PAPAI NIHIL E O ESPÍRITO DO NATAL
(conto cômico com muitas vozes)
O bronzeado Papai Noel tirou o gorro ante as crianças
perplexas, arrancou barba e bigode e berrou para o garotinho:
- Me chamo Gilvan, sou entregador de pizza, o patrão aí está
me pagando pra entregar seus presentes, seus pirralhos! Então não me enche o
saco que eu vou embora agora, e ainda jogo todos esses pacotes
aí na piscina...!
O menino, que vinha choramingando, congelou, depois
recomeçou com mais força.
A mãe veio lá de dentro, correu ao seu encontro:
- Carlinhos, meu filho, o que aconteceu?
Papai Noel, já devidamente paramentado, sorridente, disse:
- Eu falei para as crianças que é feio beliscar o amiguinho...
- Alguém te beliscou, meu bem? - a mãe perguntou, encarando
as crianças, sentadas como budas de pedra na beira da piscina, sem nem piscar.
Carlinhos soluçava, o nariz escorrendo.
- Vamos lá, vou te dar água com açúcar.
Mãe e filho entraram na casa.
- Mas como você soube disso, se só as crianças viram o Papai
Noel falar daquele jeito? – perguntou um dos vizinhos.
- Foi minha filha Catarina quem contou - disse Débora. E
explicou - Justo naquele momento eu apareci na varanda e chamei:
“Vem, Catarina, nós já temos que ir!”
Até estranhei ela vir logo, sem protestar. Nunca quer sair
no meio de uma festa.
“Nós já temos que ir, filha. A vovó e a titia chegaram para
o Natal.
A menina me puxava pela mão.
“Calma, Catarina... Também não precisamos correr. Você não
quer se despedir do Papai Noel, ver se ele tem algum presente pra você...?”
Ela não quis, emburrada, me conduzindo na direção do portão.
“Espere ao menos eu me despedir da Aline...”
Aline, sentada ao lado de Débora, confirmou com a cabeça a
versão da amiga. Débora continuou:
- Aline estava com o Carlinhos, ainda chorando no seu colo.
“Muito boa a festa, querida!”, eu disse a ela. “É bom a
gente ensinar às crianças a bondade do Papai Noel”.
Enquanto Aline estava de costas para a piscina falando
comigo, Carlinhos levantou a cabeça por cima do ombro da mãe, espiou para o
lado do Papai Gilvan - e deu de cara com o malandro fazendo uma careta
monstruosa pra ele, com meio palmo de língua para fora!
- Mas espere...- disse o senhor Moreira, que estava
oferecendo a varanda de sua casa para aquela reunião - Se Aline estava de
costas e a sua filha Catarina não estava mais na piscina, como você sabe que o
Papai Noel fez careta?
- Bem, é que depois do fato muitas crianças vieram contar
– prosseguiu Débora. - Várias mães e pais aqui presentes relataram que seus
filhos ficaram com algum comportamento estranho depois da festa.
- Verdade – disse Aline. - Carlinhos voltou a fazer pipi na
cama, coisa que ele não fazia mais.
- Isso - prosseguiu Débora. – A Catarina também começou a
chutar os brinquedos, imagina, ela que sempre foi bem-educada. E uma das
crianças, não me lembro qual, contou aos pais como foi na hora da entrega dos
presentes... Marianinha abriu seu pacote e fez cara de choro: tinha uma bola de
basquete em vez do cavalinho Pégaso que pediu na carta... O cavalinho tinha
sido dado para o Douglas, que esperava um jogo do Homem Aranha... Que tinha ido
para o bebê Martin, sendo que o móbile de berço foi para Catarina, que não
estava mais lá, então o recolheram da água mais tarde e o deram para o Martin...
E assim foi com todas as crianças. Quando Papai Noel abandonou o saco vazio e
foi se servir dos petiscos na varanda, Douglas tomou a iniciativa e os outros
meninos o acompanharam, chutaram todos os presentes pra
dentro da piscina.
Abriram espaço entre as cadeiras para uma senhora que havia
chegado.
- Foi uma estragação geral – concluiu Débora -, com o preço
que andam as coisas!
- Entendo - disse Moreira. - Mas o que não entendi é por que estamos discutindo
isso hoje. O Natal já passou, estamos perto do Carnaval... Já virou a folhinha,
o ano é outro...
- Verdade - Aline tomou a palavra -, mas o próximo Natal
logo vai chegar e não podemos permitir que isso se repita, com esse mau exemplo
para nossos filhos! Por isso Débora e eu resolvemos convocar esta reunião extraordinária
da Vizinhança Amiga do Natal.
Várias vozes se ergueram ao mesmo tempo. A empregada do
senhor Moreira aproveitou a descontração para passar uma bandeja com
refrigerante e biscoitinhos.
Uma voz ao fundo se ergueu no burburinho:
- A gente tem que passar aos nossos filhos o espírito do
Natal!
- Mas que espírito é esse? - falou a esposa do senhor
Moreira, que até aquele instante estivera calada. – Será que é essa babaquice
de Papais Noéis caducos e maliciosos?
Ouvindo que começava uma xingação, as crianças interromperam
a brincadeira e se aproximaram.
- A mamãe falou Papais Noéis malucos ou caducos?
- Pssst!
- Com licença! - uma mãozinha se ergueu. Era dona Bigina,
avó de Catarina, que estava passando férias e fora convidada para a reunião. - Se eu posso dar uma opinião,
acho que seria muito melhor o Natal do presépio, o verdadeiro Natal do nascimento
de Jesus Cristo. Eu posso organizar um teatrinho mudo, se vocês quiserem, igual
ao que fizeram lá na minha cidade, com gente de verdade. Foi muito
bonito.
- A religião é o ópio do povo - tossiu um senhor na fileira
do fundo.
- A senhora me desculpe, dona...? – falou o senhor Moreira,
que, por ser o dono da casa, sentia certa responsabilidade de dar
encaminhamento às questões.
- Bigina.
- Dona Bigina. Com todo o respeito, mas não acho que essas
histórias da Igreja sejam boas para educar nossos filhos. Veja a corrupção do
Vaticano! E as guerras dos cristãos, as Cruzadas! – Ele sacudia a cabeça –
Não, não...
Dona Bigina se sentou com um suspiro.
Nesse instante Deuza, a empregada que a esposa do senhor
Moreira havia feito sentar-se depois de servir os convidados, resolveu também se
manifestar.
- Mas o que que tem de errado com o Gilvan? – perguntou ela,
tímida.
- Quem é Gilvan? - perguntou uma vizinha que havia chegado
atrasada.
- O entregador de pizzas - respondeu outra.
- O Papai Noel - corrigiu outro.
- Eu conheço ele faz um tempo - continuou Deuza - Não entendo
por que um trabalhador que rala pra sustentar a família não
pode fazer um bico de Papai Noel no feriado pra comprar uma geladeira nova.
Os murmúrios que se levantaram foram abafados por Débora, a
presidenta.
- Um minuto, vizinhos! Ninguém aqui está contra um
trabalhador honesto...
- Pois então! Coitado! Pra quê tanto auê? - disseram duas
amigas que estavam com pressa de ir embora.
- Vamos perguntar às crianças o que elas acham - sugeriu
Aline.
Mas as crianças tinham se cansado da conversa mole e foram
brincar de pique no jardim. A esposa do senhor Moreira se levantou para verificar
que não pisassem nas suas plantas. Quando ela voltou a sentar, reinava um
silêncio constrangido.
- Bom... - ela disse, como boa anfitriã - Como faremos,
então, para trazer o espírito do Natal no próximo ano?
Bigina resmungou baixinho um "Eu já dei minha
sugestão". O senhor Moreira era de opinião de que deveriam abolir de uma
vez por todas aquelas festas que só geravam problemas, mas evitou se expressar
porque era considerado um sujeito boa praça. De novo foi Deuza quem falou:
- Se não for ter Papai Noel, quem vai entregar os presentes?
- Gente... Se vocês acham que não tem nada de mais, eu posso
chamar o Gilvan de novo no ano que vem - disse o pai de Carlinhos, satisfeito
pela oportunidade. Não gostava muito de falar, mas contratar era a sua praia. –
Tenho certeza de que ele não vai recusar.
Débora e Aline encolheram os ombros.
- Ei! Alguém assistiu ao especial do Roberto? - soltou
Clara, a tia solteirona de Catarina.
Foi a deixa pra deixarem de lado aquele assunto espinhoso e
todas começaram a conversar alegremente. O senhor Moreira levou os homens para
conhecer seu novo viveiro.
- Corta!
- Hum... Não sei não... – comentou o diretor, enquanto a
cortina ia fechando no palco – Parece que está faltando alguma coisa nessa
peça!
- Não me parece – disse o 1º assistente. – Não era o que o
senhor queria, que no final ninguém mais soubesse direito o que seria o tal espírito
do Natal?
- Sim – disse o diretor -, mas a questão é: o público vai
entender isso? Não seria preciso guiar um pouco mais sua
conclusão?
- Isso é verdade – opinou o 2º assistente. – O público não
gosta muito de ser deixado no ar. Ou uma coisa é ou ela não é.
- E que negócio é esse de Papail Nihil? Alguém é obrigado a saber que " nihil" significa "nada" em latim? - ajuntou, encorajado, o 1º assistente - Podia mudar esse título.
O diretor coçou a cabeça, tirando a boina preta. Depois de
um tempo, estalou os dedos.
- Já sei! Chamem os atores de volta. Coloque todos na
varanda outra vez.
- Até as crianças? – perguntou o 2º assistente.
- Não... As crianças continuam brincando no jardim.
Foi assim que a conversa dos vizinhos, que começava a se
animar em torno do show de Roberto Carlos e outras celebridades, foi
interrompida pela campainha no portão.
- Você pode ir atender, querido? – disse a mulher ao senhor
Moreira. – Não consigo ver daqui quem é.
Minutos depois o senhor Moreira retornou trazendo pela mão
um garotinho de uns quatro anos.
- Alguém sabe de quem é este menino? – perguntou. – Ele foi
encontrado no outro quarteirão, brincando sozinho num terreno baldio.
- Julinho! – gritou uma das mães, acorrendo atarantada. –
Mas como ele foi sair de perto de mim? Achei que estava brincando com as
crianças. – E sacudindo o moleque pelos ombros – Como você faz isso comigo, meu
filho?
- Bom... – disse o senhor Moreira. – Vou avisar o Gilvan que
a mãe foi achada.
- Foi o Gilvan que encontrou o Julinho? – Deuza deu um
gritinho e quis ir junto para agradecer ao benfeitor.
Ambos voltaram à reunião com um sorriso nos lábios - o do
patrão, amarelo, por ter de dar o braço a torcer a respeito do tão criticado
Papai Noel; o da empregada, com o gostinho doce da vingança.
- Vocês viram? – ela disse. – Ele até pode não ser um Papai Noel muito certinho, mas que é gente boa, é. Não fosse ele, o garoto ficava
perdido aí na rua.
- É mesmo! É mesmo! – vozes de apoio.
- Ah... – disse a avó Bigina, enxugando o canto do olho com
um lencinho – Isso é o verdadeiro espírito.
Ninguém a ouviu.
Fecha a cortina.
FIM