Neste espaço dedicado a livros e leituras, quero inaugurar o ano falando de um livro que de certo modo inaugurou minha vida de leitora porque foi o primeiro livro que me caiu nas mãos quando eu ainda era bem pequena.
A capa original já se foi há muito, tendo sido substituída, graças ao zelo de minha mãe, por uma capa feita de cartolina vermelha, coberta com plástico, na qual escrevi com esferográfica, numa letrinha de quarta série: "Contos da Carochinha". Mas isso foi muitos anos depois. Qual a sua origem? Meu pai o comprou? Foi presente dos tios? Devia ser um tesouro na época, penso, olhando as folhas amareladas, de bordas puídas, as ilustrações de um outro tempo, quando eram raros no Brasil os livros feitos para crianças.
Um livro maravilhoso sobre o maravilhoso. Eu folheava suas páginas, olhando mil vezes as gravuras feitas com bico de pena, tão misteriosas quanto negativos fotográficos dos próprios personagens que habitavam o mundo mágico. Lá estava Chapeuzinho Vermelho falando com o Lobo... O monge andando com uma lanterna... O Pequeno Polegar dentro do sapato. Não eram imagens loucas. Para quem soubesse decifrá-las, falavam das Verdades do mundo. Era isso que os livros eram. E dona Carochinha quem era? Uma amálgama de figuras centenárias de várias culturas. Mas, quer fosse o apelido dado à Dona Baratinha, ou a Vovó eterna contadora de histórias em cada povo, elas eram uma mesma criatura mágica, a fada que trazia o conhecimento para as crianças. Pena que quando nos tornamos adultos passamos a nos referir com descaso às quimeras ou desejos impossíveis dizendo: "São histórias da Carochinha!"
Depois que aprendi a ler, as palavras trouxeram um novo encanto às histórias, junto com as figuras pretas em bico de pena. Palavras tão misteriosas quanto as figuras, nunca ouvidas antes, fora de uso, esquisitas. Mesmo assim, eu gostava de perceber que as coisas podiam ser escritas de diferentes maneiras, em outras línguas, ortografias ou modos de dizer - mas que no fundo sempre faziam brotar o seu sentido.
Uma dessas histórias ficou por muito tempo me dando voltas na cabeça. Um jovem frade saiu para um passeio matinal. Perto dele cantava um pássaro de plumagem e canto tão maviosos que o frade o seguiu pelas trilhas do bosque, até que decidiu voltar, mas, no lugar onde antes estava o mosteiro, encontrou uma construção muito antiga, quase em ruínas. Bateu à porta e um velho monge de longos bigodes veio abrir. O frade lhe contou seu assombro, pois deixara o mosteiro havia poucos minutos. O velho monge sorriu e disse: "Meu filho, você saiu deste mosteiro há muito, muito tempo e o que você teve foi uma iluminação: mil anos para um homem são apenas alguns segundos para Deus".
Ora, não se poderia dizer algo assim da própria literatura? Estou certa de que essas histórias da primeira infância entraram na minha memória subconsciente como desenho primordial do mundo. Podemos nunca chegar a ser monges iluminados, mas na leitura de um livro é como se o tempo e o espaço se diluíssem, e chegamos mais perto de ver Deus. Depois contamos para outros o que lemos, quer narrando, quer escrevendo, e nos tornamos outros tantos Carochas e Carochos, cujos contos não podem morrer.
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O LIVRO:
"Contos da Carochinha", da Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma, Rio, 25ª edição, de 1959 (a primeira edição data de 14 de abril de 1894) - "Escolhida coleção de sessenta e um contos populares, morais e proveitosos, de vários países, traduzidos e recolhidos diretamente da tradição oral, por Figueiredo Pimentel".
ALGUNS TRECHOS:
"A terceira prova foi difícil; seria preciso saber qual das três princesas, que estavam adormecidas, era a mais moça. Todas três pareciam-se muitíssimo. A única coisa que as diferençava era que, antes de adormecerem, a mais velha comera um bocado de açúcar, a segunda bebera um gole de xarope , e a terceira tomara uma colher de mel." (O Patetinha)
"No fim do teu reino, longe, muito longe, há uma fada encantada, fechada numa casa de ferro e guardada por um dragão. No quarto imediato há um passarinho, que quando canta, escorre pelo bico uma baba muito fina e perfumada. Essa baba, aparada num pouco de algodão, e passada por três vezes sobre os olhos, restitui a vista a qualquer cego." (A Baba do Passarinho)
"'Ai, minha menina, dize/O que queres para teu bem!' E a mocinha respondeu: 'Se não fosse querer muito/Queria ir ao baile também". (A Gata Borralheira)
"Nesse momento batiam a uma das portas da sala de jantar. Bela ficou perdida de medo, mas lembrando-se que estava ali para dar a sua vida em resgate pela de seu pai, mandou entrar quem batia. Era a Fera; com um ramo na mão, avançava lentamente." (A Bela e a Fera)
"Pela madrugada bateram à porta do palácio. Eram os onze príncipes que pediam para falar ao rei. Insistiram, pediram e ameaçaram, batendo à porta como uns desesperados, e tanto fizeram que apareceu a escolta de Sua Majestade. Nesse momento rompeu o primeiro raio do sol, e os onze príncipes sumiram-se como por encanto, e viu-se uma nuvem de onze cisnes pairando por cima das torres do palácio". (Os Onze Irmãos da Princesa)
"Passeavam, um dia, pela terra, Jesus Cristo e São Pedro, cada um montado no seu burrinho, e chegaram a uma ferraria na beira do caminho. Nosso Senhor, tendo gostado do trabalho do ferreiro, prometeu satisfazer-lhe três pedidos. 'Pede o Reino do Céu, ferreiro...', segredou-lhe São Pedro'. 'Eu não!' retorquiu o ferreiro, 'O Reino do Céu não me enche barriga...'" (O Diabo e o Ferreiro)
"No dia seguinte, o mar encheu e chegou até a porta da cabana. O Rei dos Peixes vinha buscar Luísa, numa grande concha de madrepérola puxada por golfinhos. A moça despediu-se da família, que chorava tristemente, e embarcou na concha". (A Vida do Gigante)
"A formiguinha se dirigiu ao gato: 'Gato, tu que és tão forte, que comes o rato, que rói a parede, que tapa o sol, que derrete a neve, que os meus pezinhos prende...!' (A Formiguinha)
"A princesa Cecília casou-se com o enjeitado. Quando seu pai, o Imperador chegou, ficou aflitíssimo. Como não podia aceitar por genro um valdevinos, sem eira nem beira, disse-lhe: 'Para eu consentir que continues a viver com minha filha, é preciso ires ao inferno, e trazeres três fios de cabelo do diabo. Se nos trouxeres, serás príncipe'. O rapaz não teve medo e partiu. (Os Três Cabelos do Diabo).
FIM ... Isto é:
E quem quiser que conte outra.
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Muito bom, Márcia, te ver traçando movimentos biográficos!
ResponderExcluirÉ sempre uma inspiração ver resgates de vivências passadas que constituem uma história!
Muito bom ler essa crônica e lembrar do grande impacto que os contos de fadas tiveram sobre mim apresentados oralmente pela minha mãe e na forma escrita por contos dos irmãos Grimm.
ResponderExcluirMárcia, muito lindas as suas reminiscências. A magia da literatura é essa, nos transporta! Elas me levaram há um tempo distante da memória com sabor de curiosidade infantil: "como será q acaba essa história?" Nas minhas lembranças não haviam histórias, e sim, história de alguém que tinha alguém q lhe contava histórias...
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