domingo, 26 de maio de 2024

ADICTOS CONVICTOS

 Crônica



A vida é uma droga e todos precisam de uma para viver. Eu explico. Não foi sempre assim. Ao nível do animal não havia complicação. Mas o macaco desceu da árvore e o homem se viu diante da encrenca. Nada é totalmente certo, nada totalmente errado. A razão lhe mostra o certo a fazer, mas os instintos o levam a fazer o torto. Sem mencionar a sina terrível de o homem ser o lobo do homem. O veadinho aceita sem drama que o leão é seu predador natural. Mas o homem não pode se resignar que seu vizinho, seu patrão, os políticos que o governam sejam seus predadores; já é pedir demais ao pobre bípede. E sem mencionar, ainda, a cobrança. A invisível e esmagadora cobrança que pesa sobre ele desde que nasce. É tudo aquilo que esperam que ele faça, que aguente, que seja. A cobrança divide o berço com ele e não o largará no caixão final.

Como esperar que o homem sobreviva sem uma droga, uma ilusão qualquer? Quando tudo começa a ficar insuportável, para alguns o cigarrinho traz de volta a magia. Para outros é a bebida que age contra a gravidade,  retira o peso da vida. Mas não são só as de ação fisiológica; há as drogas psicológicas. Há os que se refugiam nas artes, querendo crer na beleza; os que projetam suas misérias na vida de personagens de ficção; os que rezam e esperam ser salvos quando o resto da humanidade perecer... Incontáveis são os truques que os homens inventam para suportar a sua vida. Droga, jogos, literatura,  religião,  artes, guerra, política e poder... Sem esquecer a droga "tio Patinhas", viver para ganhar dinheiro, cujos adeptos só aumentam. Quantos podem jurar que vivem de cara limpa, que aceitam a natureza e o destino?

Conheci um homem dependente do ódio. Qualquer outra forma de sentimento lhe parecia ser covarde e indigna; odiando, sentia-se superior a todos. Conheci outro cuja adição era a esperteza. Sentia-se vivo enganando os outros, uma vez que, para ele, era a única forma de não ser enganado. Assim, almoçava estelionato e jantava trapaça. Um dia conheceu uma moça, enganou-a e fez um filho nela. O menino cresceu e o enganador afeiçoou-se tanto a ele que não suportava a ideia de que seu relacionamento com o filho não fosse verdadeiro. Daí em diante sua droga não funcionou mais.

Sérgio era um ativista político ferrenho. Sentia que sua vida se justificativa lutando contra as injustiças e os maus políticos. De protesto em protesto, finalmente ele viu seus heróis eleitos assumirem o poder... e cometerem os mesmos erros que seus antecessores. Sérgio teve que procurar outra droga e descobriu que podia ser um bom pastor de igreja.

Ana nasceu para o auto sacrifício. Sua mãe era doentinha e queria a filha sempre junto de si. Ana cresceu, não se casou e abraçou o voluntariado, cuidando de velhinhos, doentes e órfãos. Até que um dia olhou-se no espelho e viu que a juventude havia passado. Então nunca conheceria o amor de um homem? A ternura de filhinhos? As pequenas aventuras e diversões? Ana derramou lágrimas, sentindo muita pena de sua vida sacrificada. E assim reforçou a sua droga.

Mas basta de exemplos... São tantas as estradas desta vida que não teriam fim. E quanto a você,  qual é a sua droga?




sexta-feira, 24 de maio de 2024

A Chegada dos Setenta

Crônica

"Hoje eu me sinto

Como se ter ido fosse necessário para voltar"

Gil




A sensação ao olhar a paisagem aqui do alto é de perplexidade. Como cheguei até aqui? Como não me dei conta de todos os anos, meses, horas que se passaram? Dizem que os momentos vividos com nossa presença, nosso Eu real, ficam gravados na memória; o resto se desvanece como neve num vulcão, o tempo devora. Na verdade, se tivéssemos que reter nossas vivências completas, isso seria uma tortura. Não teríamos espaço em nossa mente para o novo. Não acho ruim que minhas lembranças sejam só as de momentos seletos, tanto de prazer quanto de dor. A natureza é sábia, nos preenche com o que cabe e não transborda. 

Sete é conta de mentiroso. Por volta dos sete anos entramos na escola e somos encharcados com educação e aí começam as mentiras. É quando todo o mundo se dedica a nos preencher com a cultura, isto é, com as mentiras da sociedade e nos ensinam a fabricar nossas próprias mentiras, sobre nós e os outros. Mas aos setenta já somos crescidinhos para nos enganar voluntariamente. Queremos tudo a limpo, nada de conversa fiada. Ainda acalentamos algumas ilusões agradáveis sobre nós mesmos. Em alguns aspectos houve amadurecimento; em outros, continuamos verdes. Mas desejamos, mais do que tudo, a verdade. Já não damos tanto valor ao que pensam de nós; queremos saber o que nós pensamos de nós. Sou realmente capaz de fazer o que digo? Sou uma pessoa confiável? Minha capacidade está aumentando ou diminuindo? E o mais importante: faço realmente o que quero e preciso? Por que deixo de fazer? O que espero? Do que tenho medo?

Aos setenta anos as perguntas são difíceis. São tantas as demandas não atendidas, os projetos que ficaram na caixinha dos pendentes. É hora de fazer uma boa limpeza nela. Descobrimos com satisfação, por exemplo, que a maior parte dessas pendências já não têm nenhum sentido: lixo com elas. Não passavam de ilusões, coisas que queríamos fazer para agradar aos outros, ou simplesmente já as realizamos por outras formas. Feita a peneira, as pendências que ficaram na caixinha... Ah! Vão ser a nossa lei daqui para frente.

Nesta fase da vida pensamos em nossos filhos e netos que sobreviverão a nós. Eles nos conheceram realmente? Que imagem terão de nós quando tivermos morrido? Quando minha mãe morreu e li o que ela havia deixado tive a certeza de que nunca a tinha conhecido de verdade. Nos seus escritos ela não era apenas mãe, era ela mesma, com todo o feixe de complexidades e contradições e milagres que constitui uma pessoa. E depois de ler aqueles cadernos eu a amei mais.

Quando tentamos falar da nossa própria trajetória – e vemos isso nas entrevistas de pessoas famosas - sempre queremos fazer um enredo, contar uma história com começo, meio e fim, e com nexo. Eu sou alguém que pensa a vida como um drama - comédia ou tragédia, mas sempre dentro de uma história possível. Se pelo menos o diretor invisível de nossa vida fosse coerente com as teorias que definem uma boa história, isso seria válido para a vida real. Mas não é. A vida não tem o nexo das narrativas ou qualquer outro nexo humano; ela tem seu próprio grande Nexo, que desconhecemos. Isso não impede que os dramaturgos e roteiristas tentem contar as biografias das pessoas notáveis como se fossem enredos. E nós as apreciamos, mesmo sabendo que um filme muito fiel à vida de qualquer pessoa seria tremendamente chato.

A vida tem sua própria simetria e beleza. O nexo é sempre uma invenção - uma mentirinha artística, para tornar atraente a história. Encontrar as correspondências entre diferentes elementos da vida, por exemplo. Ou as contradições, os paradoxos. Quando tento contar minha vida para mim mesma, o grande dilema é: qual foi o sentido? Tudo depende de quem conta. Posso tentar contar minha vida como uma epopeia: as peripécias e reviravoltas de alguém numa grande batalha e a conquista final; inimigos e parceiros, ajuda sobrenatural, o Bem contra o Mal. Como poderia? Se existe algo que conquistamos ao chegar aos setenta é a humildade de aceitar aquilo que não sabemos. O desenho da nossa vida deixa de ser o de uma pista de corrida para ser o de um fractal. Qualquer pedacinho passa a ter o mesmo valor e sentido do todo. Cada hora é igual às sete décadas, cada minuto é igual a uma hora.

O desafio, então, é fazer valer o dia em que tivemos a sorte de ter despertado mais uma vez. Cuidar de cada amizade como se fosse a coisa mais preciosa do mundo, porque já entendemos que cada pessoa é um milagre. Dar atenção ao que queremos fazer e dedicar nosso tempo a esse trabalho que nos faz bem e nos preenche. Não ter preguiça de aprender coisas novas, desde que façam sentido, sem que precisem ser úteis. Não ter preguiça de fazer faxina nas ideias que ficaram velhas, nas mágoas e tristezas que ficaram gastas, nos hábitos que só nos atrapalham. Fora com eles, porque nós precisamos de espaço no nosso ser. E, claro, o desafio inclui também certa coragem de deixar coisas para trás, de aceitar como naturais as perdas, as transformações por que passam as situações e as pessoas. É como voltar à puberdade: existe o medo, mas é muito maior a excitação ante a aventura de viver.

 

-x-

 

 



terça-feira, 7 de maio de 2024

CARRIE, O PODER DAS BRUXAS

 



Comentários sobre o best-seller de Stephen King

 

Por favor, não comece dizendo que não curte histórias de terror. Não sem antes conhecer a obra prima de Stephen King: Carrie, primeiro romance do autor, publicado em 1974. Carrie logo se tornou um best-seller e um clássico no gênero, sendo transformado no filme Carrie, a Estranha, em 2013 e servindo de inspiração para muitos autores e cineastas.   

Em primeiro lugar, por que um clássico? Carrie é daqueles romances exemplares que nenhum estudioso ou candidato a escritor deveria deixar de ler. A história da adolescente tímida criada por uma mãe fanática, sofrendo constante bullying até revelar poderes paranormais e arrasar uma cidade é contada, em sua maior parte, por meio de recortes, notícias, entrevistas e depoimentos. A grande tragédia final vai sendo sugerida pouco a pouco nas entrelinhas, ao mesmo tempo em que um narrador onisciente acompanha a protagonista de perto em seus momentos de maior aflição, até o desenlace. O suspense resultante é infalível. Uma vez começado, é difícil largar o livro. Queremos saber o que acontecerá (ou aconteceu, segundo os depoimentos e recortes), como e por quê.

Vamos falar dos subgêneros do terror. Terror, horror ou trash – os teóricos são unânimes em colocar o último como o de menor nível dos três: trash é o gênero mais apelativo, que mostra de forma explícita cadáveres, zumbis, monstros e coisas do tipo. Nosso exemplar brasileiro do gênero nos filmes seria o José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Porém, quanto à predominância entre o terror ou o horror, há divergência. Alguns caracterizam o horror como o nível mais elevado: é aquele que consegue levar o leitor ao medo mais intenso, porém, sem explicitar nada ou quase nada da coisa temida. Gosto de citar como exemplo o conto A Mão do Macaco, de William Jacobs, que virou até minissérie da Globo. É totalmente assustador, mas nunca vemos aquilo que nos aterroriza, a não ser em nossa própria mente.

Segundo explicações do próprio Stephen King, o gênero que ele escreve se compõe de todos esses tratamentos. O terror – as expectativas criadas que geram medo no leitor, que o deixam “aterrorizado”; o horror – a concretização daquilo que foi anunciado e preparado, deixando o leitor “horrorizado”, e a repulsa. Em suas próprias palavras:

“Reconheço o terror como a melhor emoção e por isso tentarei aterrorizar o leitor. Mas se eu achar que não posso aterrorizar, tentarei horrorizar, e se descobrir que não posso horrorizar, irei para o nojento” (King, Stephen, em Dança Macabra).

 Atualmente, com tantos filmes e séries de terror, os subgêneros cresceram e há uma extensa categorização deles. Carrie poderia ser classificado como terror psicológico ou terror teen.

De acordo com a classificação de King, ele estaria entre o terror e o horror porque, embora haja a descrição de cenas trágicas, o que nos aterroriza não é a destruição propriamente dita das pessoas e da cidade, mas a causa daqueles fatos, o poder paranormal de Carrie. O autor consegue apresentar essa causa como uma hipótese científica, a telecinese. Segundo notas que vão sendo enxertadas na narrativa, se trataria de uma doença genética, da qual somente a mulher manifestaria os sintomas (“a capacidade de mover objetos ou provocar mudanças em objetos pela força da mente”) e o homem seria apenas portador. O fenômeno se manifestaria apenas quando a mãe e o pai do sujeito fossem portadores daquela particular natureza eletroquímica da mente, por isso seria raro. Independentemente de especulações cientificas, a existência dessa explicação no romance transforma a capacidade de Carrie em algo verossímil, embora sinistro, porque fora de qualquer controle. O romance é conduzido como se um estudioso estivesse tentando entender o que aconteceu de um ponto de vista objetivo, e esse narrador oculto é que nos conduz na mesma ânsia de compreender, e que nos mantém, ora distantes de fazer julgamentos, ora sentindo na pele com os personagens, com seus medos, suas crenças e preconceitos. Essa alternância entre distanciamento e envolvimento na trama torna a leitura eletrizante.

A história em si é daquelas que nos agarram pelas tripas e pela emoção, carregadas de simbolismo, onde os ingredientes são os grandes conflitos que habitam as profundezas do humano. A personagem Carrie traz em sua composição vários mitos relacionados à mulher. Ela é a Eva pecadora, é a Cinderela desprezada, é a maga, é a santa e é a bruxa que se esconde no íntimo de todas elas. King consegue contar-nos essa história monstruosa da adolescente rejeitada que resolve se vingar dos que lhe fizeram mal com a arma invencível do poder de sua mente, sem deixar de revelar também a sua face sensível, inteligente, habilidosa, romântica – ou seja, a face de uma mulher como outra qualquer, ansiosa por amar e ser amada.

Nesse sentido, a história de Carrie é a de uma Cinderela às avessas. Enquanto no conto de fadas a natureza preciosa da Gata Borralheira é percebida e revelada quando o Príncipe a promove a Princesa casando-se com ela, Carrie está quase chegando ao seu final feliz, mas tudo acaba mal para ela. Também no seu caso existe um Homem que vai se encantar com sua natureza feminina no dia do baile fatídico na escola; alguém que tem para ela outros olhos, como se a menina desprezada tivesse se revelado como Cinderela para ele. Mas a trama se completa com o horror que vem sendo anunciado desde o início, e a quase princesa torna-se a feiticeira malvada da sua vingança.

Notícias como essa têm sido comuns em nossos tempos, conferindo atualidade ao romance de Stephen King. Adolescentes frustrados, com problemas de desajuste social e quase sempre vítimas de bullying, que resolvem se vingar matando pessoas inocentes, na escola, na igreja, no shopping ou na rua. Curiosamente, a maioria desses crimes são cometidos por adolescentes do sexo masculino. Aqui nós temos uma criminosa. Qual o peso disso na história? Em Carrie há uma conotação direta entre o sangue menstrual, o poder e o mal. A menina, segundo as hipóteses científicas apresentadas, nasceu portadora da tal doença de telecinese, mas isso havia ficado esquecido. Somente ao ter sua primeira menstruação com grande atraso, aos dezesseis anos de idade (soma igual a sete, o número místico) é que o poder mental aflorou nela com toda a força. Na situação de estresse máximo em que se encontrava, sem encontrar alívio em parte alguma, Carrie valeu-se desse dom insuspeitado para usá-lo como arma invencível de destruição. Não é exatamente a motivação das memoráveis bruxas? Lembremo-nos de Maléfica de A Bela Adormecida, que era uma fada como as outras, mas ao não ser convidada para o batizado de Aurora, lança sua maldição sobre ela. As colegas de Carrie também a haviam maltratado durante um episódio de manifestação da sua menarca. Assim, a relevância do sangue menstrual na história traz os preconceitos milenares e o temor dos homens que viam no sangramento ritual das mulheres um signo de poder e de bruxaria. Em Carrie torna-se real esse temor.

Os momentos em que a protagonista utiliza seus poderes paranormais – que para ela são normais – são descritos com grande detalhamento das sensações físicas e alterações em sua fisiologia e em sua psique, o que irá conferir maior realismo aos fatos terríveis que se seguirão.

Mas por que a menina não conta com a ajuda da mãe em suas aflições? Atenção, carinho, compreensão por parte da mãe não teriam evitado que ela chegasse ao limite extremo? A questão é outro vórtice de terror da história, pois a maternidade é virada de ponta cabeça, da mesma forma que a feminilidade. A fanática mãe de Carrie vê pecado e castigo em tudo. O deus em que crê é um deus implacável e sedento de sacrifícios. Para ela, a própria filha é um mal que deve ser extirpado do mundo. Pobre Carrie! Vítima de uma doença que a predestinava a ser marginalizada e de uma mãe que é a pura “madrasta” dos contos de fada ao projetar sua psicose no que ela considerava ser a única religião verdadeira; ao interpretar literalmente toda afirmação sangrenta da Bíblia e possuída por uma necessidade insaciável de punir e castigar a todos como um Anjo Vingador. A crueldade dessa “madrasta” excede qualquer imaginação e as cenas finais do romance são de puro terror, no enfrentamento entre mãe e filha.

 Carrie também apelará, em seu maior desespero, para esse deus que lhe foi impingido desde pequena por sua mãe e do qual tem medo. Mas ela não é ouvida. No entanto, ela poderia ter sido salva do colapso - talvez não por Deus, que em sua religião deformada lhe é inacessível, mas pelo amor de um Homem. Nos poucos instantes do baile em que se sentiu reconhecida e desejada pelo garoto, ela esteve às portas do paraíso. O mito de Cinderela é tão didático quanto uma boa sessão de psicanálise. O que nos diz o mito? Que o amor do homem é capaz de salvar a mulher de seu próprio abismo. Dependeria somente dele a mulher tornar-se Eva ou Lilith, fada ou feiticeira. É claro que nos referimos à Mulher e ao Homem no sentido arquetípico, simbólico, não de suas representações sociais que podem variar, inclusive, quanto ao gênero.

Por último, gostaríamos de mencionar uma curiosa semelhança. O autor, descrevendo as sensações físicas de Carrie ao fazer os objetos se moverem, diz que é como se seu cérebro se flexionasse de um jeito diferente do normal, e daí as coisas extraordinárias aconteciam. Essa descrição parece também muito apropriada a outro fenômeno: o da criação literária. Também no ato de criar – usando nossa imaginação, intelecto, memória e emoções - podemos dizer que a mente sai do seu estado corriqueiro, operacional; é como se ela se flexionasse sobre si mesma, e daí, a criação acontece. O mestre Stephen King sabia bem disso.

 

FIM

 

Edição que recomendo:   

* King, Stephen - Carrie – editora Schwarcz, tradução de Regiane Winarski

       

 

 

  

        

  

 

 



[1] King, Stephen, Dança Macabra