O Tesouro
(conto)
Ela está diante das duas caixas de papelão que trouxe do sótão. Pelas marcas externas vê que estão completamente deterioradas pelo tempo, a umidade, a imobilidade. Ela se comove pensando no estado da substância preciosa que elas contêm: as coleções de selos de seu pai. Pensa no quanto eles eram belos e mágicos na sua infância e como devem estar agora arruinados. Diante da caixa, ela tenta entender. Por que se esqueceu deles? Por que os deixou onde foram confinados, sem nunca abrir, olhar, manusear, usar? Poderia tê-los trocado na época em que os selos tinham valor; poderia ter ganho um bom dinheiro com eles. Nem isso lhe ocorreu. Contentou-se sempre em saber que eles estavam ali, que eram a sua herança preciosa. Não tomara posse deles, afinal.
Ela se prepara para rasgar a fita adesiva com uma faca na mão, mas a mão hesita. Onde estiveram as caixas todo esse tempo? Fazia no mínimo quarenta anos que seu pai se fora, na flor de seus anos. Deixara a ela a missão de concretizar suas conquistas cortadas pela raiz, deixara a ela seus pertences valiosos, para que ela fizesse bom uso deles...
Ela rasga a fita no comprimento da caixa. Não foi difícil, porque até a fita perdera a goma. Assim como ela, pensou. A poucos meses de se aposentar da carreira de professora, que goma ainda restava ao seu espírito? Onde estava aquela verve herdada de seu pai, o projeto de fazer grandes coisas, escrever importantes livros? Perdera sua juventude e a seiva estava quase seca. Por isso se lembrara repentinamente das coleções de selos do sótão? Uma curiosidade meio mórbida a levara a desenterrar as caixas no meio de outros entulhos de família. Trastes que significaram alguma coisa na época em que seus avós e tios tinham vivido como imigrantes, lutando para sobreviver numa terra sempre estranha, sempre conquistada à unha. Ela nem olhou para todos aqueles trastes, simplesmente os arrastou para um lado como se descarta a terra ao cavar um poço. A água preciosa do poço estava ali naquelas duas caixas. E ela haveria de ter coragem de abri-las e conferir a realidade da sua ruína e dela própria. Era verdade que elas estiveram inacessíveis durante os anos de sua adolescência e juventude. A tia severa as havia ocultado dela e de sua mãe, por rancor descabido. Acaso tiveram culpa pelo acidente que o levara? Era o que sua tia encasquetara, negando-lhes qualquer herança material dele. Somente muito depois, quando ela havia dobrado a curva dos verdes anos e estava sozinha no mundo, casada apenas com seu trabalho de professora de língua portuguesa, é que o acaso a levou a morar na casa que fora dos avós e onde seu pai vivera até se casar. Ali estava o sótão com todas as tralhas sem identidade para ela, e ali estavam as duas caixas, o tesouro que seu pai lhe destinara.
Que significavam, afinal, os selos? Quanto à funcionalidade já não valiam nada, desde que as cartas perderam seu lugar no mundo digital. Os selos carregavam a magia de algo que chega de outro lugar, de um país distante e exótico que dificilmente se conheceria nesta vida. Agora que o conhecimento de todos os países, suas línguas, suas guerras e suas culturas pertencem ao domínio público, os selos perderam todo o antigo charme. Mas não era só isso - ela descobria, ao franquear as abas de papelão e expor uma massa de papel desbotado e grudado, que levantou uma nuvem de pó. Não eram só selos; a coleção de seu pai para ela eram sonhos. Eram livros coloridos, quadros, saberes; eram uma biblioteca inteira! Agarrou uma folha com a ponta dos dedos. Viu-se a si mesma debruçada sobre o livro ao lado do pai, no tapete da sala. Ele deixava que ela colasse um selo azul com a imagem de um pássaro. "Este veio da Dinamarca", explicou sorrindo e recomendando que ela o encaixasse num dos quadriculados da folha. E ela se sentira possuidora daquele pássaro, como de uma quimera.
Ficara refém dessa quimera pelos anos que se seguiram, pois o pai nunca voltou para mandar que ela fechasse o livro, que era hora de fazer outra coisa. Paralisada em sua resignada missão de passar lições, dar aulas mais ou menos inspiradas de vez em quando, rabiscar textos literários jamais concluídos. Esperando...o quê? Nos últimos tempos, aliás, a inspiração diminuía. Lembrou-se de uma gafe recente, quando, falando à classe, confundira dois dos romances de Tolstói e fora lembrada por uma aluna. É claro - entendia, cheia de horror e asco ao ver uma barata escapar-se da caixa e correr, furtiva - que eu vivi à sombra desta herança. E agora? Não ousou admitir a presença de uma esperança impossível, de que houvesse alguma outra coisa para ela. A vida não podia ser só isso.
Espantou o gato em cima da segunda caixa e a puxou para si, mas mantendo o corpo um pouco distante, preparada para a nuvem de pó e insetos que iriam saltar. Tantos anos, tantos sonhos. Crescera com mágoa da tia e da avó por culparem sua mãe e, por isso, as manterem longe de tudo o que fora do pai. Nunca tinham aceito o relacionamento dele, um moço culto, refinado, com a moça simples que ele conhecera na fábrica. Depois de sua morte prematura, não acolheram as duas como sendo da família. A ela sim, ainda criança, se dispuseram a pagar os estudos. A tia, levando-a pela mão e a deixando no pátio da escola: "Trate de se esforçar, mocinha, que é o que seu pai esperava de você". Mas ela atendera a tremenda expectativa vinda de além-túmulo? Olhou desconsolada para a segunda caixa, a faca na mão... Uma pífia carreira de professora do fundamental, que em breve se encerraria com uma carta de agradecimento da instituição de ensino, como uma vela que se apaga. Será que o pai a perdoava? Por ter esperado tanto tempo para ser ela mesma, tentando remendar o imenso buraco no pano de suas vidas? Será que a perdoava por dormir sobre os louros das conquistas dele de jovem, em vez de dar crédito à sua própria caminhada de quase meio século de vida?
A mão rasgou com firmeza a fita frouxa, que caiu para o lado. O gato deu um miado. Nuvens de poeira densa - a poeira do Saber, a poeira da Magia, a poeira do Sucesso se evolaram no ar. A poeira do Bem-querer, quiçá? Ela não se preocupou em secar duas gotas que lhe deslizaram pela face. Há tanto tempo aquela secura em sua vida que suas lágrimas tardias nem chegariam a umedecer. Esperou que saíssem os insetos repugnantes, mas não saiu nenhum. Então puxou o pacote para si e olhou dentro.
FIM
Gostei!
ResponderExcluirLembro de ter lido , recentemente, q nesta época nenhum segredo se perpetuará. E certamente, muito vai depender de nossa atitude corajosa para encara-los!
Oi amiga! Li e reli várias vezes seu conto… talvez pra ver se minha impressão primeira passava… mas não. A de um conto triste, as palavras repetidas “trastes tralhas”… culpa desconsolo mágoa que saltam feito poeira. Senti um cheiro de mofo, de coisas que ficaram velhas e sem valia mas mesmo assim, ficaram guardadas . Muito bem escrito, como sempre, da pra ver a personagem naquele cômodo em seus pensamentos, rememorando . Não sei se o fim abrupto me trouxe surpresa, um caminho, uma possibilidade . Até porque, todo o conto não cria um “ambiente”, um clima pra isso. Podem sair simplesmente baratas, percevejos, selos velhos. A felicidade não está a um palmo da mão mas quem sabe uma luz interna há de iluminar o quarto?
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