terça-feira, 25 de junho de 2024

MICROCONTOS

 Contos condensados: basta acrescentar uma gota de imaginação e o drama surgirá inteiro.




LIBERDADE DE ESCOLHA

Acordou em sua cama morta. Pensou em chamar o marido. O folgado nem notaria para tomar as providências. Aí se lembrou do sonho: ela ia se casar, mas era o noivo. Ser homem autocentrado, amado era tão mais fácil. Incorpórea, agora era livre. Chutou a roupa no chão e saiu a aproveitar sua eternidade.


DIGNO 

O farol demora. Em pé na calçada o homem tira o avental, o boné e os enfia na mochila junto com o cartaz de vendedor. Descalça os tênis, as meias e os troca por havaianas. O trânsito zune. Tira a camiseta, enxuga com ela o suor, veste outra listrada. Pega a mochila e sai gingando. Um novo homem.


O ALGORITMO 

Ficou vendo as mercadorias caindo enquanto o carrinho se enchia. Ele só precisou mostrar a cara para o Algoritmo saber do que precisava. Na rua parou diante de um telão: alguém discursa sobre o futuro da nação. Dizem: é o novo presidente que o Algoritmo escolheu para nós. Ele vai para casa pensativo.


CONVERGÊNCIA 

No caminho da escola havia uma certa casa. O menino espiava aquele pátio onde as criaturas tomavam sol: deficientes de nascença. Uma menina da sua idade, apoiada num bastão, auxiliava os demais. Um dia a surpresa: a menina usando óculos escuros estava na sua classe. Foi falar com ela e viu o mais lindo sorriso que já vira.


O AGREGADO

No passa-anel notou pela primeira vez que as mãos do seu irmão eram brancas. Por que pergunta? - disse o Padrinho - Acaso não é bem tratado aqui? Daquele dia em diante não teve graça a brincadeira, sabendo que um dia o irmão seria o patrão.


ENCONTRO DE FAMÍLIA 

Soou a campainha, ela tirou o avental. -Mamãe,  este é o pai do Zuza. Meu Deus! É ele mesmo? Os olhos que se cruzaram viram-se na adolescência perdida. -O assado parece delicioso - disse a mãe de Zuza.  Mas ela pensava se ele também não abandonaria sua filha sem uma palavra... O jantar foi estranho.


SANSÃO 

Entreabriu os olhos pesados. Verdes e marrons se mesclavam sob o azul. Não via mais o pátio conhecido, mas podia ver longe na mente, até a praia. As patas já não o levavam ao pote, a fome já não doía. Mas faltava ainda uma coisa. Então ouviu o som da voz do menino e cerrou para sempre os olhos.


RAPTOS

-Mamãe está suspeitando da empregada...

-Gente idosa é desconfiada.

-Disse que as coisas somem da despensa como se houvesse ratos.

-E ela pensa que a ratazana é a Dita...

Fizeram a prova e apareceu mesmo um rato na ratoeira.

-Desconfio da empregada - repetiu a velha.

-Mas, mamãe, você não viu o rato?

-Não vi nada, não. A Dita deve ter roubado.


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2 comentários:

  1. Todos merecem o (um) prêmio.
    De fato, o oculto, o silenciado, urge, emerge, e impacta.

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  2. Muito instigantes. Ficamos a imaginar…

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