domingo, 27 de abril de 2014

A ARTE DO CLOWN E O ENSINAMENTO DE GURDJIEFF


O RISO DO PALHAÇO

 
A arte do clown, ou palhaço, da forma como descrita por Ramón Lemos[1], tem algo de profundamente gurdjieffiano[2]. Aqui se trata do fenômeno do riso na sua forma mais pura, mais próxima da fonte e remete-nos diretamente ao ensaio de Bergson[3] sobre a faculdade de rir. A primeira distinção que se faz neste universo do palhaço é procurar descobrir o engraçado que não está nas palavras, nos comentários ou nas crônicas sociais. O palhaço não é um ator que vai representar um papel, nem alguém que comenta algo engraçado. Isto a princípio cria ao pretendente a palhaço certa dificuldade, porque nós estamos tão imersos no universo da sátira e do comentário irônico – que nos ajudam, inclusive, a suportar os fatos do dia a dia, as notícias que nos deixam indignados, etc. – que nos perguntamos o que pode ser engraçado sem isto. Então recorremos ao ensaio de Bergson: basicamente nós rimos daquilo que é destoante do que se espera. Fica claro que o fenômeno do riso não pode, então, ser algo individual e solitário, mas pressupõe uma cumplicidade de um dado grupo social, mesmo que imaginário. O palhaço é aquele que faz tudo errado relativamente ao esperado pelo grupo social. Ele comete, portanto, uma transgressão das regras, uma desorganização da ordem vigente. Quando todos numa fila estão virados para o guichê de atendimento, o palhaço está virado para o lado contrário, esperando ser atendido. Mas essa transgressão não é proposital nem quer chamar a atenção. Pelo contrário, o palhaço é ingênuo, ele não sabe que está fora da ordem geral e não entende por que estão rindo dele. Ele simplesmente faz o que acha certo. Nesse sentido assemelha-se a uma criança, à criança que cada um de nós ainda é. E assim ele realiza para nós uma catarse. Olhando sua atrapalhação nós dizemos: ‘Puxa, como ele é atrapalhado! Ainda bem que eu não sou assim!’.

Bergson mostra que o fenômeno do riso em todas as suas variantes tem origem em uma fonte principal que seria o descompasso entre um ser vivo, atuante e sempre adaptável ao momento presente – pois a vida não se detém jamais - e um ser maquinal, um autômato que age de certo modo porque ‘acha’ que assim é que está certo, segue uma programação interna e pretende acertar. A pessoa que faz uma palhaçada, um ato que causa graça é alguém que parou no tempo, parou na sua própria mente lá atrás enquanto o mundo continuou a girar e a mudar. Todo o mundo está conversando sobre um assunto num grupo de amigos e o assunto naturalmente deriva para outra coisa. De repente alguém interpela um distraído e este, querendo ser agradável, dá uma resposta que se destinava ao outro assunto, já não mais presente na conversa. O grupo cai na risada. O distraído ficou grudado no seu próprio fluxo mental e desligou-se da realidade. Neste sentido estamos em pleno ensinamento gurdjieffiano. A pessoa que vive no seu próprio mental é alguém que está dormindo. A primeira coisa que ele precisa fazer é acordar.

Exatamente o riso é essa sineta que nos faz despertar da nossa tendência inata de cair no sono dos nossos próprios conceitos e fantasias.

É claro que um palhaço, no palco ou picadeiro, no fundo é um ator que está ali para fazer rir. Mas não é um ator no sentido de estar representando um personagem, eis a diferença. O palhaço faz graça mostrando o seu próprio ridículo, o seu descompasso natural com o ritmo que a vida em sociedade exige, mas ele mesmo, encarnando o clown, não sabe do seu ridículo, é um ingênuo, alguém que quer parecer ‘certo’. É por isso que o clown, dentro do universo gurdjieffiano se transforma numa bela ferramenta de trabalho interior que nos põe em contato com nosso próprio ridículo, nosso próprio adormecimento. O palhaço nos faz sentir o quanto agimos na vida mecanicamente; parados no nosso próprio comando mental temporário e fechados para a recepção e a compreensão do agora. Ver esse espetáculo proporciona um riso liberador.

Algo cativante na figura cômica do clown é o fato de não ser capaz de acusar nem guardar ressentimento. O palhaço é profundamente ingênuo quanto às intenções maldosas que os outros possam ter para com ele, portanto não guarda mágoas nem impõe sua visão aos outros. Ele é também um profundo solitário; malgrado sua imensa afeição por pessoas ou coisas, no final tem que se desapegar e seguir sozinho, como vemos em muitos filmes do Carlitos[4].

Noutro sentido, vemos no palhaço algo imensamente libertador por sua ignorância de regras que são absolutamente inúteis e castradoras. O palhaço erra sem medo e sem culpa; ele de certa forma resgata as nossas falhas, sempre tão cuidadosamente ocultadas, trazendo-as para o plano do socialmente aceito, do reconhecidamente humano, do lúdico e do prazeroso. Ora, se eu conhecer certo desajeitamento que me seja intrínseco, no plano corporal, por exemplo, e deliberadamente o mostrar com o fim de causar graça, esse traço então deixa de ser um sugador de energia, um causador de repressão para vir à tona como uma expressão do clown. Por isso, muitos atores diferentes podem representar o mesmo personagem, mas o clown só pode representar a si mesmo, o seu próprio palhaço, que ele descobre e revela.

E eis-nos de volta ao universo dos ensinamentos de Gurdjieff no que tange ao autoconhecimento de nossos próprios gestos, reações, impressões que causamos, emoções, etc. Como o clown, precisamos aprender a nos ‘desconstruir’, ou seja, nos livrar da rigidez corporal adquirida durante toda a vida como de uma armadura de gesso e aprender a rir de nós mesmos e de nossas próprias falhas. Porque ser clown é ser um espectador do próprio corpo, emoções e formas mentais; é estar diante de sua essência e sua personalidade; é comunicar-se com outros seres humanos com o que se tem de mais humano: o riso, esta grande ferramenta de autoconhecimento.

 

Marcia Chagas Kondratiuk

27/04/2014

 



[1] Ramón Lemos é criador da Oficina do Riso em São Paulo, ator e diretor.
[2] George I. Gurdjieff (1864-1949) nasceu na Geórgia e morreu nos Estados Unidos. Escreveu vários livros, sendo um dos maiores mestres de ciência interior que o Ocidente conheceu.
[3] Hénri Bergson, ‘Ensaio sobre o Riso’.
[4] Charles Chaplin representava sempre o Carlitos em seus filmes, a maior referência de palhaço até hoje.