sexta-feira, 24 de maio de 2024

A Chegada dos Setenta

Crônica

"Hoje eu me sinto

Como se ter ido fosse necessário para voltar"

Gil




A sensação ao olhar a paisagem aqui do alto é de perplexidade. Como cheguei até aqui? Como não me dei conta de todos os anos, meses, horas que se passaram? Dizem que os momentos vividos com nossa presença, nosso Eu real, ficam gravados na memória; o resto se desvanece como neve num vulcão, o tempo devora. Na verdade, se tivéssemos que reter nossas vivências completas, isso seria uma tortura. Não teríamos espaço em nossa mente para o novo. Não acho ruim que minhas lembranças sejam só as de momentos seletos, tanto de prazer quanto de dor. A natureza é sábia, nos preenche com o que cabe e não transborda. 

Sete é conta de mentiroso. Por volta dos sete anos entramos na escola e somos encharcados com educação e aí começam as mentiras. É quando todo o mundo se dedica a nos preencher com a cultura, isto é, com as mentiras da sociedade e nos ensinam a fabricar nossas próprias mentiras, sobre nós e os outros. Mas aos setenta já somos crescidinhos para nos enganar voluntariamente. Queremos tudo a limpo, nada de conversa fiada. Ainda acalentamos algumas ilusões agradáveis sobre nós mesmos. Em alguns aspectos houve amadurecimento; em outros, continuamos verdes. Mas desejamos, mais do que tudo, a verdade. Já não damos tanto valor ao que pensam de nós; queremos saber o que nós pensamos de nós. Sou realmente capaz de fazer o que digo? Sou uma pessoa confiável? Minha capacidade está aumentando ou diminuindo? E o mais importante: faço realmente o que quero e preciso? Por que deixo de fazer? O que espero? Do que tenho medo?

Aos setenta anos as perguntas são difíceis. São tantas as demandas não atendidas, os projetos que ficaram na caixinha dos pendentes. É hora de fazer uma boa limpeza nela. Descobrimos com satisfação, por exemplo, que a maior parte dessas pendências já não têm nenhum sentido: lixo com elas. Não passavam de ilusões, coisas que queríamos fazer para agradar aos outros, ou simplesmente já as realizamos por outras formas. Feita a peneira, as pendências que ficaram na caixinha... Ah! Vão ser a nossa lei daqui para frente.

Nesta fase da vida pensamos em nossos filhos e netos que sobreviverão a nós. Eles nos conheceram realmente? Que imagem terão de nós quando tivermos morrido? Quando minha mãe morreu e li o que ela havia deixado tive a certeza de que nunca a tinha conhecido de verdade. Nos seus escritos ela não era apenas mãe, era ela mesma, com todo o feixe de complexidades e contradições e milagres que constitui uma pessoa. E depois de ler aqueles cadernos eu a amei mais.

Quando tentamos falar da nossa própria trajetória – e vemos isso nas entrevistas de pessoas famosas - sempre queremos fazer um enredo, contar uma história com começo, meio e fim, e com nexo. Eu sou alguém que pensa a vida como um drama - comédia ou tragédia, mas sempre dentro de uma história possível. Se pelo menos o diretor invisível de nossa vida fosse coerente com as teorias que definem uma boa história, isso seria válido para a vida real. Mas não é. A vida não tem o nexo das narrativas ou qualquer outro nexo humano; ela tem seu próprio grande Nexo, que desconhecemos. Isso não impede que os dramaturgos e roteiristas tentem contar as biografias das pessoas notáveis como se fossem enredos. E nós as apreciamos, mesmo sabendo que um filme muito fiel à vida de qualquer pessoa seria tremendamente chato.

A vida tem sua própria simetria e beleza. O nexo é sempre uma invenção - uma mentirinha artística, para tornar atraente a história. Encontrar as correspondências entre diferentes elementos da vida, por exemplo. Ou as contradições, os paradoxos. Quando tento contar minha vida para mim mesma, o grande dilema é: qual foi o sentido? Tudo depende de quem conta. Posso tentar contar minha vida como uma epopeia: as peripécias e reviravoltas de alguém numa grande batalha e a conquista final; inimigos e parceiros, ajuda sobrenatural, o Bem contra o Mal. Como poderia? Se existe algo que conquistamos ao chegar aos setenta é a humildade de aceitar aquilo que não sabemos. O desenho da nossa vida deixa de ser o de uma pista de corrida para ser o de um fractal. Qualquer pedacinho passa a ter o mesmo valor e sentido do todo. Cada hora é igual às sete décadas, cada minuto é igual a uma hora.

O desafio, então, é fazer valer o dia em que tivemos a sorte de ter despertado mais uma vez. Cuidar de cada amizade como se fosse a coisa mais preciosa do mundo, porque já entendemos que cada pessoa é um milagre. Dar atenção ao que queremos fazer e dedicar nosso tempo a esse trabalho que nos faz bem e nos preenche. Não ter preguiça de aprender coisas novas, desde que façam sentido, sem que precisem ser úteis. Não ter preguiça de fazer faxina nas ideias que ficaram velhas, nas mágoas e tristezas que ficaram gastas, nos hábitos que só nos atrapalham. Fora com eles, porque nós precisamos de espaço no nosso ser. E, claro, o desafio inclui também certa coragem de deixar coisas para trás, de aceitar como naturais as perdas, as transformações por que passam as situações e as pessoas. É como voltar à puberdade: existe o medo, mas é muito maior a excitação ante a aventura de viver.

 

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2 comentários:

  1. “É como voltar à puberdade: existe o medo mas é muito maior a excitação diante da aventura de viver.” Fico com essa frase como proposta diante do desafio de viver os setenta!

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