sexta-feira, 28 de março de 2025

CÓDIGO-FONTE - uma autobiografia de sucesso

A epopeia do menino rebelde e inquieto que não sossega enquanto não fizer algo grande é o que prende o leitor e confere sentido à narrativa. Todo o mundo deseja alguma coisa e se esforça, dentro do possível, para se aproximar dessa conquista. Mas quando lemos a história de alguém como Bill Gates, que utilizou quase cem por cento de seus recursos - pessoais,  mentais, sociais, familiares - para apostar em algo em que ninguém tinha pensado antes, queremos saber como ele fez isso.


(Imagem gerada por IA)


BILL GATES: CÓDIGO-FONTE COMO TUDO COMEÇOU 

(Resenha)


                                    Quando fiz uma viagem recente, busquei um livro para levar que interessasse tanto a mim quanto ao meu marido que sempre trabalhou na área de informática. O livro autobiográfico de Bill Gates "Código-Fonte - Como Tudo Começou", lançado pela Cia. das Letras, foi o escolhido: o relato de uma trajetória de sucesso e não de qualquer pessoa,  mas de um cara que está presente todos os dias em nosso computador. 

        E não me enganei. Nós dois devoramos o livro. A ele, que começou a trabalhar nessa área quando tudo ainda engatinhava, e a programação das máquinas exigia esforços e renúncias consideráveis, agradou saber como tudo havia começado; quem inventou e quando foram comercializadas as primeiras máquinas até os microcomputadores pessoais; quem criou e adaptou as primeiras linguagens de computador para rodar naquelas máquinas inicialmente "burras" que tinham sido lançadas com muita ousadia, mas ninguém de fato sabia usar. Um dos protagonistas desses avanços foi justamente o garoto precoce Bill Gates, com seu caráter hiperativo, os estímulos e obstáculos que teve, o seu trabalho incansável. O Bill Gates que, ficamos sabendo no livro, tem exatamente a nossa idade.

    Mas o livro é muito mais do que um guia para aficionados de computador. Cada parágrafo de "Código-Fonte" nos envolve em uma narrativa dinâmica, informal mas precisa, que mescla fatos objetivos com pequenas crises da adolescência e o mundo estudantil e dos negócios, dando a impressão de que estamos assistindo a um filme e torcendo pelo protagonista. Por que o livro é tão bem escrito? O autor não é ingrato. No final, em "Agradecimentos", ele dá amplos méritos a todas as dezenas de pessoas que o ajudaram a transformar sua história em livro. E para conseguir esse resultado, muitos aspectos tiveram de ser contemplados.

    É assombroso notar que até para escrevermos nossa própria história seja necessário bastante pesquisa. Nossa memória é muito mais falha do que pensamos. Retemos, no máximo, impressões esparsas do que vivemos, o que torna esse conjunto insuficiente e não confiável para dar qualquer sentido a um livro de memórias. Por isso Bill Gates se vale da memória de outros,  obtida em conversas com muita gente que conheceu e com quem partilhou experiências,  desde amigos do ensino fundamental até os sócios que fundaram com ele a empresa Microsoft, além de consultas a arquivos das escolas que frequentou, da Faculdade de Harvard, de clubes, bibliotecas e outras instituições. Foi um trabalho de mais de uma década para obter fatos, nomes, datas e números, a fim de torná-lo um verdadeiro ensaio sobre a história da computação. 

    Mas o livro não se resume a uma história da informática. A epopeia do menino rebelde e inquieto que não sossega enquanto não fizer algo muito grande é o que prende o leitor e confere sentido à narrativa. Todo o mundo deseja alguma coisa  e se esforça, dentro do possível, para se aproximar dessa conquista. Mas quando lemos a história de alguém como Bill Gates, que utilizou quase cem por cento de seus recursos - pessoais,  mentais, sociais, familiares - para apostar na sua ambição, queremos saber como ele fez isso.

    Certa vez um mestre afirmou que três fatores são necessários para se obter êxito em qualquer coisa que se faça: o primeiro é talento, habilidade, técnica; o segundo é trabalho duro; e o terceiro é sorte. Bill tinha talento de sobra para a matemática. Tinha um modo de pensar que podia assimilar rapidamente a informação e conectá-la a outras. Possuía um grande poder de concentração, desde que o assunto o interessasse. E havia treinado sua mente na matemática para um pensar estratégico, isto é, voltado para as formas de atingir o objetivo. Sua habilidade mental estava aliada uma sociabilidade, em parte natural e em parte cutucada por sua mãe,  que não o deixava se isolar em seus brinquedos mentais e o empurrava para interações com outras pessoas. Esse ponto é muito importante, porque os infinitos nerds fechados em seus espaços dificilmente se tornariam um dos homens mais ricos do mundo. 

    Agora o segundo fator: esforço. Nosso Bill, desde menino, não se deixava abater pelos "nãos" que a vida lhe opunha, tal como opõe aos que lutam pelo que querem. Tinha persistência,  teimosia. Trabalhava mais do que os outros. Sacrificava tempo de descanso, de lazer, de vida pessoal em prol do trabalho com que tinha encasquetado e se comprometido, fosse um simples trabalho escolar, uma excursão pelas montanhas ou fazer a sua empresa dar certo.

    Terceiro fator: sorte. Ah, essa ele tinha mesmo de sobra! O livro deixa claro seu reconhecimento e gratidão pelo ambiente protegido e estimulante no qual foi criado pelos pais e a avó, que davam amplos exemplos pessoais para que os filhos tivessem senso de responsabilidade social, empenho e organização. Quem não desejaria ter um berço assim? Não podemos deixar de pensar no fato de Bill Gates ter nascido nos Estados Unidos, na década de 50, e não na América Latina. Alguma dúvida quanto à diferença que faria, se fosse no Brasil? O nosso sistema educacional, por exemplo, não se compara ao americano. Sobeja na narrativa de Gates episódios escolares em que recebeu compreensão, apoio, oportunidades e estímulos de mestres e diretores para perseguir seus ideais sem prejudicar os estudos. Isso significa sorte, oportunidade. É o fator de suporte e de encorajamento que pode levar os alunos empenhados às suas melhores realizações. 

    Um resumo que não tira a vontade de ler o livro: como conciliar uma ambição enorme e a visão tradicional de uma sociedade cheia de regras? Como Bill Gates consegue equilibrar isso? Dá para sentir a alta voltagem desse espírito jovem determinado a aprender e a alcançar resultados, sem no entanto decepcionar o alto desempenho esperado dele pela família.  Seu desafio: dar conta de fazer exatamente o que queria, sem deixar de em tudo ser o melhor. Talvez não seja mesmo para qualquer um!
        

FIM

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Até a próxima postagem!


sábado, 22 de março de 2025

Aéreos

Aéreos


Na verdadeira linha de montagem na qual nos movemos dia após dia - tendo que ser sempre produtivos, orientados, definidos como se fôramos um objeto etiquetado e útil -, algumas situações nos colocam frente a frente com nosso Eu completamente marginalizado. E é uma delícia!

Por exemplo, quando você está num portão de embarque no aeroporto, você não está em lugar nenhum. Não está mais na cidade ou país desde o instante em que se despediu de sua bagagem e passou pelas esteiras de sensores. Agora você está à espera. Dentro de algumas horas você estará lá,  mas agora, quase não está mais aqui. Você é um ser passageiro. Uma condição especial que será bom aproveitar, se puder. Aquele Eu viajante que exercitamos no estrangeiro já está começando a se diluir. Em breve será apenas parte de nossas recordações. Mas o Eu rotineiro ainda não assumiu seu comando feroz sobre nossos pensamentos e emoções mais familiares. Somos nós e o outro, somos várias possibilidades de nós mesmos, enriquecidos pela cultura, a língua e a história de outros, passados e futuros, onipresentes e aéreos. 

Se nesse entreato uma ideia meio doida aterrissar, deixe! Se lembranças desconexas se projetarem diante de seus olhos num mosaico abstrato como um sonho, sem comparação com nada que já tenha visto, apenas observe, não impeça o artista. Por apenas essas poucas horas vivamos a delícia de ser maiores do que o quadrado da nossa persona, nos descolar de nós mesmos. E decolar.💭

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

PAPAI NIHIL E O ESPÍRITO DO NATAL

 

PAPAI NIHIL E O ESPÍRITO DO NATAL

(conto cômico com muitas vozes)


 

O bronzeado Papai Noel tirou o gorro ante as crianças perplexas, arrancou barba e bigode e berrou para o garotinho:

- Me chamo Gilvan, sou entregador de pizza, o patrão aí está me pagando pra entregar seus presentes, seus pirralhos! Então não me enche o saco que eu vou embora agora, e ainda jogo todos esses pacotes aí na piscina...!

O menino, que vinha choramingando, congelou, depois recomeçou com mais força.

A mãe veio lá de dentro, correu ao seu encontro:

- Carlinhos, meu filho, o que aconteceu?

Papai Noel, já devidamente paramentado, sorridente, disse:

- Eu falei para as crianças que é feio beliscar o amiguinho...

- Alguém te beliscou, meu bem? - a mãe perguntou, encarando as crianças, sentadas como budas de pedra na beira da piscina, sem nem piscar.

Carlinhos soluçava, o nariz escorrendo.

- Vamos lá, vou te dar água com açúcar.

Mãe e filho entraram na casa.

- Mas como você soube disso, se só as crianças viram o Papai Noel falar daquele jeito? – perguntou um dos vizinhos.

- Foi minha filha Catarina quem contou - disse Débora. E explicou - Justo naquele momento eu apareci na varanda e chamei:

“Vem, Catarina, nós já temos que ir!”

Até estranhei ela vir logo, sem protestar. Nunca quer sair no meio de uma festa.

“Nós já temos que ir, filha. A vovó e a titia chegaram para o Natal.

A menina me puxava pela mão.

“Calma, Catarina... Também não precisamos correr. Você não quer se despedir do Papai Noel, ver se ele tem algum presente pra você...?”

Ela não quis, emburrada, me conduzindo na direção do portão.

“Espere ao menos eu me despedir da Aline...”

Aline, sentada ao lado de Débora, confirmou com a cabeça a versão da amiga. Débora continuou:

- Aline estava com o Carlinhos, ainda chorando no seu colo.

“Muito boa a festa, querida!”, eu disse a ela. “É bom a gente ensinar às crianças a bondade do Papai Noel”.

Enquanto Aline estava de costas para a piscina falando comigo, Carlinhos levantou a cabeça por cima do ombro da mãe, espiou para o lado do Papai Gilvan - e deu de cara com o malandro fazendo uma careta monstruosa pra ele, com meio palmo de língua para fora!

- Mas espere...- disse o senhor Moreira, que estava oferecendo a varanda de sua casa para aquela reunião - Se Aline estava de costas e a sua filha Catarina não estava mais na piscina, como você sabe que o Papai Noel fez careta?

- Bem, é que depois do fato muitas crianças vieram contar – prosseguiu Débora. - Várias mães e pais aqui presentes relataram que seus filhos ficaram com algum comportamento estranho depois da festa.

- Verdade – disse Aline. - Carlinhos voltou a fazer pipi na cama, coisa que ele não fazia mais.

- Isso - prosseguiu Débora. – A Catarina também começou a chutar os brinquedos, imagina, ela que sempre foi bem-educada. E uma das crianças, não me lembro qual, contou aos pais como foi na hora da entrega dos presentes... Marianinha abriu seu pacote e fez cara de choro: tinha uma bola de basquete em vez do cavalinho Pégaso que pediu na carta... O cavalinho tinha sido dado para o Douglas, que esperava um jogo do Homem Aranha... Que tinha ido para o bebê Martin, sendo que o móbile de berço foi para Catarina, que não estava mais lá, então o recolheram da água mais tarde e o deram para o Martin... E assim foi com todas as crianças. Quando Papai Noel abandonou o saco vazio e foi se servir dos petiscos na varanda, Douglas tomou a iniciativa e os outros meninos o acompanharam, chutaram todos os presentes pra dentro da piscina.

Abriram espaço entre as cadeiras para uma senhora que havia chegado.

- Foi uma estragação geral – concluiu Débora -, com o preço que andam as coisas!

- Entendo - disse Moreira. - Mas o que não entendi é por que estamos discutindo isso hoje. O Natal já passou, estamos perto do Carnaval... Já virou a folhinha, o ano é outro...

- Verdade - Aline tomou a palavra -, mas o próximo Natal logo vai chegar e não podemos permitir que isso se repita, com esse mau exemplo para nossos filhos! Por isso Débora e eu resolvemos convocar esta reunião extraordinária da Vizinhança Amiga do Natal.

Várias vozes se ergueram ao mesmo tempo. A empregada do senhor Moreira aproveitou a descontração para passar uma bandeja com refrigerante e biscoitinhos.

Uma voz ao fundo se ergueu no burburinho:

- A gente tem que passar aos nossos filhos o espírito do Natal!

- Mas que espírito é esse? - falou a esposa do senhor Moreira, que até aquele instante estivera calada. – Será que é essa babaquice de Papais Noéis caducos e maliciosos?

Ouvindo que começava uma xingação, as crianças interromperam a brincadeira e se aproximaram.

- A mamãe falou Papais Noéis malucos ou caducos?

- Pssst!

- Com licença! - uma mãozinha se ergueu. Era dona Bigina, avó de Catarina, que estava passando férias e fora convidada para a reunião.  - Se eu posso dar uma opinião, acho que seria muito melhor o Natal do presépio, o verdadeiro Natal do nascimento de Jesus Cristo. Eu posso organizar um teatrinho mudo, se vocês quiserem, igual ao que fizeram lá na minha cidade, com gente de verdade. Foi muito bonito.

- A religião é o ópio do povo - tossiu um senhor na fileira do fundo.

- A senhora me desculpe, dona...? – falou o senhor Moreira, que, por ser o dono da casa, sentia certa responsabilidade de dar encaminhamento às questões.

- Bigina.

- Dona Bigina. Com todo o respeito, mas não acho que essas histórias da Igreja sejam boas para educar nossos filhos. Veja a corrupção do Vaticano! E as guerras dos cristãos, as Cruzadas! – Ele sacudia a cabeça – Não, não...

Dona Bigina se sentou com um suspiro.

Nesse instante Deuza, a empregada que a esposa do senhor Moreira havia feito sentar-se depois de servir os convidados, resolveu também se manifestar.

- Mas o que que tem de errado com o Gilvan? – perguntou ela, tímida.

- Quem é Gilvan? - perguntou uma vizinha que havia chegado atrasada.

- O entregador de pizzas - respondeu outra.

- O Papai Noel - corrigiu outro.

- Eu conheço ele faz um tempo - continuou Deuza - Não entendo por que um trabalhador que rala pra sustentar a família não pode fazer um bico de Papai Noel no feriado pra comprar uma geladeira nova.

Os murmúrios que se levantaram foram abafados por Débora, a presidenta.

- Um minuto, vizinhos! Ninguém aqui está contra um trabalhador honesto...

- Pois então! Coitado! Pra quê tanto auê? - disseram duas amigas que estavam com pressa de ir embora.

- Vamos perguntar às crianças o que elas acham - sugeriu Aline.

Mas as crianças tinham se cansado da conversa mole e foram brincar de pique no jardim. A esposa do senhor Moreira se levantou para verificar que não pisassem nas suas plantas. Quando ela voltou a sentar, reinava um silêncio constrangido.

- Bom... - ela disse, como boa anfitriã - Como faremos, então, para trazer o espírito do Natal no próximo ano?

Bigina resmungou baixinho um "Eu já dei minha sugestão". O senhor Moreira era de opinião de que deveriam abolir de uma vez por todas aquelas festas que só geravam problemas, mas evitou se expressar porque era considerado um sujeito boa praça. De novo foi Deuza quem falou:

- Se não for ter Papai Noel, quem vai entregar os presentes?

- Gente... Se vocês acham que não tem nada de mais, eu posso chamar o Gilvan de novo no ano que vem - disse o pai de Carlinhos, satisfeito pela oportunidade. Não gostava muito de falar, mas contratar era a sua praia. – Tenho certeza de que ele não vai recusar.

Débora e Aline encolheram os ombros.

- Ei! Alguém assistiu ao especial do Roberto? - soltou Clara, a tia solteirona de Catarina.

Foi a deixa pra deixarem de lado aquele assunto espinhoso e todas começaram a conversar alegremente. O senhor Moreira levou os homens para conhecer seu novo viveiro.

- Corta!

- Hum... Não sei não... – comentou o diretor, enquanto a cortina ia fechando no palco – Parece que está faltando alguma coisa nessa peça!

- Não me parece – disse o 1º assistente. – Não era o que o senhor queria, que no final ninguém mais soubesse direito o que seria o tal espírito do Natal?

- Sim – disse o diretor -, mas a questão é: o público vai entender isso? Não seria preciso guiar um pouco mais sua conclusão?

- Isso é verdade – opinou o 2º assistente. – O público não gosta muito de ser deixado no ar. Ou uma coisa é ou ela não é.

- E que negócio é esse de Papail Nihil? Alguém é obrigado a saber que " nihil" significa "nada" em latim? - ajuntou, encorajado, o 1º assistente - Podia mudar esse título.

O diretor coçou a cabeça, tirando a boina preta.  Depois de um tempo, estalou os dedos.

- Já sei! Chamem os atores de volta. Coloque todos na varanda outra vez.

- Até as crianças? – perguntou o 2º assistente.

- Não... As crianças continuam brincando no jardim.

Foi assim que a conversa dos vizinhos, que começava a se animar em torno do show de Roberto Carlos e outras celebridades, foi interrompida pela campainha no portão.

- Você pode ir atender, querido? – disse a mulher ao senhor Moreira. – Não consigo ver daqui quem é.

Minutos depois o senhor Moreira retornou trazendo pela mão um garotinho de uns quatro anos.

- Alguém sabe de quem é este menino? – perguntou. – Ele foi encontrado no outro quarteirão, brincando sozinho num terreno baldio.

- Julinho! – gritou uma das mães, acorrendo atarantada. – Mas como ele foi sair de perto de mim? Achei que estava brincando com as crianças. – E sacudindo o moleque pelos ombros – Como você faz isso comigo, meu filho?

- Bom... – disse o senhor Moreira. – Vou avisar o Gilvan que a mãe foi achada.

- Foi o Gilvan que encontrou o Julinho? – Deuza deu um gritinho e quis ir junto para agradecer ao benfeitor.

Ambos voltaram à reunião com um sorriso nos lábios - o do patrão, amarelo, por ter de dar o braço a torcer a respeito do tão criticado Papai Noel; o da empregada, com o gostinho doce da vingança.

- Vocês viram? – ela disse. – Ele até pode não ser um Papai Noel muito certinho, mas que é gente boa, é. Não fosse ele, o garoto ficava perdido aí na rua.

- É mesmo! É mesmo! – vozes de apoio.

- Ah... – disse a avó Bigina, enxugando o canto do olho com um lencinho – Isso é o verdadeiro espírito.

Ninguém a ouviu.

Fecha a cortina.

 

FIM

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Histórias da Carochinha






Neste espaço dedicado a livros e leituras, quero inaugurar o ano falando de um livro que de certo modo inaugurou minha vida de leitora porque foi o primeiro livro que me caiu nas mãos quando eu ainda era bem pequena.

A capa original já se foi há muito, tendo sido substituída, graças ao zelo de minha mãe, por uma capa feita de cartolina vermelha, coberta com plástico,  na qual escrevi com esferográfica, numa letrinha de quarta série: "Contos da Carochinha". Mas isso foi muitos anos depois. Qual a sua origem? Meu pai o comprou? Foi presente dos tios? Devia ser um tesouro na época, penso, olhando as folhas amareladas, de bordas puídas, as ilustrações de um outro tempo, quando eram raros no Brasil os livros feitos para crianças. 

Um livro maravilhoso sobre o maravilhoso. Eu  folheava suas páginas, olhando mil vezes as gravuras feitas com bico de pena, tão misteriosas quanto negativos fotográficos dos próprios personagens que habitavam o mundo mágico. Lá estava Chapeuzinho Vermelho falando com o Lobo... O monge andando com uma lanterna... O Pequeno Polegar dentro do sapato. Não eram imagens loucas. Para quem soubesse decifrá-las, falavam das Verdades do mundo. Era isso que os livros eram. E dona Carochinha quem era? Uma amálgama de figuras centenárias de várias culturas. Mas, quer fosse o apelido dado à Dona Baratinha, ou a Vovó eterna contadora de histórias em cada povo, elas eram uma mesma criatura mágica, a fada que trazia o conhecimento para as crianças. Pena que quando nos tornamos adultos passamos a nos referir com descaso às quimeras ou desejos impossíveis dizendo: "São histórias da Carochinha!" 

Depois que aprendi a ler, as palavras trouxeram um novo encanto às histórias, junto com as figuras pretas em bico de pena. Palavras tão misteriosas quanto as figuras, nunca ouvidas antes, fora de uso, esquisitas. Mesmo assim, eu gostava de perceber que as coisas podiam ser escritas de diferentes maneiras, em outras línguas, ortografias ou modos de dizer - mas que no fundo sempre faziam brotar o seu sentido. 

Uma dessas histórias ficou por muito tempo me dando voltas na cabeça. Um jovem frade saiu para um passeio matinal. Perto dele cantava um pássaro de plumagem e canto tão maviosos que o frade o seguiu pelas trilhas do bosque,  até que decidiu voltar, mas, no lugar onde antes estava o mosteiro, encontrou uma construção muito antiga, quase em ruínas. Bateu à porta e um velho monge de longos bigodes veio abrir. O frade lhe contou seu assombro, pois deixara o mosteiro havia poucos minutos. O velho monge sorriu e disse: "Meu filho, você saiu deste mosteiro há muito, muito tempo e o que você teve foi uma iluminação: mil anos para um homem são apenas alguns segundos para Deus". 

Ora, não se poderia dizer algo assim da própria literatura?  Estou certa de que essas histórias da primeira infância entraram na minha memória subconsciente como desenho primordial do mundo. Podemos nunca chegar a ser monges iluminados, mas na leitura de um livro é como se o tempo e o espaço se diluíssem, e chegamos mais perto de ver Deus. Depois contamos para outros o que lemos, quer narrando, quer escrevendo, e nos tornamos outros tantos Carochas e Carochos, cujos contos não podem morrer. 

-x-

O LIVRO:

"Contos da Carochinha", da Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma, Rio, 25ª edição, de 1959 (a primeira edição data de 14 de abril de 1894) - "Escolhida coleção de sessenta e um contos populares, morais e proveitosos, de vários países, traduzidos e recolhidos diretamente da tradição oral, por Figueiredo Pimentel".

ALGUNS TRECHOS:

"A terceira prova foi difícil; seria preciso saber qual das três princesas, que estavam adormecidas, era a mais moça. Todas três pareciam-se muitíssimo. A única coisa que as diferençava era que, antes de adormecerem, a mais velha comera um bocado de açúcar, a segunda bebera um gole de xarope , e a terceira tomara uma colher de mel." (O Patetinha)

"No fim do teu reino, longe, muito longe, há uma fada encantada, fechada numa casa de ferro e guardada por um dragão. No quarto imediato há um passarinho, que quando canta, escorre pelo bico uma baba muito fina e perfumada. Essa baba, aparada num pouco de algodão, e passada por três vezes sobre os olhos, restitui a vista a qualquer cego." (A Baba do Passarinho)

"'Ai, minha menina, dize/O que queres para teu bem!' E a mocinha respondeu: 'Se não fosse querer muito/Queria ir ao baile também". (A Gata Borralheira)

"Nesse momento batiam a uma das portas da sala de jantar. Bela ficou perdida de medo, mas lembrando-se que estava ali para dar a sua vida em resgate pela de seu pai, mandou entrar quem batia. Era a Fera; com um ramo na mão, avançava lentamente." (A Bela e a Fera)

"Pela madrugada bateram à porta do palácio. Eram os onze príncipes que pediam para falar ao rei. Insistiram, pediram e ameaçaram, batendo à porta como uns desesperados, e tanto fizeram que apareceu a escolta de Sua Majestade. Nesse momento rompeu o primeiro raio do sol, e os onze príncipes sumiram-se como por encanto, e viu-se uma nuvem de onze cisnes pairando por cima das torres do palácio". (Os Onze Irmãos da Princesa)

"Passeavam, um dia, pela terra, Jesus Cristo e São Pedro, cada um montado no seu burrinho, e chegaram a uma ferraria na beira do caminho. Nosso Senhor, tendo gostado do trabalho do ferreiro, prometeu satisfazer-lhe três pedidos. 'Pede o Reino do Céu, ferreiro...', segredou-lhe São Pedro'. 'Eu não!' retorquiu o ferreiro, 'O Reino do Céu não me enche barriga...'" (O Diabo e o Ferreiro)

"No dia seguinte, o mar encheu e chegou até a porta da cabana. O Rei dos Peixes vinha buscar Luísa, numa grande concha de madrepérola puxada por golfinhos. A moça despediu-se da família, que chorava tristemente, e embarcou na concha". (A Vida do Gigante)

"A formiguinha se dirigiu ao gato: 'Gato, tu que és tão forte, que comes o rato, que rói a parede, que tapa o sol, que derrete a neve, que os meus pezinhos prende...!' (A Formiguinha)

"A princesa Cecília casou-se com o enjeitado. Quando seu pai, o Imperador chegou, ficou aflitíssimo. Como não podia aceitar por genro um valdevinos, sem eira nem beira, disse-lhe: 'Para eu consentir que continues a viver com minha filha, é preciso ires ao inferno, e trazeres três fios de cabelo do diabo. Se nos trouxeres, serás príncipe'. O rapaz não teve medo e partiu. (Os Três Cabelos do Diabo).


FIM ...  Isto é: 

E quem quiser que conte outra.


"

  

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

O Tesouro

O Tesouro

(conto)




Ela está diante das duas caixas de papelão que trouxe do sótão. Pelas marcas externas vê que estão completamente deterioradas pelo tempo, a umidade,  a imobilidade. Ela se comove pensando no estado da substância preciosa que elas contêm: as coleções de selos de seu pai. Pensa no quanto eles eram belos e mágicos na sua infância e como devem estar agora arruinados. Diante da caixa, ela tenta entender. Por que se esqueceu deles? Por que os deixou onde foram confinados, sem nunca abrir, olhar, manusear, usar? Poderia tê-los trocado na época em que os selos tinham valor; poderia ter ganho um bom dinheiro com eles. Nem isso lhe ocorreu. Contentou-se sempre em saber que eles estavam ali, que eram a sua herança preciosa. Não tomara posse deles, afinal.

Ela se prepara para rasgar a fita adesiva com uma faca na mão,  mas a mão hesita. Onde estiveram as caixas todo esse tempo? Fazia no mínimo quarenta anos que seu pai se fora, na flor de seus anos. Deixara a ela a missão de concretizar suas conquistas cortadas pela raiz, deixara a ela seus pertences valiosos, para que ela fizesse bom uso deles...

Ela rasga a fita no comprimento da caixa. Não foi difícil, porque até a fita perdera a goma. Assim como ela, pensou. A poucos meses de se aposentar da carreira de professora, que goma ainda restava ao seu espírito? Onde estava aquela verve herdada de seu pai, o projeto de fazer grandes coisas, escrever importantes livros? Perdera sua juventude e a seiva estava quase seca. Por isso se lembrara repentinamente das coleções de selos do sótão? Uma curiosidade meio mórbida a levara a desenterrar as caixas no meio de outros entulhos de família. Trastes que significaram alguma coisa na época em que seus avós e tios tinham vivido como imigrantes,  lutando para sobreviver numa terra sempre estranha, sempre conquistada à unha. Ela nem olhou para todos aqueles trastes, simplesmente os arrastou para um lado como se descarta a terra ao cavar um poço. A água preciosa do poço estava ali naquelas duas caixas. E ela haveria de ter coragem de abri-las e conferir a realidade da sua ruína e dela própria. Era verdade que elas estiveram inacessíveis durante os anos de sua adolescência e juventude. A tia severa as havia ocultado dela e de sua mãe,  por rancor descabido. Acaso tiveram culpa pelo acidente que o levara? Era o que sua tia encasquetara, negando-lhes qualquer herança material dele. Somente muito depois, quando ela havia dobrado a curva dos verdes anos e estava sozinha no mundo, casada apenas com seu trabalho de professora de língua portuguesa, é que o acaso a levou a morar na casa que fora dos avós e onde seu pai vivera até se casar. Ali estava o sótão com todas as tralhas sem identidade para ela, e ali estavam as duas caixas, o tesouro que seu pai lhe destinara.

Que significavam, afinal, os selos? Quanto à funcionalidade já não valiam nada, desde que as cartas perderam seu lugar no mundo digital. Os selos carregavam a magia de algo que chega de outro lugar, de um país distante e exótico que dificilmente se conheceria nesta vida. Agora que o conhecimento de todos os países, suas línguas, suas guerras e suas culturas pertencem ao domínio público, os selos perderam todo o antigo charme. Mas não era só isso - ela descobria, ao franquear as abas de papelão e expor uma massa de papel desbotado e grudado, que levantou uma nuvem de pó. Não eram só selos; a coleção de seu pai para ela eram sonhos. Eram livros coloridos, quadros, saberes; eram uma biblioteca inteira! Agarrou uma folha com a ponta dos dedos. Viu-se a si mesma debruçada sobre o livro ao lado do pai, no tapete da sala. Ele deixava que ela colasse um selo azul com a imagem de um pássaro. "Este veio da Dinamarca", explicou sorrindo e recomendando que ela o encaixasse num dos quadriculados da folha. E ela se sentira possuidora daquele pássaro, como de uma quimera. 

Ficara refém dessa quimera pelos anos que se seguiram, pois o pai nunca voltou para mandar que ela fechasse o livro, que era hora de fazer outra coisa. Paralisada em sua resignada missão de passar lições,  dar aulas mais ou menos inspiradas de vez em quando, rabiscar textos literários jamais concluídos. Esperando...o quê? Nos últimos tempos, aliás, a inspiração diminuía. Lembrou-se de uma gafe recente, quando, falando à classe, confundira dois dos romances de Tolstói e fora lembrada por uma aluna. É claro - entendia, cheia de horror e asco ao ver uma barata escapar-se da caixa e correr, furtiva - que eu vivi à sombra desta herança. E agora? Não ousou admitir a presença de uma esperança impossível, de que houvesse alguma outra coisa para ela. A vida não podia ser só isso.

Espantou o gato em cima da segunda caixa e a puxou para si, mas mantendo o corpo um pouco distante, preparada para a nuvem de pó e insetos que iriam saltar. Tantos anos, tantos sonhos. Crescera com mágoa da tia e da avó por culparem sua mãe e, por isso, as manterem longe de tudo o que fora do pai. Nunca tinham aceito o relacionamento dele, um moço culto, refinado, com a moça simples que ele conhecera na fábrica. Depois de sua morte prematura, não acolheram as duas como sendo da família. A ela sim, ainda criança,  se dispuseram a pagar os estudos. A tia, levando-a pela mão e a deixando no pátio da escola: "Trate de se esforçar, mocinha, que é o que seu pai esperava de você". Mas ela atendera a tremenda expectativa vinda de além-túmulo? Olhou desconsolada para a segunda caixa, a faca na mão... Uma pífia carreira de professora do fundamental, que em breve se encerraria com uma carta de agradecimento da instituição de ensino, como uma vela que se apaga. Será que o pai a perdoava? Por ter esperado tanto tempo para ser ela mesma, tentando remendar o imenso buraco no pano de suas vidas? Será que a perdoava por dormir sobre os louros das conquistas dele de jovem, em vez de dar crédito à sua própria caminhada de quase meio século de vida? 

A mão rasgou com firmeza a fita frouxa, que caiu para o lado. O gato deu um miado. Nuvens de poeira densa - a poeira do Saber, a poeira da Magia, a poeira do Sucesso se evolaram no ar. A poeira do Bem-querer, quiçá? Ela não se preocupou em secar duas gotas que lhe deslizaram pela face. Há tanto tempo aquela secura em sua vida que suas lágrimas tardias nem chegariam a umedecer. Esperou que saíssem os insetos repugnantes, mas não saiu nenhum. Então puxou o pacote para si e olhou dentro. 

FIM

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

RECRIAÇÃO

. Recriação 



No meio da dor, os olhos, as mãos encontraram o papel. Agarraram-se à tesoura como boia de salvação. Empurrada pela esperança, a tesoura foi circulando o papel. A circunferência não ficou perfeita,  mas sabia que até a Terra era achatada nos polos. Os olhos, com sua inteligência, saberiam abstrair no que não tinha sido, aquilo que deveria ser. O tamanho parecia menor que o do outro, mas também não dava mais para conferir. Só cacos tinham restado, mostrando pedaços do desenho que tão bonito fora. Com lápis coloridos, desenhou na circunferência um miolo amarelo e pétalas cor-de-rosa; depois, outro miolo e pétalas azuis. Os patinhos não sabia desenhar, no lugar deles fez crescer outra flor. E com a dor assim apaziguada, a menina pegou com todo o cuidado seu novo prato e o colocou na prateleira no mesmo lugar em que existira o outro, por sobre os cacos.

FIM

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

BURACOS DE MINHOCA

 



 

Nós, os velhos, descobrimos há muito tempo o que a ciência, a moderna física ainda peleja para comprovar. Existem mesmo os chamados 'buracos de minhoca' no tecido do espaço-tempo. Nós viajamos sempre através desses buracos que ninguém além de nós vê. Se não fosse por isso, como poderíamos sobreviver? O tempo comum se aperta cada vez mais em volta do nosso pescoço a ponto de nos sufocar. Não temos espaço também para viver. Todos os lugares que ocupávamos nos foram proibidos. Os velhos atrapalham, com sua lentidão para acompanhar o assunto das conversas, sua mania de repetir o já dito e sabido, sua tendência às queixas constantes. Por isso nos relegaram a espaços minúsculos, onde ninguém precisa quase nos ver. E como protestar? O que alegar em nosso favor? Ah, a sabedoria da velhice... Essas que foram pulverizadas pelos saberes tecnológicos e as comunicações e já se tornaram obsoletas? Ah, a gratidão pelo que eles outrora fizeram por vocês... Essa gratidão que já não é natural, depois que para todo e qualquer comportamento existe uma explicação dos especialistas e tudo é visto como resultado de transtornos, complexos e neuroses? Como ser grato a quem fez o que fez pelos mais jovens levado por algum determinismo das circunstâncias e da personalidade? Por isso já não há gratidão pelos velhos, nem aprendizado. Nada sobrou para nós, depois que não precisamos mais vender nossa alma para ganhar a vida. O tempo se apertava cada vez mais, as paredes foram se fechando.

Foi então que, procurando desesperadamente uma saída, descobrimos os buracos de minhoca que se pensava que existissem só na ficção científica. É claro que foi uma mulher, uma velha a primeira e embarcar num deles e voltar para ensinar aos outros. Ela não tinha mesmo nada para fazer e foi fazer o impossível. No que consistem esses fabulosos túneis e onde se encontram?

Nada mais fácil de responder: eles estão por toda a parte, ao alcance de qualquer um. Através deles podemos viajar no tempo. E viajando no nosso tempo, aquele que nos pertence por direito, podemos recuperar aquele instante da vida que foi desperdiçado como um vinho rico esquecido no fundo da taça...!

Por exemplo: se vejo uma criança encantadora empurrando um carrinho de bebê com seu urso de pelúcia, basta fechar os olhos e mergulhar fundo no espaço infinito que existe no coração. Em pouco tempo estou aterrissando no planeta no instante exato da minha visagem. Lá ainda sou a mamãe de dois bebês lindos, diante dos quais me derreto completamente como sorvete em água morna... É assim que os velhos aprenderam a viajar. Vamos para esse tempo-espaço intangível entrando num desses buracos de minhoca. E estamos mesmo lá.

Isso me lembra um conto de Jack London que li há muito tempo, de cujo nome já não me lembro, no qual o protagonista é um prisioneiro condenado à morte, em uma solitária. Ele descobriu como escapar. Todas as noites, ao cair no sono, viajava para outras vidas e as vivia com tal intensidade que ao despertar custava a se lembrar quem era no presente, onde estava e quando. Pois é assim mesmo que acontece conosco, nós velhos condenados ao esquecimento e despojados de tudo o que já foi importante para nós: o carinho, o interesse pela nossa conversa, os convites e, claro, a convivência, ou seja, tempo. Em lugar disso nos querem deixar como consolo o tal respeito pelos cabelos brancos, a manutenção de cuidados e outras bobagens que só quem não tem mais vida pode receber com gosto. Aos poucos fomos sendo higienizados e dobrados como embalagens descartáveis.

A solução que encontramos é mágica! Viajar pelos buracos de minhoca do espaço-tempo. Eles estão aí disponíveis o dia inteiro, em cada encontro, cada sorriso, um trabalho bem-feito, um gatinho, uma comida gostosa, uma paisagem da janela... Rotina é uma palavra que perdeu o sentido para nós. Outro dia, no café da manhã, eu me transportei a todos os 'cafés de sábado' da minha vida, maravilhosos, com sua qualidade perfeita para aquelas conversas intermináveis, com as manas, com as filhas, com o marido; as trocas, as filosofias - eu acho isso, e você?, coisas aprendidas, histórias que não tinham fim e que iam construindo um fio que nos ligava a todos. Cada momento do dia se torna infinito quando damos esse mergulho. Dizem que os velhos vivem de recordações, que vivem no passado morto e se desinteressam pelo presente vivo. Nada mais equivocado. Para nós, o presente é que é morto, vazio e plastificado como uma duração. Em compensação, as nossas viagens no tempo... Ulalá! É onde reencontramos nossa beleza no espelho, nossa força para remover montanhas se elas interferissem no bem-estar da nossa família, nossa fé na vida, nossa alegria... Oh Deus! Os caminhos estão novamente abertos, graças aos buracos de minhoca do nosso coração. Agora somos de fato eternos.

 FIM

Imagem: The Starry Night, Van Gogh

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