O RISO DO PALHAÇO
A arte do clown, ou palhaço, da forma como descrita por Ramón Lemos[1],
tem algo de profundamente gurdjieffiano[2].
Aqui se trata do fenômeno do riso na sua forma mais pura, mais próxima da fonte
e remete-nos diretamente ao ensaio de Bergson[3]
sobre a faculdade de rir. A primeira distinção que se faz neste universo do
palhaço é procurar descobrir o engraçado que não está nas palavras, nos
comentários ou nas crônicas sociais. O palhaço não é um ator que vai
representar um papel, nem alguém que comenta algo engraçado. Isto a princípio
cria ao pretendente a palhaço certa dificuldade, porque nós estamos tão imersos
no universo da sátira e do comentário irônico – que nos ajudam, inclusive, a
suportar os fatos do dia a dia, as notícias que nos deixam indignados, etc. – que
nos perguntamos o que pode ser engraçado sem isto. Então recorremos ao ensaio
de Bergson: basicamente nós rimos daquilo que é destoante do que se espera.
Fica claro que o fenômeno do riso não pode, então, ser algo individual e
solitário, mas pressupõe uma cumplicidade de um dado grupo social, mesmo que
imaginário. O palhaço é aquele que faz tudo errado relativamente ao esperado
pelo grupo social. Ele comete, portanto, uma transgressão das regras, uma
desorganização da ordem vigente. Quando todos numa fila estão virados para o
guichê de atendimento, o palhaço está virado para o lado contrário, esperando
ser atendido. Mas essa transgressão não é proposital nem quer chamar a atenção.
Pelo contrário, o palhaço é ingênuo, ele não sabe que está fora da ordem geral
e não entende por que estão rindo dele. Ele simplesmente faz o que acha certo.
Nesse sentido assemelha-se a uma criança, à criança que cada um de nós ainda é.
E assim ele realiza para nós uma catarse. Olhando sua atrapalhação nós dizemos:
‘Puxa, como ele é atrapalhado! Ainda bem
que eu não sou assim!’.
Bergson mostra que o fenômeno do
riso em todas as suas variantes tem origem em uma fonte principal que seria o
descompasso entre um ser vivo, atuante e sempre adaptável ao momento presente –
pois a vida não se detém jamais - e um ser maquinal, um autômato que age de
certo modo porque ‘acha’ que assim é que está certo, segue uma programação
interna e pretende acertar. A pessoa que faz uma palhaçada, um ato que causa
graça é alguém que parou no tempo, parou na sua própria mente lá atrás enquanto
o mundo continuou a girar e a mudar. Todo o mundo está conversando sobre um
assunto num grupo de amigos e o assunto naturalmente deriva para outra coisa.
De repente alguém interpela um distraído e este, querendo ser agradável, dá uma
resposta que se destinava ao outro assunto, já não mais presente na conversa. O
grupo cai na risada. O distraído ficou grudado no seu próprio fluxo mental e
desligou-se da realidade. Neste sentido estamos em pleno ensinamento
gurdjieffiano. A pessoa que vive no seu próprio mental é alguém que está
dormindo. A primeira coisa que ele precisa fazer é acordar.
Exatamente o riso é essa sineta
que nos faz despertar da nossa tendência inata de cair no sono dos nossos
próprios conceitos e fantasias.
É claro que um palhaço, no palco
ou picadeiro, no fundo é um ator que está ali para fazer rir. Mas não é um ator
no sentido de estar representando um personagem, eis a diferença. O palhaço faz
graça mostrando o seu próprio ridículo, o seu descompasso natural com o ritmo
que a vida em sociedade exige, mas ele mesmo, encarnando o clown, não sabe do seu ridículo, é um ingênuo, alguém que quer
parecer ‘certo’. É por isso que o clown, dentro
do universo gurdjieffiano se transforma numa bela ferramenta de trabalho
interior que nos põe em contato com nosso próprio ridículo, nosso próprio
adormecimento. O palhaço nos faz sentir o quanto agimos na vida mecanicamente;
parados no nosso próprio comando mental temporário e fechados para a recepção e
a compreensão do agora. Ver esse espetáculo proporciona um riso liberador.
Algo cativante na figura cômica do
clown é o fato de não ser capaz de
acusar nem guardar ressentimento. O palhaço é profundamente ingênuo quanto às
intenções maldosas que os outros possam ter para com ele, portanto não guarda
mágoas nem impõe sua visão aos outros. Ele é também um profundo solitário;
malgrado sua imensa afeição por pessoas ou coisas, no final tem que se desapegar
e seguir sozinho, como vemos em muitos filmes do Carlitos[4].
Noutro sentido, vemos no palhaço
algo imensamente libertador por sua ignorância de regras que são absolutamente
inúteis e castradoras. O palhaço erra sem medo e sem culpa; ele de certa forma
resgata as nossas falhas, sempre tão cuidadosamente ocultadas, trazendo-as para
o plano do socialmente aceito, do reconhecidamente humano, do lúdico e do
prazeroso. Ora, se eu conhecer certo desajeitamento que me seja intrínseco, no
plano corporal, por exemplo, e deliberadamente o mostrar com o fim de causar graça,
esse traço então deixa de ser um sugador de energia, um causador de repressão
para vir à tona como uma expressão do clown.
Por isso, muitos atores diferentes podem representar o mesmo personagem, mas o clown só pode representar a si mesmo, o
seu próprio palhaço, que ele descobre e revela.
E eis-nos de volta ao universo
dos ensinamentos de Gurdjieff no que tange ao autoconhecimento de nossos
próprios gestos, reações, impressões que causamos, emoções, etc. Como o clown, precisamos aprender a nos ‘desconstruir’,
ou seja, nos livrar da rigidez corporal adquirida durante toda a vida como de
uma armadura de gesso e aprender a rir de nós mesmos e de nossas próprias
falhas. Porque ser clown é ser um espectador
do próprio corpo, emoções e formas mentais; é estar diante de sua essência e
sua personalidade; é comunicar-se com outros seres humanos com o que se tem de
mais humano: o riso, esta grande ferramenta de autoconhecimento.
Marcia Chagas Kondratiuk
27/04/2014
[1]
Ramón Lemos é criador da Oficina do Riso em São Paulo, ator e diretor.
[2]
George I. Gurdjieff (1864-1949) nasceu na Geórgia e morreu nos Estados Unidos.
Escreveu vários livros, sendo um dos maiores mestres de ciência interior que o
Ocidente conheceu.
[3]
Hénri Bergson, ‘Ensaio sobre o Riso’.
[4]
Charles Chaplin representava sempre o Carlitos em seus filmes, a maior
referência de palhaço até hoje.