheres com sacolas, estudantes e trabalhadores. Seus olhos iam postos no vidro empoeirado, vendo sem ver os carros e ruas passando. De vez em quando Irvia dava com o olhar cobiçoso de um homem encarando-a. Inquieta, baixava o seu. Em que ele pensava? Ele não podia ver o seu ‘por dentro’, era sua aparência morena que lhe causava desejo. Esse tipo de olhar era um anzol que o homem jogava e alguma coisa visguenta grudava nela. Então fixava a vista na distância, constrangida, quase com ódio do homem. Um dia tudo ia mudar. Um dia passaria por aquelas ruas num vestido de seda, uma echarpe esvoaçante e sapatos de salto e ninguém olharia seu corpo com desrespeito. Homens e mulheres lhe sorririam e abririam portas, estenderiam tapetes. Um dia.

...

- Irvia, acorda!

O patrão estava na porta do quartinho. Ia sair de viagem com a namorada e queria que ela preparasse o café.

Irvia mexeu nas panelas bocejando, ainda submersa pelo sonho da noite. A namorada do patrão gostava de panquecas...

O súbito motor de uma betoneira veio perturbar a manhã. Helen tapou os ouvidos.

- O que é isso, Lucas, pelo amor de Deus?!

- Reforma na casa vizinha – disse Lucas. – Vão fazer uma piscina nos fundos, onde só tem um velho poço e umas bananeiras.      

- Vão destruir o poço? – Irvia parecia perplexa.

Lucas sorriu.

– Esse poço é uma velha história para a Irvia.

O poço guardava a história de um cadáver que Irvia vira há uns dez anos, mas nunca esquecera. Um homem semiafogado no poço vizinho. Ela sabia apenas que se tratava de um empregado e que a família, abalada com a repercussão do acidente, mudara-se da cidade e deixara a casa abandonada. O corpo estendido no chão, entretanto, não lhe saía da memória. Moreno como ela, mas nunca saberia se bonito ou não, por causa da deformidade causada pelo tempo submerso na água fria. Ainda assim, esse corpo resgatado com um fiapo de vida falara com ela. Os olhos do afogado estavam semicerrados e de sua boca só saíam murmúrios. Mas suas roupas rasgadas, as mãos e pés ulcerados e inchados, os lábios sem cor na pele escura, diziam algo terrível que ela não decifrava. E a jovem Irvia ficou no meio do povo olhando, desejando que o homem se levantasse rindo, dizendo que tudo fora só de brincadeira. Que aquilo não podia acontecer a uma pessoa inocente.

- Que história! – disse Helen. – Então você trabalha aqui desde essa época?

- Ah! A Irvia praticamente nasceu em nossa casa. – disse Lucas. - A mãe dela foi empregada da minha avó e da minha mãe.

Irvia recolheu a louça e saiu com o buldogue pelas calçadas. Na volta, escutou um alarido de vozes vindas da construção. Aproximou um banquinho do muro dos fundos para espiar. Os operários passavam animadamente um objeto de mão em mão.

- Que é que vocês acharam no poço? – Irvia falou.

Mostraram-lhe uma pequena corrente de metal.

- Parece uma pulseira – disse um dos pedreiros.

- É antiga – disse outro. – Meio enferrujada, mas deve ser de prata.

- Eu fico com ela! – disse Irvia.

Irvia deu duas notas pelo objeto. Uma excitação a tomou ao pensar que pertencera ao homem afogado. O patrão estava de saída, ela lhe mostrou. Ele fez uma careta.

- Você é louca de ficar com isso? É coisa mal-assombrada, que o morto pode querer de volta. Você não tem medo?

Piscou para a namorada. Referia-se a uma lenda que corria na vizinhança, de que o afogado voltava ao poço nas noites de lua para buscar algo que perdera.

...

Certas horas, dias, momentos jamais passam. Ficam congelados no espaço-tempo como uma singularidade, existindo para sempre na vida de uma pessoa. Para Moacir o afogamento nunca passou, ainda que os bombeiros o tivessem resgatado e deitado numa cama à espera da ambulância. Percebia figuras embaçadas ao redor, os sons pareciam vir do interior de uma garrafa. Mas sentia-se mais lúcido do que nunca. O corpo se tornara estranhamente pesado, a luz o feria quase tanto quanto o desespero de não poder contar às pessoas o que estava vivendo. Para ele a experiência do fundo do poço não terminara, nunca mais o deixaria.

Impossível saber que horas eram. Manhã? Tarde? Noite? Tentaria perguntar se pudesse, mas de que adiantaria? O dia e a noite não faziam mais sentido, tudo era uma coisa só. Ele havia descoberto o grande mistério. Precisava revelá-lo a mais alguém, caso contrário enlouqueceria de verdade. Se houvesse alguém que pudesse compreender. Então escutou a sirene dos socorristas que vinham buscá-lo. As próprias forças do desespero o ergueram da cama. Jogou as pernas para o lado e, num impulso meio sobre-humano, meio animal, saiu cambaleando na noite e desapareceu.

...

 

O silêncio baixou sobre a rua depois que os operários se foram. Irvia tomou um banho demorado e deitou-se na cama. Tinha trazido a pulseira consigo e colocou-a no braço, pensando no homem do poço. Do rádio vinha uma melodia suave que se somava à do vento. Ela apagou a luz do abajur, mas acendeu-o quase imediatamente. A escuridão no quarto era pavorosa. E o vento derrubava coisas lá fora, coisas que ela não podia ver, na rua, no quintal, por toda a parte. Ouviu barulho de passos: tum, tum... Mas não, com certeza eram latas de lixo que o vento derrubava em sua passagem. A imaginação prega peças na gente, pensou. E a sua estava impressionada com os pensamentos da véspera, andando nas ruas do centro. Ela não tinha nada que ficar imaginando escravos acorrentados em todo o lugar, ou vendidos em leilões. Agora esses pensamentos vinham assombrá-la.

Mas os passos ficaram mais ritmados – tum, tum, tum. Vinham do outro lado do muro, não longe do seu quartinho. Irvia sentou-se na cama, olhou a pulseira. Um pensamento a fez gelar. Seria o homem do poço que vinha resgatar seu tesouro? De um pulo, foi até a janela e a escancarou. Uma lua brilhante estava saindo de trás das nuvens e iluminando o quarto com sombras. Noite de lua... como dizia a lenda. Jogou um xale em cima da camisola, pegou uma lanterna e saiu, direto para os fundos.

Do outro lado do muro a lua projetava sombras nas bananeiras e montes de entulhos. E entre essas, a sombra de um homem sentado no poço. Sem pensar muito, Irvia apoiou as mãos e saltou para o outro lado. O homem ergueu a cabeça. Seus olhos negros eram profundos e serenos. Parecia até que a estivera esperando. Ela lhe estendeu a pulseira de metal.

- Isto é seu?

Ele a tomou com um sorriso triste.

- Obrigado. Faz anos que venho procurando isto.

Irvia sentou-se na beirada do poço.

- Está vendo esse desenho gravado? – ele mostrou. - É uma cruz de malta. Meu avô a trouxe de sua terra, Malta, há muitos anos. Ele a deu para mim quando eu era criança. E de uns anos para cá eu tenho tido essa ideia fixa de voltar para lá, para a nossa verdadeira terra.

O vento soprava nos cabelos de Irvia e ela se imaginou num veleiro, partindo para a ilha de Malta, uma espécie de paraíso no meio do oceano.

 - Foi depois do acidente que você tomou essa decisão,...?

- Moacir. Prazer.

Ela estendeu a mão.

- Irvia.

- Foi sim. Como você sabe do acidente?

Ela lhe contou sua experiência de quando era apenas uma adolescente e pensara que ele fosse um cadáver saído do poço. Ele escutou com atenção.

- Na verdade, era isso mesmo. Não sei como sobrevivi. Fiquei dois dias e uma noite dentro desse buraco. Essas coisas marcam a gente. Eu voltei do inferno. Mas não pense que alguém teve culpa, foi acidente mesmo. A corda enroscou, eu subi para desatar. As tábuas estavam podres... Gritei, mas não tinha ninguém na casa. A família estava viajando. Despenquei lá dentro. Afundei alguns metros na água, subi, afundei, subi de novo... A cada vez eu tentava me agarrar nas saliências dos tijolos, mas sempre me escapava... Ah, menina, você não sabe a utilidade que têm as unhas! Só no que eu conseguia pensar era em esticar e endurecer as minhas para me prender na pedra e não me afogar...! – Ele engoliu em seco. - Até que numa dessas tentativas meu pé encontrou um pequeno buraco, coisa de nada, mas foi a minha salvação. Meus braços estavam dormentes, meio abertos, assim, na posição em que cada mão achou uma falha na parede para se agarrar. E eu respirei... Fiquei ali sem poder me mexer. Só minha cabeça virava de um lado para o outro, pensando, pensando...

Irvia escutava fascinada. Ele continuou.

- Ah, menina! Nunca queira saber as coisas que nosso cérebro é capaz de pensar quando está lutando com a morte. Você sabia que é verdade que se você olha o céu de dentro de um poço, você não enxerga o sol? É verdade, você vê as estrelas ao meio-dia. Por isso eu não tinha ideia do tempo. Só depois eu calculei que demorou aquele dia inteiro, a noite inteira e mais da metade do dia seguinte para o jardineiro chegar, perceber as tábuas quebradas, a minha ausência e chamar por socorro. Dois dias e uma noite!

- Nossa, é inacreditável. Um milagre ter escapado... Em que você pensava?

- Olha... Assisti minha vida inteira várias vezes, como se fosse um filme. – Ele se calou por instantes. – E foi aí que vi tudo com clareza. Não queria mais continuar sendo um coitado, um órfão que alguém resolveu adotar e dar a migalha de um emprego para que não morresse de fome. Tinha que haver mais alguma coisa.

Irvia sentiu o impulso de dizer: “É o que eu penso também”, mas se calou.

- Você entende isso, Irvia? A liberdade que a gente sonha e imagina nunca é exatamente igual à realidade... Mas a gente não pode parar de tentar, não é mesmo?

A lua havia se escondido e caía uma garoa fina. Ela se encolheu dentro do xale.

- Eu tenho que ir andando. Está tarde.

Ele também se levantou.

- Você volta amanhã? Ainda queria te contar algumas coisas. Acho que nós temos muito em comum.

Irvia viu de novo, nos seus olhos pretos, um veleiro singrando os mares.  E ela se viu nele com Moacir, ambos alegres, a caminho de Malta e da liberdade.

Moacir ajudou-a a passar sobre o muro e ficou olhando-a até fechar a porta e desaparecer. Apertou a pulseira na mão e sorriu para si mesmo. Era verdade que encontrar a pulseira o faria encontrar seu destino.


Um comentário:

  1. Que deliciosa aventura, terrível em alguns momentos, mas a busca pelo sentido da vida, o reencontro e encontro dos iguais tornam esse caminhar gostoso de fazer parte, e, de adivinhar seu final feliz! Todos temos direito a felicidade, e ela não tem endereço, nem formato, é pura emoção e sentimento. Parabéns Marcia, sua delicadeza na narrativa de detalhes do ambiente, como dos sentimentos dos personagens, e do enredo, nos da a sensação de completude. Não falta nada a dizer, está tudo ai.

    ResponderExcluir