segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

PASTORAL AMERICANA - o livro


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PASTORAL AMERICANA – o livro

Comentários ao romance de Philip Roth[1]

 

Eu tenho lido bastante. Mas não me lembro de haver lido nada produzido no último século que se iguale a este romance extraordinário, que também virou filme[2]. Intrigante, original e profundo do começo ao fim, ele me fez sentir diante de uma nova e radical forma de escrever ficção, sem entretanto abdicar dos aspectos que fazem do gênero romance o suprassumo da literatura. Um verdadeiro ponto de inflexão na história do romance, no meu ponto de vista, assim como Marcel Proust e Miguel de Cervantes o foram em suas épocas.

O que surpreende logo na primeira curva do livro – porque ele começa, por assim dizer, numa reta bem suave – é a mudança do narrador. Fomos levados até aqui por um narrador em primeira pessoa que é “um escritor que se lembra”. De que ele se lembra? De sua infância passada num bairro judeu de Nova York, na primeira metade do século. Mais precisamente, lembra-se de um colega: um garoto perfeito, ídolo do esporte local, do qual ele nunca conseguiu se aproximar muito, mas que o marcou profundamente como um modelo, uma inspiração. Note-se que o “Sueco”, como era conhecido o ídolo, ainda não é um personagem de seus escritos, apenas alguém de sua memória, que o narrador relembra.

A partir de certo momento da trama, o escritor-narrador é levado a escrever sobre o Sueco, e então o romance se transforma. O colega de infância que ele via de longe, com sua aura de sucesso e perfeição, estava morto. Ora, os ídolos também morrem. Mas as razões que teriam convertido a vida do Sueco num verdadeiro inferno, levando-o à morte, segundo o relato do irmão, eram tão absurdas para um ser daquela estatura moral, física e social, segundo seu ponto de vista, que ele resolve reconstituir aquela vida, aquela pessoa, aquela história; ou seja, fazer do Sueco o protagonista de seu livro. 

Aqui começa o romance da construção de um romance.

Percebemos que a tarefa de Zuckerman, o personagem escritor, é difícil, pois trata-se de escrever sobre uma pessoa real e as pessoas são intangíveis em sua essência, sobretudo o Sueco, que fez questão de apresentar ao mundo sempre uma máscara perfeita. Mas ele está bem ciente do fato. Sabe que, por mais que se esforce em buscar a verdade por trás da persona, seu “Sueco” será um personagem. Impossível a fidelidade absoluta. Além disso, para o nível do ser que ele pretende atingir, não pode se fiar na palavra de ninguém que o tenha conhecido, por mais sincero que o depoente deseje ser. Tudo deverá sair de sua própria dedução e sentimento. O narrador nos conta que durante os meses seguintes fará uma imersão tão grande no modo de ser do “Sueco” e nas coisas que ele viveu, que será como ver o mundo com seus olhos; tornar-se ele próprio. Empenha-se em visitar lugares em que o protagonista viveu e por onde passou, lugares que doravante a sua imaginação irá preencher com a presença do “Sueco”.

Dá-se, então, o ponto de virada na construção do romance. Em dado momento, o Sueco começa a falar em primeira pessoa – e ele passa a ser o narrador principal de sua própria vida. Apesar disso, o primeiro narrador (onisciente) continua se intrometendo aqui e ali, dizendo o que pensa da situação e nos fazendo lembrar que, embora agora em segundo plano, é "ele" quem está escrevendo a história... Mas o Sueco reassume a palavra em seguida, não perdendo o fio. Assim, as intromissões do narrador-escritor prosseguem mimetizadas na paisagem do romance sem quebrar o ritmo da narrativa, mas, ao contrário, aumentando ainda mais a temperatura emocional.

É claro que a história do Sueco, propriamente dita, é incrível – se assim não fosse, não teria muita importância a forma original de narrar. É a saga de uma consciência pura, alegre, satisfeita consigo mesma e com o mundo em que está inserida e dotada de um profundo senso de gratidão e dever, através de um mundo que se corrompe cada vez mais, fazendo sua sobrevivência naqueles moldes parecer incongruente, inepta e até mesmo louca. O protagonista nos aparece tão deslocado, desde a eclosão de seu conflito interior, quanto um Dom Quixote do século XX, em um mundo capitalista que perdeu todos os seus valores.

Com uma configuração como essa, os fatos da vida que acontecem ao Sueco assumem uma qualidade trágica. Sua história é uma tragédia dos nossos tempos, na qual o herói, sem saber por quê, é punido pelos deuses com um sofrimento atroz... Ele é atingido pelo destino "naquilo que lhe é mais caro". A pessoa a quem mais ama no mundo – sua filha - se mostra sua pior inimiga – dele, de si mesma e de todas as coisas que têm ou tiveram valor, tais como sua família, casa, tradições, seu trabalho e papel no mundo, sua pátria (a América da liberdade e da prosperidade) e assim por diante. O mundo do Sueco é implodido de forma invisível aos olhos dos outros, e ele colapsa como um deus atingido em seu pedestal.

O escritor se propõe a desvendar essa queda do protagonista. E nesse processo vai nos mostrando as entranhas da sociedade norte-americana do século XX e os conflitos das gerações. Muito já se tem falado em relação aos temas políticos e éticos abordados no romance – a questão religiosa, a questão racial, os protestos contra as guerras, a rebeldia que os jovens começam a mostrar a partir da década de 60, os políticos corruptos, a mudança na atuação das empresas, os males da televisão e muitos outros. Esse panorama é visto a partir de seus elementos menores, dentro da família, à medida que as pessoas vão sendo afetadas pelas mudanças em suas próprias vidas. Ele enriquece a "Pastoral" e revela a ironia de seu título, uma ironia amarga e melancólica. Não deixa de ser uma evocação de um tempo em que “as coisas eram melhores” – principalmente na fala do pai do Sueco, uma personalidade dominadora que se vê perplexo diante da decadência de valores que tinham sido tão fundamentais para o estabelecimento dos imigrantes no passado.

Mas, apesar de sua importância, o fulcro do romance não é o panorama social nem o questionamento ético. O que faz o livro ser universal é o tema da dor e da injustiça. “Por que acontecem ao Sueco aquelas coisas?” “Em seu lugar, o que nós faríamos?” É o mesmo absurdo das desgraças que atingiram o Jó da Bíblia, a pessoa que menos as merecia. Como dissemos, essa é uma história trágica. Por sua característica de herói no sentido mitológico, o Sueco tenta até as raias do impossível entender o que aconteceu com a filha; faz tudo para conciliar o inconciliável e tentar corrigir em si mesmo os erros inadmissíveis (que ele não vê que estão fora dele), para que a vida volte a seus eixos. Não consegue, evidentemente. E esta será a causa de sua morte final. Não o câncer, não a idade, mas a impossibilidade de ser Si mesmo.

E o narrador-escritor (*) estava ciente do que aconteceria desde o princípio? O sentimento de empatia e o anseio de compreensão despertados nele desde que ouviu o relato do irmão do Sueco o conduziram enquanto escrevia a saga. E o final da história do Sueco só poderia ser o concebido desde o início, assim como na tragédia o desfecho trágico está delineado desde as primeiras ações do herói. 

(*) Não confundir o personagem escritor com o autor do romance. 


NOTAS

[1] American Pastoral, de Philip Roth, vencedor do prêmio Pulitzer, publicado em 1997

[2] Pastoral Americana, filme de 2016, roteirizado por John Romano e dirigido por Ewan McGregor

[3] Pastoral-gênero de arte (Wikipedia) – abordagem adotada nas artes e na literatura, caracterizada pelo tratamento idealizado do estilo de vida dos pastores, retratados como pessoas simples que cuidam do gado em meio a paisagens bucólicas, em conexão com a natureza, de acordo com as estações e as mudanças na disponibilidade de água e de pasto. Principalmente direcionadas ao público urbano, as obras pastorais apresentam as sociedades de pastores como livres da complexidade e da corrupção da vida nas cidades.

 

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Contos recentes: Às Margens do Rio Tafi; A Visita dos Deuses; O Homem do Poço; A Última Lembrança 




 

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

ÀS MARGENS DO RIO TAFI

 


ÀS MARGENS DO RIO TAFI

(conto)

 

Eu vinha de excursionar pelas colinas de uma encantadora cidadezinha aos pés da cordilheira, quando dei pela falta da minha câmera kodak. Na mochila de lona onde a levava pendurada, só balançava o fio solitário. Não era o valor da câmera que me fazia lamentar sua perda, mas sim as fotos maravilhosas daquele passeio que eu jamais poderia revelar. A simpática dona da pousada me ouviu e comentou:

- Você pode voltar lá amanhã e procurar entre as rochas, ou então pedir a Brancaflor que a encontre.

Diante do nosso espanto, ela sentou-se conosco e contou-nos a história de Brancaflor.

...

 

Conta-se que a única filha de Dom Manuel Hernandez foi capturada por um índio quando passeava nas margens do rio Tafi. Depois de alguns dias a moça voltou para casa. Não vinha assustada nem ferida, mas com um ar sonhador e completamente muda. De modo que ninguém ficou sabendo o que lhe aconteceu.

Nove meses mais tarde ela sentiu as dores do parto; Dom Manuel e a esposa ganhavam uma neta que foi batizada de Brancaflor. E se esse nome sugere uma beleza delicada e pura, fazia jus plenamente à criança, que era de uma formosura angelical.

A mãe de Brancaflor morreu pouco depois, e a menina foi criada pelos avós com desvelo. As amas e pajens trazidos para cuidá-la, ao verem a menina pela primeira vez quedavam extasiados, como se vissem um querubim caído das nuvens. Assim foi a infância de Brancaflor.

Os avós pensavam: mas uma criança não é como um anjo imutável. Crianças chegam à puberdade e adquirem espinhas, manias; espicham em partes desproporcionais; a voz desafina; a nova personalidade desafia os mais velhos e assim por diante. Tal não foi o caso de Brancaflor. Cresceu e tornou-se ainda mais bela ao cristalizarem-se os traços algo exóticos de sua face e a esbeltez de seu corpo. Tinha a pele clara e os olhos ligeiramente oblíquos, lábios carnudos e uma basta cabeleireira negra. Quanto ao olhar, era o que lhe concedia um ar misterioso e amável de fada ou ninfa. Nenhuma rebeldia, nenhum antagonismo. Em suma, era impossível vê-la e não a amar.

Com o tempo foi-se revelando nela um dom. No começo a avó acreditava que era coincidência: quando lhe pedia para buscar qualquer objeto perdido, a menina o trazia na mesma hora, fosse uma tesourinha de costura, um pente de cabelo ou um documento que o avô não se lembrava de ter guardado. Com a repetição do fenômeno, já ninguém mais duvidava que Branca era capaz de achar o que quer que alguém tivesse perdido. E as pessoas do bairro a procuravam com os mais variados pedidos de ajuda... Eram objetos perdidos ou roubados, animais de estimação fugidos ou até pessoas desaparecidas. Os bombeiros de outras cidades iam chamá-la quando se tratava de resgatar vítimas sob os escombros. E ela prontamente atendia a todos. Não havia o que ou quem ela não encontrasse.

- Como foi, Branca – perguntou-lhe a avó -, que você começou a ver coisas que ninguém vê? Quem lhe deu esse poder?

Brancaflor estava sentada aos pés dela, no leito. Ela se calou por um instante, depois disse:

- Ah, minha avó, quem me deu esse poder foi um índio que me aparece em sonhos desde que eu era bem pequena, e diz ser meu pai. Mas não posso lhe contar mais.

A avó, que estava muito doente, morreu pouco depois. Branca nunca mais falou sobre o assunto, sob pena de perder o dom que havia recebido.

...

As águas foram correndo no rio Tafi. Certo dia em que Brancaflor colhia lírios selvagens à sua beira, um moço desconhecido passou por ela. Impressionado por sua beleza, ele voltou e começaram a conversar. Chamava-se Santiago. Mudara-se há pouco para a cidade com seu filho pequeno, depois de ter enviuvado. Branca ficou comovida com sua história e manifestou desejo de conhecer o órfão. Foram juntos até a praça onde o pequeno Dani brincava sob a supervisão de uma babá. Daquele dia em diante os três viam-se quase todos os dias. O avô de Branca, que já estava bem velho e doente e temia que sua neta ficasse sozinha, fazia gosto no casamento. Casaram-se.

Se eram felizes juntos ou não, ninguém poderia afirmar. Do que ninguém tinha dúvida era do amor apaixonado que Brancaflor nutria por Dani, criando-o e cuidando dele como se fora seu próprio filho. Não havia o que ela não fizesse pelo menino, que também a adorava. Dom Manuel havia morrido e Branca herdara a propriedade, agora administrada por Santiago. Quando Dani fez quatro anos, Brancaflor recebeu uma carta. Um advogado de uma cidade próxima solicitava seus préstimos para localizar uma pessoa desaparecida. Ela viajou para lá sozinha.

O advogado levou-a até sua cliente. Era uma jovem mulher adoentada e com o rosto devastado pelo sofrimento. Contou a Branca que havia anos procurava por seu filho que havia sido levado pelo ex-marido às escondidas. Desde então, nunca mais tivera notícia dos dois.

- Ele era pouco mais que um bebê! – soluçou a jovem.

Branca despediu-se dela prometendo fazer o possível para ter a visão que ela procurava, do paradeiro da criança.

- Sim – disse a mulher, abraçando-a. – Apenas rezo para que meu filhinho esteja vivo e eu volte a tê-lo em meus braços.

Já em casa, Brancaflor não parava de pensar na pobre mãe. Depois de pôr Dani na cama, ela se recolheu para meditar e se concentrar. Nessas ocasiões, invocava o índio seu pai, e lhe pedia orientação em sonho. Então ela dormiu e sonhou. Primeiro ela viu o índio a cavalo, sob o luar, trotando perto do rio. Em seguida teve a visão de um cobertor xadrez azul e vermelho. Despertou assustada e correu ao quarto do filho adotivo, que dormia tranquilamente sob o cobertor xadrez azul e vermelho.

Não pode ser verdade, pensava ela, chorando pelos cantos da casa. Viajou novamente, desta vez levando uma fotografia de Dani. Ao vê-la, a mulher quase teve um desmaio. Reconhecera seu bebê.

- Sim, é o meu Carlo – dizia ela, em meio ao riso-choro.

Brancaflor começava a entender tudo.

- E qual o nome do pai dele? Não é Santiago?

- O pai dele se chama Martim. Mas não duvido que tenha arranjado um nome falso para fugir com o menino.

O advogado foi chamado e, inteirando-se das suspeitas, se pôs a investigar Santiago secretamente. Depois que tudo ficou confirmado, não havia como negar que Branca fora enganada pelo marido, que não era viúvo coisa nenhuma, nem o menino, órfão. Ela voltou para casa se sentindo um trapo. Não comia nem bebia, apenas pegava Dani-Carlo no colo e, enchendo-o de beijos, chorava. Por fim tomou a difícil decisão. Fez sua mala, vestiu-o com seu melhor terninho e, ao amanhecer, embarcaram num trem.

- Meu filho – disse ela – Você sempre será meu filho, e eu, sua mãe.

- Hã-hã – disse Carlo, sem entender.

- Mesmo que a gente fique muito tempo sem se ver, entendeu?

- A gente vai ficar?

- Vai, Carlo. É preciso.

Ela tirou uma corrente de seu pescoço e pendurou-a no do garoto.

- Vamos combinar uma coisa? – disse-lhe, já com os olhos molhados.

- O quê?

- Toda vez que você quiser me ver, ponha esta corrente e eu vou te aparecer em sonhos.

- Tá bem, mãe.

E Carlo continuou olhando fascinado pela janela do trem, sem se dar conta de que era uma despedida. A jovem mãe os estava esperando na estação. Abraçou o filho tanto, tanto, que quase o deixou sufocado. Ele ainda olhou para trás, mas Branca já se afastava, acenando com a mão, sem deixar que ele visse seu rosto inundado de lágrimas.

...

A dona da pousada deu um suspiro ao finalizar a história de Branca.

- E o marido mentiroso? – perguntei. – O que aconteceu com ele?

- Foi descoberto e preso – ela disse. – O casamento com Brancaflor foi anulado, mas ela não voltou para a propriedade de seu avô. Vendeu tudo e internou-se na mata, nunca mais voltou à civilização. Algumas pessoas dizem tê-la visto vagando nas margens do rio.

- Que história!

Fiquei pensando que ainda me restava um dia como turista no lugar e eu ia dedicá-lo, inteiro, a procurar Brancaflor nas margens do Tafi... Se eu tivesse o seu dom...

 

FIM