segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

PAPAI NIHIL E O ESPÍRITO DO NATAL

 

PAPAI NIHIL E O ESPÍRITO DO NATAL

(conto cômico com muitas vozes)


 

O bronzeado Papai Noel tirou o gorro ante as crianças perplexas, arrancou barba e bigode e berrou para o garotinho:

- Me chamo Gilvan, sou entregador de pizza, o patrão aí está me pagando pra entregar seus presentes, seus pirralhos! Então não me enche o saco que eu vou embora agora, e ainda jogo todos esses pacotes aí na piscina...!

O menino, que vinha choramingando, congelou, depois recomeçou com mais força.

A mãe veio lá de dentro, correu ao seu encontro:

- Carlinhos, meu filho, o que aconteceu?

Papai Noel, já devidamente paramentado, sorridente, disse:

- Eu falei para as crianças que é feio beliscar o amiguinho...

- Alguém te beliscou, meu bem? - a mãe perguntou, encarando as crianças, sentadas como budas de pedra na beira da piscina, sem nem piscar.

Carlinhos soluçava, o nariz escorrendo.

- Vamos lá, vou te dar água com açúcar.

Mãe e filho entraram na casa.

- Mas como você soube disso, se só as crianças viram o Papai Noel falar daquele jeito? – perguntou um dos vizinhos.

- Foi minha filha Catarina quem contou - disse Débora. E explicou - Justo naquele momento eu apareci na varanda e chamei:

“Vem, Catarina, nós já temos que ir!”

Até estranhei ela vir logo, sem protestar. Nunca quer sair no meio de uma festa.

“Nós já temos que ir, filha. A vovó e a titia chegaram para o Natal.

A menina me puxava pela mão.

“Calma, Catarina... Também não precisamos correr. Você não quer se despedir do Papai Noel, ver se ele tem algum presente pra você...?”

Ela não quis, emburrada, me conduzindo na direção do portão.

“Espere ao menos eu me despedir da Aline...”

Aline, sentada ao lado de Débora, confirmou com a cabeça a versão da amiga. Débora continuou:

- Aline estava com o Carlinhos, ainda chorando no seu colo.

“Muito boa a festa, querida!”, eu disse a ela. “É bom a gente ensinar às crianças a bondade do Papai Noel”.

Enquanto Aline estava de costas para a piscina falando comigo, Carlinhos levantou a cabeça por cima do ombro da mãe, espiou para o lado do Papai Gilvan - e deu de cara com o malandro fazendo uma careta monstruosa pra ele, com meio palmo de língua para fora!

- Mas espere...- disse o senhor Moreira, que estava oferecendo a varanda de sua casa para aquela reunião - Se Aline estava de costas e a sua filha Catarina não estava mais na piscina, como você sabe que o Papai Noel fez careta?

- Bem, é que depois do fato muitas crianças vieram contar – prosseguiu Débora. - Várias mães e pais aqui presentes relataram que seus filhos ficaram com algum comportamento estranho depois da festa.

- Verdade – disse Aline. - Carlinhos voltou a fazer pipi na cama, coisa que ele não fazia mais.

- Isso - prosseguiu Débora. – A Catarina também começou a chutar os brinquedos, imagina, ela que sempre foi bem-educada. E uma das crianças, não me lembro qual, contou aos pais como foi na hora da entrega dos presentes... Marianinha abriu seu pacote e fez cara de choro: tinha uma bola de basquete em vez do cavalinho Pégaso que pediu na carta... O cavalinho tinha sido dado para o Douglas, que esperava um jogo do Homem Aranha... Que tinha ido para o bebê Martin, sendo que o móbile de berço foi para Catarina, que não estava mais lá, então o recolheram da água mais tarde e o deram para o Martin... E assim foi com todas as crianças. Quando Papai Noel abandonou o saco vazio e foi se servir dos petiscos na varanda, Douglas tomou a iniciativa e os outros meninos o acompanharam, chutaram todos os presentes pra dentro da piscina.

Abriram espaço entre as cadeiras para uma senhora que havia chegado.

- Foi uma estragação geral – concluiu Débora -, com o preço que andam as coisas!

- Entendo - disse Moreira. - Mas o que não entendi é por que estamos discutindo isso hoje. O Natal já passou, estamos perto do Carnaval... Já virou a folhinha, o ano é outro...

- Verdade - Aline tomou a palavra -, mas o próximo Natal logo vai chegar e não podemos permitir que isso se repita, com esse mau exemplo para nossos filhos! Por isso Débora e eu resolvemos convocar esta reunião extraordinária da Vizinhança Amiga do Natal.

Várias vozes se ergueram ao mesmo tempo. A empregada do senhor Moreira aproveitou a descontração para passar uma bandeja com refrigerante e biscoitinhos.

Uma voz ao fundo se ergueu no burburinho:

- A gente tem que passar aos nossos filhos o espírito do Natal!

- Mas que espírito é esse? - falou a esposa do senhor Moreira, que até aquele instante estivera calada. – Será que é essa babaquice de Papais Noéis caducos e maliciosos?

Ouvindo que começava uma xingação, as crianças interromperam a brincadeira e se aproximaram.

- A mamãe falou Papais Noéis malucos ou caducos?

- Pssst!

- Com licença! - uma mãozinha se ergueu. Era dona Bigina, avó de Catarina, que estava passando férias e fora convidada para a reunião.  - Se eu posso dar uma opinião, acho que seria muito melhor o Natal do presépio, o verdadeiro Natal do nascimento de Jesus Cristo. Eu posso organizar um teatrinho mudo, se vocês quiserem, igual ao que fizeram lá na minha cidade, com gente de verdade. Foi muito bonito.

- A religião é o ópio do povo - tossiu um senhor na fileira do fundo.

- A senhora me desculpe, dona...? – falou o senhor Moreira, que, por ser o dono da casa, sentia certa responsabilidade de dar encaminhamento às questões.

- Bigina.

- Dona Bigina. Com todo o respeito, mas não acho que essas histórias da Igreja sejam boas para educar nossos filhos. Veja a corrupção do Vaticano! E as guerras dos cristãos, as Cruzadas! – Ele sacudia a cabeça – Não, não...

Dona Bigina se sentou com um suspiro.

Nesse instante Deuza, a empregada que a esposa do senhor Moreira havia feito sentar-se depois de servir os convidados, resolveu também se manifestar.

- Mas o que que tem de errado com o Gilvan? – perguntou ela, tímida.

- Quem é Gilvan? - perguntou uma vizinha que havia chegado atrasada.

- O entregador de pizzas - respondeu outra.

- O Papai Noel - corrigiu outro.

- Eu conheço ele faz um tempo - continuou Deuza - Não entendo por que um trabalhador que rala pra sustentar a família não pode fazer um bico de Papai Noel no feriado pra comprar uma geladeira nova.

Os murmúrios que se levantaram foram abafados por Débora, a presidenta.

- Um minuto, vizinhos! Ninguém aqui está contra um trabalhador honesto...

- Pois então! Coitado! Pra quê tanto auê? - disseram duas amigas que estavam com pressa de ir embora.

- Vamos perguntar às crianças o que elas acham - sugeriu Aline.

Mas as crianças tinham se cansado da conversa mole e foram brincar de pique no jardim. A esposa do senhor Moreira se levantou para verificar que não pisassem nas suas plantas. Quando ela voltou a sentar, reinava um silêncio constrangido.

- Bom... - ela disse, como boa anfitriã - Como faremos, então, para trazer o espírito do Natal no próximo ano?

Bigina resmungou baixinho um "Eu já dei minha sugestão". O senhor Moreira era de opinião de que deveriam abolir de uma vez por todas aquelas festas que só geravam problemas, mas evitou se expressar porque era considerado um sujeito boa praça. De novo foi Deuza quem falou:

- Se não for ter Papai Noel, quem vai entregar os presentes?

- Gente... Se vocês acham que não tem nada de mais, eu posso chamar o Gilvan de novo no ano que vem - disse o pai de Carlinhos, satisfeito pela oportunidade. Não gostava muito de falar, mas contratar era a sua praia. – Tenho certeza de que ele não vai recusar.

Débora e Aline encolheram os ombros.

- Ei! Alguém assistiu ao especial do Roberto? - soltou Clara, a tia solteirona de Catarina.

Foi a deixa pra deixarem de lado aquele assunto espinhoso e todas começaram a conversar alegremente. O senhor Moreira levou os homens para conhecer seu novo viveiro.

- Corta!

- Hum... Não sei não... – comentou o diretor, enquanto a cortina ia fechando no palco – Parece que está faltando alguma coisa nessa peça!

- Não me parece – disse o 1º assistente. – Não era o que o senhor queria, que no final ninguém mais soubesse direito o que seria o tal espírito do Natal?

- Sim – disse o diretor -, mas a questão é: o público vai entender isso? Não seria preciso guiar um pouco mais sua conclusão?

- Isso é verdade – opinou o 2º assistente. – O público não gosta muito de ser deixado no ar. Ou uma coisa é ou ela não é.

- E que negócio é esse de Papail Nihil? Alguém é obrigado a saber que " nihil" significa "nada" em latim? - ajuntou, encorajado, o 1º assistente - Podia mudar esse título.

O diretor coçou a cabeça, tirando a boina preta.  Depois de um tempo, estalou os dedos.

- Já sei! Chamem os atores de volta. Coloque todos na varanda outra vez.

- Até as crianças? – perguntou o 2º assistente.

- Não... As crianças continuam brincando no jardim.

Foi assim que a conversa dos vizinhos, que começava a se animar em torno do show de Roberto Carlos e outras celebridades, foi interrompida pela campainha no portão.

- Você pode ir atender, querido? – disse a mulher ao senhor Moreira. – Não consigo ver daqui quem é.

Minutos depois o senhor Moreira retornou trazendo pela mão um garotinho de uns quatro anos.

- Alguém sabe de quem é este menino? – perguntou. – Ele foi encontrado no outro quarteirão, brincando sozinho num terreno baldio.

- Julinho! – gritou uma das mães, acorrendo atarantada. – Mas como ele foi sair de perto de mim? Achei que estava brincando com as crianças. – E sacudindo o moleque pelos ombros – Como você faz isso comigo, meu filho?

- Bom... – disse o senhor Moreira. – Vou avisar o Gilvan que a mãe foi achada.

- Foi o Gilvan que encontrou o Julinho? – Deuza deu um gritinho e quis ir junto para agradecer ao benfeitor.

Ambos voltaram à reunião com um sorriso nos lábios - o do patrão, amarelo, por ter de dar o braço a torcer a respeito do tão criticado Papai Noel; o da empregada, com o gostinho doce da vingança.

- Vocês viram? – ela disse. – Ele até pode não ser um Papai Noel muito certinho, mas que é gente boa, é. Não fosse ele, o garoto ficava perdido aí na rua.

- É mesmo! É mesmo! – vozes de apoio.

- Ah... – disse a avó Bigina, enxugando o canto do olho com um lencinho – Isso é o verdadeiro espírito.

Ninguém a ouviu.

Fecha a cortina.

 

FIM

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Histórias da Carochinha






Neste espaço dedicado a livros e leituras, quero inaugurar o ano falando de um livro que de certo modo inaugurou minha vida de leitora porque foi o primeiro livro que me caiu nas mãos quando eu ainda era bem pequena.

A capa original já se foi há muito, tendo sido substituída, graças ao zelo de minha mãe, por uma capa feita de cartolina vermelha, coberta com plástico,  na qual escrevi com esferográfica, numa letrinha de quarta série: "Contos da Carochinha". Mas isso foi muitos anos depois. Qual a sua origem? Meu pai o comprou? Foi presente dos tios? Devia ser um tesouro na época, penso, olhando as folhas amareladas, de bordas puídas, as ilustrações de um outro tempo, quando eram raros no Brasil os livros feitos para crianças. 

Um livro maravilhoso sobre o maravilhoso. Eu  folheava suas páginas, olhando mil vezes as gravuras feitas com bico de pena, tão misteriosas quanto negativos fotográficos dos próprios personagens que habitavam o mundo mágico. Lá estava Chapeuzinho Vermelho falando com o Lobo... O monge andando com uma lanterna... O Pequeno Polegar dentro do sapato. Não eram imagens loucas. Para quem soubesse decifrá-las, falavam das Verdades do mundo. Era isso que os livros eram. E dona Carochinha quem era? Uma amálgama de figuras centenárias de várias culturas. Mas, quer fosse o apelido dado à Dona Baratinha, ou a Vovó eterna contadora de histórias em cada povo, elas eram uma mesma criatura mágica, a fada que trazia o conhecimento para as crianças. Pena que quando nos tornamos adultos passamos a nos referir com descaso às quimeras ou desejos impossíveis dizendo: "São histórias da Carochinha!" 

Depois que aprendi a ler, as palavras trouxeram um novo encanto às histórias, junto com as figuras pretas em bico de pena. Palavras tão misteriosas quanto as figuras, nunca ouvidas antes, fora de uso, esquisitas. Mesmo assim, eu gostava de perceber que as coisas podiam ser escritas de diferentes maneiras, em outras línguas, ortografias ou modos de dizer - mas que no fundo sempre faziam brotar o seu sentido. 

Uma dessas histórias ficou por muito tempo me dando voltas na cabeça. Um jovem frade saiu para um passeio matinal. Perto dele cantava um pássaro de plumagem e canto tão maviosos que o frade o seguiu pelas trilhas do bosque,  até que decidiu voltar, mas, no lugar onde antes estava o mosteiro, encontrou uma construção muito antiga, quase em ruínas. Bateu à porta e um velho monge de longos bigodes veio abrir. O frade lhe contou seu assombro, pois deixara o mosteiro havia poucos minutos. O velho monge sorriu e disse: "Meu filho, você saiu deste mosteiro há muito, muito tempo e o que você teve foi uma iluminação: mil anos para um homem são apenas alguns segundos para Deus". 

Ora, não se poderia dizer algo assim da própria literatura?  Estou certa de que essas histórias da primeira infância entraram na minha memória subconsciente como desenho primordial do mundo. Podemos nunca chegar a ser monges iluminados, mas na leitura de um livro é como se o tempo e o espaço se diluíssem, e chegamos mais perto de ver Deus. Depois contamos para outros o que lemos, quer narrando, quer escrevendo, e nos tornamos outros tantos Carochas e Carochos, cujos contos não podem morrer. 

-x-

O LIVRO:

"Contos da Carochinha", da Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma, Rio, 25ª edição, de 1959 (a primeira edição data de 14 de abril de 1894) - "Escolhida coleção de sessenta e um contos populares, morais e proveitosos, de vários países, traduzidos e recolhidos diretamente da tradição oral, por Figueiredo Pimentel".

ALGUNS TRECHOS:

"A terceira prova foi difícil; seria preciso saber qual das três princesas, que estavam adormecidas, era a mais moça. Todas três pareciam-se muitíssimo. A única coisa que as diferençava era que, antes de adormecerem, a mais velha comera um bocado de açúcar, a segunda bebera um gole de xarope , e a terceira tomara uma colher de mel." (O Patetinha)

"No fim do teu reino, longe, muito longe, há uma fada encantada, fechada numa casa de ferro e guardada por um dragão. No quarto imediato há um passarinho, que quando canta, escorre pelo bico uma baba muito fina e perfumada. Essa baba, aparada num pouco de algodão, e passada por três vezes sobre os olhos, restitui a vista a qualquer cego." (A Baba do Passarinho)

"'Ai, minha menina, dize/O que queres para teu bem!' E a mocinha respondeu: 'Se não fosse querer muito/Queria ir ao baile também". (A Gata Borralheira)

"Nesse momento batiam a uma das portas da sala de jantar. Bela ficou perdida de medo, mas lembrando-se que estava ali para dar a sua vida em resgate pela de seu pai, mandou entrar quem batia. Era a Fera; com um ramo na mão, avançava lentamente." (A Bela e a Fera)

"Pela madrugada bateram à porta do palácio. Eram os onze príncipes que pediam para falar ao rei. Insistiram, pediram e ameaçaram, batendo à porta como uns desesperados, e tanto fizeram que apareceu a escolta de Sua Majestade. Nesse momento rompeu o primeiro raio do sol, e os onze príncipes sumiram-se como por encanto, e viu-se uma nuvem de onze cisnes pairando por cima das torres do palácio". (Os Onze Irmãos da Princesa)

"Passeavam, um dia, pela terra, Jesus Cristo e São Pedro, cada um montado no seu burrinho, e chegaram a uma ferraria na beira do caminho. Nosso Senhor, tendo gostado do trabalho do ferreiro, prometeu satisfazer-lhe três pedidos. 'Pede o Reino do Céu, ferreiro...', segredou-lhe São Pedro'. 'Eu não!' retorquiu o ferreiro, 'O Reino do Céu não me enche barriga...'" (O Diabo e o Ferreiro)

"No dia seguinte, o mar encheu e chegou até a porta da cabana. O Rei dos Peixes vinha buscar Luísa, numa grande concha de madrepérola puxada por golfinhos. A moça despediu-se da família, que chorava tristemente, e embarcou na concha". (A Vida do Gigante)

"A formiguinha se dirigiu ao gato: 'Gato, tu que és tão forte, que comes o rato, que rói a parede, que tapa o sol, que derrete a neve, que os meus pezinhos prende...!' (A Formiguinha)

"A princesa Cecília casou-se com o enjeitado. Quando seu pai, o Imperador chegou, ficou aflitíssimo. Como não podia aceitar por genro um valdevinos, sem eira nem beira, disse-lhe: 'Para eu consentir que continues a viver com minha filha, é preciso ires ao inferno, e trazeres três fios de cabelo do diabo. Se nos trouxeres, serás príncipe'. O rapaz não teve medo e partiu. (Os Três Cabelos do Diabo).


FIM ...  Isto é: 

E quem quiser que conte outra.


"