Crônica
"Hoje eu me sinto
Como se ter ido fosse
necessário para voltar"
Gil
A sensação ao olhar a paisagem aqui do alto é de
perplexidade. Como cheguei até aqui? Como não me dei conta de todos os anos,
meses, horas que se passaram? Dizem que os momentos vividos com nossa presença, nosso Eu real, ficam gravados na memória; o resto se desvanece como neve
num vulcão, o tempo devora. Na verdade, se tivéssemos que reter
nossas vivências completas, isso seria uma tortura. Não teríamos espaço em nossa
mente para o novo. Não acho ruim que minhas lembranças sejam só as de momentos
seletos, tanto de prazer quanto de dor. A natureza é sábia, nos preenche com o
que cabe e não transborda.
Sete é conta de
mentiroso. Por volta dos sete anos entramos na escola e somos encharcados com
educação e aí começam as mentiras. É quando todo o mundo se dedica a nos
preencher com a cultura, isto é, com as mentiras da sociedade e nos ensinam a
fabricar nossas próprias mentiras, sobre nós e os outros. Mas aos setenta já
somos crescidinhos para nos enganar voluntariamente. Queremos tudo a limpo,
nada de conversa fiada. Ainda acalentamos algumas ilusões agradáveis sobre nós
mesmos. Em alguns aspectos houve amadurecimento; em outros, continuamos verdes.
Mas desejamos, mais do que tudo, a verdade. Já não damos tanto valor ao que
pensam de nós; queremos saber o que nós pensamos de nós. Sou realmente
capaz de fazer o que digo? Sou uma pessoa confiável? Minha capacidade está
aumentando ou diminuindo? E o mais importante: faço realmente o que quero e
preciso? Por que deixo de fazer? O que espero? Do que tenho medo?
Aos setenta anos as
perguntas são difíceis. São tantas as demandas não atendidas, os projetos que
ficaram na caixinha dos pendentes. É hora de fazer uma boa limpeza nela.
Descobrimos com satisfação, por exemplo, que a maior parte dessas pendências já
não têm nenhum sentido: lixo com elas. Não passavam de ilusões, coisas que
queríamos fazer para agradar aos outros, ou simplesmente já as realizamos por
outras formas. Feita a peneira, as pendências que ficaram na caixinha... Ah!
Vão ser a nossa lei daqui para frente.
Nesta fase da vida pensamos em nossos filhos e netos que
sobreviverão a nós. Eles nos conheceram realmente? Que imagem terão de nós
quando tivermos morrido?
Quando tentamos falar da nossa própria trajetória – e vemos
isso nas entrevistas de pessoas famosas - sempre queremos fazer um enredo,
contar uma história com começo, meio e fim, e com nexo. Eu sou alguém que pensa
a vida como um drama - comédia ou tragédia, mas sempre dentro de uma história
possível. Se pelo menos o diretor invisível de nossa vida fosse coerente com as
teorias que definem uma boa história, isso seria válido para a vida real. Mas
não é. A vida não tem o nexo das narrativas ou qualquer outro nexo humano; ela
tem seu próprio grande Nexo, que desconhecemos. Isso não impede que os
dramaturgos e roteiristas tentem contar as biografias das pessoas notáveis como
se fossem enredos. E nós as apreciamos, mesmo sabendo que um filme muito fiel à
vida de qualquer pessoa seria tremendamente chato.
A vida tem sua própria simetria e beleza. O nexo é sempre
uma invenção - uma mentirinha artística, para tornar atraente a história.
Encontrar as correspondências entre diferentes elementos da vida, por exemplo.
Ou as contradições, os paradoxos. Quando tento contar minha vida para mim
mesma, o grande dilema é: qual foi o sentido? Tudo depende de quem conta. Posso
tentar contar minha vida como uma epopeia: as peripécias e reviravoltas de
alguém numa grande batalha e a conquista final; inimigos e parceiros, ajuda
sobrenatural, o Bem contra o Mal. Como poderia? Se existe algo que conquistamos ao chegar aos setenta é a humildade de aceitar aquilo
que não sabemos. O desenho da nossa vida deixa de ser o de uma pista
de corrida para ser o de um fractal. Qualquer pedacinho passa a ter o mesmo
valor e sentido do todo. Cada hora é igual às sete décadas, cada minuto é igual
a uma hora.
O desafio, então, é fazer valer o dia em que tivemos a
sorte de ter despertado mais uma vez. Cuidar de cada amizade como se fosse
a coisa mais preciosa do mundo, porque já entendemos que cada pessoa é um
milagre. Dar atenção ao que queremos fazer e dedicar nosso tempo a esse
trabalho que nos faz bem e nos preenche. Não ter preguiça de aprender coisas
novas, desde que façam sentido, sem que precisem ser úteis. Não ter preguiça
de fazer faxina nas ideias que ficaram velhas, nas mágoas e tristezas que
ficaram gastas, nos hábitos que só nos atrapalham. Fora com eles, porque nós
precisamos de espaço no nosso ser. E, claro, o desafio inclui também certa
coragem de deixar coisas para trás, de aceitar como naturais as perdas, as
transformações por que passam as situações e as pessoas. É como voltar à
puberdade: existe o medo, mas é muito maior a excitação ante a aventura
de viver.
-x-
“É como voltar à puberdade: existe o medo mas é muito maior a excitação diante da aventura de viver.” Fico com essa frase como proposta diante do desafio de viver os setenta!
ResponderExcluirMaria Inês 👆
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