terça-feira, 7 de maio de 2024

CARRIE, O PODER DAS BRUXAS

 



Comentários sobre o best-seller de Stephen King

 

Por favor, não comece dizendo que não curte histórias de terror. Não sem antes conhecer a obra prima de Stephen King: Carrie, primeiro romance do autor, publicado em 1974. Carrie logo se tornou um best-seller e um clássico no gênero, sendo transformado no filme Carrie, a Estranha, em 2013 e servindo de inspiração para muitos autores e cineastas.   

Em primeiro lugar, por que um clássico? Carrie é daqueles romances exemplares que nenhum estudioso ou candidato a escritor deveria deixar de ler. A história da adolescente tímida criada por uma mãe fanática, sofrendo constante bullying até revelar poderes paranormais e arrasar uma cidade é contada, em sua maior parte, por meio de recortes, notícias, entrevistas e depoimentos. A grande tragédia final vai sendo sugerida pouco a pouco nas entrelinhas, ao mesmo tempo em que um narrador onisciente acompanha a protagonista de perto em seus momentos de maior aflição, até o desenlace. O suspense resultante é infalível. Uma vez começado, é difícil largar o livro. Queremos saber o que acontecerá (ou aconteceu, segundo os depoimentos e recortes), como e por quê.

Vamos falar dos subgêneros do terror. Terror, horror ou trash – os teóricos são unânimes em colocar o último como o de menor nível dos três: trash é o gênero mais apelativo, que mostra de forma explícita cadáveres, zumbis, monstros e coisas do tipo. Nosso exemplar brasileiro do gênero nos filmes seria o José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Porém, quanto à predominância entre o terror ou o horror, há divergência. Alguns caracterizam o horror como o nível mais elevado: é aquele que consegue levar o leitor ao medo mais intenso, porém, sem explicitar nada ou quase nada da coisa temida. Gosto de citar como exemplo o conto A Mão do Macaco, de William Jacobs, que virou até minissérie da Globo. É totalmente assustador, mas nunca vemos aquilo que nos aterroriza, a não ser em nossa própria mente.

Segundo explicações do próprio Stephen King, o gênero que ele escreve se compõe de todos esses tratamentos. O terror – as expectativas criadas que geram medo no leitor, que o deixam “aterrorizado”; o horror – a concretização daquilo que foi anunciado e preparado, deixando o leitor “horrorizado”, e a repulsa. Em suas próprias palavras:

“Reconheço o terror como a melhor emoção e por isso tentarei aterrorizar o leitor. Mas se eu achar que não posso aterrorizar, tentarei horrorizar, e se descobrir que não posso horrorizar, irei para o nojento” (King, Stephen, em Dança Macabra).

 Atualmente, com tantos filmes e séries de terror, os subgêneros cresceram e há uma extensa categorização deles. Carrie poderia ser classificado como terror psicológico ou terror teen.

De acordo com a classificação de King, ele estaria entre o terror e o horror porque, embora haja a descrição de cenas trágicas, o que nos aterroriza não é a destruição propriamente dita das pessoas e da cidade, mas a causa daqueles fatos, o poder paranormal de Carrie. O autor consegue apresentar essa causa como uma hipótese científica, a telecinese. Segundo notas que vão sendo enxertadas na narrativa, se trataria de uma doença genética, da qual somente a mulher manifestaria os sintomas (“a capacidade de mover objetos ou provocar mudanças em objetos pela força da mente”) e o homem seria apenas portador. O fenômeno se manifestaria apenas quando a mãe e o pai do sujeito fossem portadores daquela particular natureza eletroquímica da mente, por isso seria raro. Independentemente de especulações cientificas, a existência dessa explicação no romance transforma a capacidade de Carrie em algo verossímil, embora sinistro, porque fora de qualquer controle. O romance é conduzido como se um estudioso estivesse tentando entender o que aconteceu de um ponto de vista objetivo, e esse narrador oculto é que nos conduz na mesma ânsia de compreender, e que nos mantém, ora distantes de fazer julgamentos, ora sentindo na pele com os personagens, com seus medos, suas crenças e preconceitos. Essa alternância entre distanciamento e envolvimento na trama torna a leitura eletrizante.

A história em si é daquelas que nos agarram pelas tripas e pela emoção, carregadas de simbolismo, onde os ingredientes são os grandes conflitos que habitam as profundezas do humano. A personagem Carrie traz em sua composição vários mitos relacionados à mulher. Ela é a Eva pecadora, é a Cinderela desprezada, é a maga, é a santa e é a bruxa que se esconde no íntimo de todas elas. King consegue contar-nos essa história monstruosa da adolescente rejeitada que resolve se vingar dos que lhe fizeram mal com a arma invencível do poder de sua mente, sem deixar de revelar também a sua face sensível, inteligente, habilidosa, romântica – ou seja, a face de uma mulher como outra qualquer, ansiosa por amar e ser amada.

Nesse sentido, a história de Carrie é a de uma Cinderela às avessas. Enquanto no conto de fadas a natureza preciosa da Gata Borralheira é percebida e revelada quando o Príncipe a promove a Princesa casando-se com ela, Carrie está quase chegando ao seu final feliz, mas tudo acaba mal para ela. Também no seu caso existe um Homem que vai se encantar com sua natureza feminina no dia do baile fatídico na escola; alguém que tem para ela outros olhos, como se a menina desprezada tivesse se revelado como Cinderela para ele. Mas a trama se completa com o horror que vem sendo anunciado desde o início, e a quase princesa torna-se a feiticeira malvada da sua vingança.

Notícias como essa têm sido comuns em nossos tempos, conferindo atualidade ao romance de Stephen King. Adolescentes frustrados, com problemas de desajuste social e quase sempre vítimas de bullying, que resolvem se vingar matando pessoas inocentes, na escola, na igreja, no shopping ou na rua. Curiosamente, a maioria desses crimes são cometidos por adolescentes do sexo masculino. Aqui nós temos uma criminosa. Qual o peso disso na história? Em Carrie há uma conotação direta entre o sangue menstrual, o poder e o mal. A menina, segundo as hipóteses científicas apresentadas, nasceu portadora da tal doença de telecinese, mas isso havia ficado esquecido. Somente ao ter sua primeira menstruação com grande atraso, aos dezesseis anos de idade (soma igual a sete, o número místico) é que o poder mental aflorou nela com toda a força. Na situação de estresse máximo em que se encontrava, sem encontrar alívio em parte alguma, Carrie valeu-se desse dom insuspeitado para usá-lo como arma invencível de destruição. Não é exatamente a motivação das memoráveis bruxas? Lembremo-nos de Maléfica de A Bela Adormecida, que era uma fada como as outras, mas ao não ser convidada para o batizado de Aurora, lança sua maldição sobre ela. As colegas de Carrie também a haviam maltratado durante um episódio de manifestação da sua menarca. Assim, a relevância do sangue menstrual na história traz os preconceitos milenares e o temor dos homens que viam no sangramento ritual das mulheres um signo de poder e de bruxaria. Em Carrie torna-se real esse temor.

Os momentos em que a protagonista utiliza seus poderes paranormais – que para ela são normais – são descritos com grande detalhamento das sensações físicas e alterações em sua fisiologia e em sua psique, o que irá conferir maior realismo aos fatos terríveis que se seguirão.

Mas por que a menina não conta com a ajuda da mãe em suas aflições? Atenção, carinho, compreensão por parte da mãe não teriam evitado que ela chegasse ao limite extremo? A questão é outro vórtice de terror da história, pois a maternidade é virada de ponta cabeça, da mesma forma que a feminilidade. A fanática mãe de Carrie vê pecado e castigo em tudo. O deus em que crê é um deus implacável e sedento de sacrifícios. Para ela, a própria filha é um mal que deve ser extirpado do mundo. Pobre Carrie! Vítima de uma doença que a predestinava a ser marginalizada e de uma mãe que é a pura “madrasta” dos contos de fada ao projetar sua psicose no que ela considerava ser a única religião verdadeira; ao interpretar literalmente toda afirmação sangrenta da Bíblia e possuída por uma necessidade insaciável de punir e castigar a todos como um Anjo Vingador. A crueldade dessa “madrasta” excede qualquer imaginação e as cenas finais do romance são de puro terror, no enfrentamento entre mãe e filha.

 Carrie também apelará, em seu maior desespero, para esse deus que lhe foi impingido desde pequena por sua mãe e do qual tem medo. Mas ela não é ouvida. No entanto, ela poderia ter sido salva do colapso - talvez não por Deus, que em sua religião deformada lhe é inacessível, mas pelo amor de um Homem. Nos poucos instantes do baile em que se sentiu reconhecida e desejada pelo garoto, ela esteve às portas do paraíso. O mito de Cinderela é tão didático quanto uma boa sessão de psicanálise. O que nos diz o mito? Que o amor do homem é capaz de salvar a mulher de seu próprio abismo. Dependeria somente dele a mulher tornar-se Eva ou Lilith, fada ou feiticeira. É claro que nos referimos à Mulher e ao Homem no sentido arquetípico, simbólico, não de suas representações sociais que podem variar, inclusive, quanto ao gênero.

Por último, gostaríamos de mencionar uma curiosa semelhança. O autor, descrevendo as sensações físicas de Carrie ao fazer os objetos se moverem, diz que é como se seu cérebro se flexionasse de um jeito diferente do normal, e daí as coisas extraordinárias aconteciam. Essa descrição parece também muito apropriada a outro fenômeno: o da criação literária. Também no ato de criar – usando nossa imaginação, intelecto, memória e emoções - podemos dizer que a mente sai do seu estado corriqueiro, operacional; é como se ela se flexionasse sobre si mesma, e daí, a criação acontece. O mestre Stephen King sabia bem disso.

 

FIM

 

Edição que recomendo:   

* King, Stephen - Carrie – editora Schwarcz, tradução de Regiane Winarski

       

 

 

  

        

  

 

 



[1] King, Stephen, Dança Macabra

Um comentário:

  1. Excelente análise! Assisti ao filme, mas agora fiquei com muita vontade de ler o livro. Obrigada!

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