Conto fantástico
A última lembrança
O garoto largou o celular a um cutucão da mãe, mas quando o
médico começou a falar, pegou-o de novo. O médico, com as mãos no bolso do
guarda-pó, explicava a Laura que adotariam o procedimento da
lembrança escolhida com a moribunda. Essa memória querida era o que os cientistas acreditavam
que a acompanharia na eternidade.
- Por isso nós a chamamos aqui. Sendo sua neta, a senhora
pode ajudá-la nessa escolha tão importante. Trata-se do futuro de sua avó.
Laura entrou no quarto do hospital puxando o garoto pela mão. Na cama, divisou os relevos suaves sob o lençol. Ninguém soubera as vezes que aquela
mulher se amoldara para se adaptar às novas formas, conforme a idade ia
exigindo. E agora, ali estava a forma quase consolidada, prestes a concluir o
seu vir-a-ser.
Laura chamou baixinho, com medo:
- Vovó... Sou eu, Laura. – Silêncio. - O Jairzinho também
está aqui.
Laura cutucou o menino para que largasse o celular. Uma vozinha fina falou:
- Ahhh... Vocês... Eu...
- Não faça força, vovó. Fique aí deitadinha. Só me escute,
tá bem?
A vovó fez que sim com a cabeça. Laura venceu a relutância e
passou os dedos em seus cabelos finos como penugem. Foi explicando a técnica da
memória que iam usar. Ela só precisaria escolher seu momento mais feliz pra
carregar consigo na eternidade.
- Qual lembrança, vovó, vai escolher?
A avó falou num fiapo de voz:
- Ah... O dia da primeira comunhão! Eu parecia uma princesa.
Em casa teve festa, os primos...
Em sua memória cansada desenrolou-se a cena. O jardim de sua
casa, meninos e meninas brincando de pique antes do almoço ser servido. Ela
corria com cuidado pra não sujar a roupa branca. De repente foi distraída por
um bulício na folhagem por onde passavam sombras... Virou a cabeça para olhar e
Carlinhos aproveitou para agarrá-la pela cintura.
- Peguei!
O primo sapecou-lhe um beijo na boca antes que ela pudesse
fazer um gesto. E ela ficou ali uma eternidade, vendo a terra rodar. A meninada
gritou e ela correu para o pique, mas se sentia diferente. Depois do beijo,
quase nada mais importava.
- Que lindo, vovó! - Laura estava emocionada. Não imaginava
que a avó se lembraria de coisas como essa.
...
Na manhã seguinte a enfermeira entrou no quarto puxando um
carrinho.
- Bom dia, vovó!
Saudou com a jovialidade estudada dos que costumam lidar com
enfermos sem esperança. Correu as cortinas e foi instalando ao lado dela um
pequeno aparelho, cujos fios e eletrodos prendeu às suas têmporas e ao peito. Depois
enfiou em sua mão uma caixinha de laca preta, na qual, explicou, ficaria
guardada a lembrança escolhida. Enquanto manipulava o fármaco e preparava a
injeção, a enfermeira disse:
- Pode fechar os olhos e começar a lembrar, vovó.
Em sua voz não havia emoção, mas eficiência. Desde que a
sociedade sancionara o direito dos doentes incuráveis de receberem uma morte
“digna e indolor”, como diziam os anúncios, surgiram várias escolas de
treinamento para formar os chamados “enfermeiros de passagem” como ela.
De olhos fechados, a velha começou a recordar. Lá estava o
jardim de sua casa, a volta da igreja com o vestido de renda da primeira
comunhão, a brincadeira de pique-esconde com os primos... Um barulho na
folhagem distraiu sua atenção, ela viu passar uma sombra no momento exato em
que Carlinhos lhe roubou um beijo... Mas não! Desta vez ela “viu” a sombra que
passou detrás das árvores: parecia ser uma mão segurando uma faca e algo
pendurado. Então, no mesmo instante, essa lembrança ligou-se a outra do dia posterior:
o seu gatinho encontrado morto no jardim, estripado dentro de um saco...
Ela quis gritar para a enfermeira:
- Pare tudo! Não posso levar essa lembrança! Não é o que
eu...
Mas sua voz já não conseguia deixar a garganta. A enfermeira
retirou tranquilamente a agulha e soltou o braço da paciente... que não estava
mais lá. Baixou as pálpebras da falecida, desconectou o aparelho e saiu do
quarto com o carrinho, fechando a porta.
...
A vovó continuou no jardim que fora eternizado para ela. Mas
ela vira a sombra! E a sombra significava, no dia seguinte, estar chorando
inconsolável ao lado do gatinho sacrificado por algum demente.
- A culpa foi toda minha! Como eu não te salvei quando vi a
sombra do bandido...?! Nunca, nunca, vou me perdoar!
A dor que sentia era infernal. E não por acaso, quando olhou
para cima viu um letreiro sobre o portão do jardim: INFERNO. Sem conseguir
mudar um mícron daquela situação, ela teve de reviver e sofrer a cena 666 vezes!
Todas as vezes começava vendo a sombra, levando o beijo e acabava diante do
animalzinho de estimação todo desfigurado dentro de uma estopa. Então, na
última vez, o gato começou a se mexer, suas partes se juntaram e a menina agora
“era” o gato que, reanimado, saltou e correu para fora dali.
...
O gato saiu do Inferno e entrou como um raio pela porta de
outro jardim em tudo semelhante ao primeiro, com exceção do letreiro sobre o
portão que dizia: PURGATÓRIO.
Parecia um dia incomum. O jardim, quieto de ordinário, hoje
estava cheio de crianças perigosas para um gato, crianças em movimento
descontrolado. Além do mais, sua dona estava tão distraída que nem ligava para
ele. O gato se esgueirou para não ser atropelado pelos meninos e foi para os
fundos procurar um lugar para se deitar. E viu, como uma miragem, o
passarinho desprevenido em cima da cerca! O vizinho do outro lado, várias vezes
ameaçara os pais da menina sobre a presença indesejada de seu gato no quintal
deles. Ah, isso até o gatinho sabia, porque tivera de fugir dali diversas vezes
sob uma chuva de pedradas. Mas dessa vez ele não iria além da cerca. Só com um
pulo alcançaria o lindo e apetitoso passarinho.
Foi o que fez, mas o passarinho voou e ele foi em seu
encalço, cego para o resto. Num instante tudo ficou escuro. O gato se debateu
por um tempo, sentindo-se agarrado, carregado e sacudido. E aí sentiu a coisa
gelada e dura perfurando seu ventre e derretendo-o como neve. Os cheiros se
misturaram todos. Seu último pensamento foi para o passarinho.
Se tivesse previsto ser caçado enquanto caçava, o
gatinho com certeza teria evitado aquilo. Mas já era tarde. E ali no jardim
chamado Purgatório teve que reviver a cena fatal 333 vezes. Começava todas elas seduzido pelo passarinho, correndo atrás dele, e terminava com seu
próprio corpo se derretendo como sorvete que cai no chão. Até que, na última vez,
conseguiu ver o passarinho que se salvara ao perceber o felino. E ao vê-lo, ele
“era” o passarinho, que, voando, saiu dali pelo portão aberto e entrou
rapidamente em outro jardim, em tudo semelhante aos anteriores.
...
O pássaro viu-se em um lugar cheio de pássaros, mas onde não
havia nenhum gato, criança ou outro predador. Além disso, pencas de frutinhas deliciosas
penduradas nas árvores, flores cheias de néctar, lagos com água fresca... Ali
havia sempre sombra e sol, chuva e luar. Um lugar onde se podia trinar à
vontade, sem sustos, pela eternidade. O passarinho então viu o letreiro: estava
no PARAÍSO.
...
O velório foi concorrido, pois muitos empregados da firma do
marido de Laura esperavam cair nas boas graças do chefe. Não custava ir dar um
adeus à avó da esposa dele, mesmo que ficassem meio apartados, conversando em
voz baixa. Poucos familiares, incluindo Laura e o garoto, circundavam o caixão.
Disseram a Jairzinho para se despedir.
- O que acontece agora? – disse o menino, olhos fixos no
cadáver.
- O corpo da vovó vai para o cemitério – disse Laura. – Mas
a lembrança dela continua com a gente...
- E a lembrança dela vai com ela, não é?
O menino se referia à última lembrança escolhida. Ambos, mãe
e filho, olharam para a caixinha preta na mão da defunta. Os rapazes da firma
também tinham se aproximado, mãos cruzadas na frente do terno social, cabeça
levemente inclinada em sinal de respeito. Um deles, representando os demais,
comentou:
- Parece que ela está sorrindo... Não deve ter sofrido.
Morreu como um passarinho.
Ouviram-se suspiros aqui e ali, como se os vivos estivessem
digerindo suas emoções diante da morte.
A velha foi levada ao cemitério numa cerimônia breve. O
caixão foi conduzido pelo marido de Laura e mais cinco rapazes. Não houve
discursos, apenas flores e torrões de terra jogados lentamente na cova aberta.
No caminho de volta para casa, Laura tinha os olhos
vermelhos, mas secos. Jairzinho voltara a seu celular. Mesmo assim, foi sua
esperteza que percebeu algo no chão, ao entrarem em casa.
- Olha, mãe! É a caixinha de lembrança da vovó...
Laura pegou e abriu o objeto que a defunta, propositalmente
ou não, deixara para trás. A caixa estava vazia.
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