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PASTORAL AMERICANA – o livro
Comentários ao romance de Philip Roth[1]
Eu tenho lido bastante. Mas não me lembro de haver lido nada
produzido no último século que se iguale a este romance extraordinário, que
também virou filme[2].
Intrigante, original e profundo do começo ao fim, ele me fez sentir diante de
uma nova e radical forma de escrever ficção, sem entretanto abdicar dos aspectos que fazem do gênero romance o suprassumo da literatura. Um verdadeiro
ponto de inflexão na história do romance, no meu ponto de vista, assim
como Marcel Proust e Miguel de Cervantes o foram em suas épocas.
O que surpreende logo na primeira curva do livro – porque
ele começa, por assim dizer, numa reta bem suave – é a mudança do narrador. Fomos
levados até aqui por um narrador em primeira pessoa que é “um escritor que se
lembra”. De que ele se lembra? De sua infância passada num bairro judeu de Nova
York, na primeira metade do século. Mais precisamente, lembra-se de um colega: um
garoto perfeito, ídolo do esporte local, do qual ele nunca conseguiu se
aproximar muito, mas que o marcou profundamente como um modelo, uma inspiração.
Note-se que o “Sueco”, como era conhecido o ídolo, ainda não é um personagem de
seus escritos, apenas alguém de sua memória, que o narrador relembra.
A partir de certo momento da trama, o escritor-narrador é
levado a escrever sobre o Sueco, e então o romance se transforma. O colega de
infância que ele via de longe, com sua aura de sucesso e perfeição, estava
morto. Ora, os ídolos também morrem. Mas as razões que teriam convertido a vida
do Sueco num verdadeiro inferno, levando-o à morte, segundo o relato do irmão, eram tão absurdas para um ser daquela estatura moral, física e social, segundo
seu ponto de vista, que ele resolve reconstituir aquela vida, aquela pessoa,
aquela história; ou seja, fazer do Sueco o protagonista de seu livro.
Aqui começa o romance da construção de um romance.
Percebemos que a tarefa de Zuckerman, o personagem escritor, é difícil, pois trata-se
de escrever sobre uma pessoa real e as pessoas são intangíveis em sua essência, sobretudo o Sueco, que fez questão de apresentar ao mundo sempre uma máscara perfeita. Mas
ele está bem ciente do fato. Sabe que, por mais que se esforce
em buscar a verdade por trás da persona, seu “Sueco” será um personagem.
Impossível a fidelidade absoluta. Além disso, para o nível do ser que ele pretende
atingir, não pode se fiar na palavra de ninguém que o tenha conhecido, por mais
sincero que o depoente deseje ser. Tudo deverá sair de sua própria dedução e
sentimento. O narrador nos conta que durante os meses seguintes fará uma
imersão tão grande no modo de ser do “Sueco” e nas coisas que ele viveu, que
será como ver o mundo com seus olhos; tornar-se ele próprio. Empenha-se em
visitar lugares em que o protagonista viveu e por onde passou, lugares que doravante a sua
imaginação irá preencher com a presença do “Sueco”.
Dá-se, então, o ponto de virada na construção do romance. Em dado momento, o Sueco começa a falar em primeira pessoa – e ele
passa a ser o narrador principal de sua própria vida. Apesar disso, o
primeiro narrador (onisciente) continua se intrometendo aqui e ali, dizendo o
que pensa da situação e nos fazendo lembrar que, embora agora em segundo plano, é "ele" quem está
escrevendo a história... Mas o Sueco reassume a palavra em seguida, não
perdendo o fio. Assim, as intromissões do narrador-escritor
prosseguem mimetizadas na paisagem do romance sem quebrar o ritmo da narrativa,
mas, ao contrário, aumentando ainda mais a temperatura emocional.
É claro que a história do Sueco, propriamente dita, é
incrível – se assim não fosse, não teria muita importância a forma original de
narrar. É a saga de uma consciência pura, alegre, satisfeita
consigo mesma e com o mundo em que está inserida e dotada de um profundo senso
de gratidão e dever, através de um mundo que se corrompe
cada vez mais, fazendo sua sobrevivência naqueles moldes parecer incongruente, inepta e
até mesmo louca. O protagonista nos aparece tão deslocado, desde a eclosão de seu conflito interior, quanto um Dom Quixote do século XX, em um mundo capitalista que
perdeu todos os seus valores.
Com uma configuração como essa, os fatos da vida que acontecem
ao Sueco assumem uma qualidade trágica. Sua história é uma tragédia dos
nossos tempos, na qual o herói, sem saber por quê, é punido pelos deuses com um
sofrimento atroz... Ele é atingido pelo destino "naquilo que lhe é mais
caro". A pessoa a quem mais ama no mundo – sua filha - se mostra sua pior
inimiga – dele, de si mesma e de todas as coisas que têm ou tiveram valor, tais
como sua família, casa, tradições, seu trabalho e papel no mundo, sua pátria (a
América da liberdade e da prosperidade) e assim por diante. O mundo
do Sueco é implodido de forma invisível aos olhos dos outros, e ele colapsa
como um deus atingido em seu pedestal.
O escritor se propõe a desvendar essa queda do protagonista. E nesse processo vai nos mostrando as entranhas da sociedade norte-americana do século XX e os
conflitos das gerações. Muito já se tem falado em relação aos temas
políticos e éticos abordados no romance – a questão religiosa, a questão
racial, os protestos contra as guerras, a rebeldia que os jovens começam a
mostrar a partir da década de 60, os políticos corruptos, a mudança na atuação das
empresas, os males da televisão e muitos outros. Esse panorama é visto a partir de seus elementos menores, dentro da família, à
medida que as pessoas vão sendo afetadas pelas mudanças em suas próprias vidas. Ele enriquece a "Pastoral" e revela a ironia de seu título, uma
ironia amarga e melancólica. Não deixa de ser uma evocação de um tempo em que “as coisas
eram melhores” – principalmente na fala do pai do Sueco, uma personalidade
dominadora que se vê perplexo diante da decadência de valores que tinham sido tão fundamentais para o estabelecimento dos imigrantes no passado.
Mas, apesar de sua importância, o fulcro do romance não é o
panorama social nem o questionamento ético. O que faz o livro ser universal é o
tema da dor e da injustiça. “Por que acontecem ao Sueco aquelas coisas?” “Em
seu lugar, o que nós faríamos?” É
o mesmo absurdo das desgraças que atingiram o Jó da Bíblia, a pessoa que menos
as merecia. Como dissemos, essa é uma história trágica. Por sua característica
de herói no sentido mitológico, o Sueco tenta até as raias do impossível
entender o que aconteceu com a filha; faz tudo para conciliar o inconciliável e tentar corrigir em si mesmo os erros inadmissíveis (que ele não vê
que estão fora dele), para que a vida volte a seus eixos. Não consegue,
evidentemente. E esta será a causa de sua morte final. Não o câncer, não a
idade, mas a impossibilidade de ser Si mesmo.
E o narrador-escritor (*) estava ciente do que aconteceria desde o princípio? O sentimento de empatia e o anseio de compreensão despertados nele desde que ouviu o relato do irmão do Sueco o conduziram enquanto escrevia a saga. E o final da história do Sueco só poderia ser o concebido desde o início, assim como na tragédia o desfecho trágico está delineado desde as primeiras ações do herói.
(*) Não confundir o personagem escritor com o autor do romance.
NOTAS
[1]
American Pastoral, de Philip Roth, vencedor do prêmio Pulitzer, publicado em
1997
[2]
Pastoral Americana, filme de 2016, roteirizado por John Romano e dirigido por
Ewan McGregor
[3]
Pastoral-gênero de arte
(Wikipedia) – abordagem adotada nas artes e na literatura, caracterizada pelo
tratamento idealizado do estilo de vida dos pastores, retratados como pessoas
simples que cuidam do gado em meio a paisagens bucólicas, em conexão com a
natureza, de acordo com as estações e as mudanças na disponibilidade de água e
de pasto. Principalmente direcionadas ao público urbano, as obras pastorais
apresentam as sociedades de pastores como livres da complexidade e da corrupção
da vida nas cidades.
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